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Crítica à teoria da pena e decisionismo judicial no direito criminal brasileiro:

Contributos da historiografia, hermenêutica jurídica e economia política

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06/10/2021 às 18:10
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Expomos o fenômeno do decisionismo judicial em matéria criminal enquanto consequência negativa do pós-positivismo jurídico como repertório teórico predominante na teoria do direito.

1. Considerações Iniciais1

O Direito Criminal Brasileiro é baseado num diploma da primeira metade do século XX, de inspiração fascista, cujo contexto histórico remonta à ditadura exercida por Getúlio Vargas de 1937-1945 EC, oriunda de governo igualmente ilegítimo decorrente da assim denominada “Revolução de 1930”.

A primeira frase deste trabalho acadêmico, embora dotada de inegável acidez, reflete em nossa compreensão uma Historiografia desprovida do filtro ideológico que infelizmente marca grande parte dos regimes autocráticos dos quais o Brasil foi vítima desde o início de sua história como civilização. O Estado unitário decorrente de Monarquia parlamentarista de inspiração no positivismo filosófico de Comte (1798-1857 EC), dotada de Poder Moderador autocrático – que, embora democrática, calcava-se no voto censitário –, foi sucedido por uma República presidencialista que, iniciada por golpe de Estado em 15 de novembro de 1889, foi permeada por períodos de autocracia declarada, como aquele conhecido pela historiografia oficial como “Estado Novo” (cf. FAUSTO, 2019).

O referido contexto histórico, sistematicamente narrado, por infelicidade estimulou a atual conformação do sistema penitenciário brasileiro. País de pujante economia, que mesmo em cenário de profunda crise econômica e sanitária nas primeiras décadas do século XXI foi apontado como a 12ª maior economia do mundo2, não é justificável a manutenção de sistema penal cujo fundamento jurídico calca-se em dois diplomas de elevada envergadura (Código Penal Brasileiro3 e Código de Processo Penal Brasileiro4), mas cuja vigência descerra-se desde a década de 1940 (quase um século). Semelhantemente, o sistema penitenciário brasileiro funda-se em Lei de Execuções Penais5 em vigor desde a década de 1980 (quase meio século), publicada durante outro período autocrático da história brasileira, a saber, o dos governos militares (1964-1985 EC).

Embora sujeitas a variadas normas alteradoras ao longo das décadas, as referidas leis mantêm sua mens legis (“espírito da lei”) de inspiração autocrática inalterada, na medida em que tal atributo inerente à hermenêutica das normas jurídicas somente pode ser desdobrado em seu aspecto coletivo a partir da vigência de nova lei, considerando a influência da mens legislatoris (“espírito do legislador”) do período em que as normas entraram em vigor.

O presente estudo tem por objeto de pesquisa o decisionismo judicial presente na aplicação da pena no Direito Criminal Brasileiro em sua dogmática jurídico-penal, na esteira do repertório teórico da ciência total do Direito Penal (cf. DIAS, 2007). Sustentar-se-á que o referido decisionismo é favorecido pela presença de normas de textura aberta existentes na parte geral do Decreto-lei Federal n. 2.848/1940, propondo-se uma crítica à teoria da pena a partir das circunstâncias judiciais aplicáveis na primeira fase de dosimetria da pena, reguladas pelo art. 59 do CP/1940.

O objetivo geral deste trabalho é o de apresentar sob a óptica da teoria crítica as regras atinentes à aplicação da pena em sua primeira fase dosimétrica, de elevada carga valorativa que tende ao subjetivismo, sob o repertório teórico da Criminologia Crítica. Os objetivos específicos, por sua vez, são os de refletir sobre o decisionismo judicial em matéria criminal, mormente quanto às regras de interpretação aberta previstas nos diplomas penais pátrios, bem como tecer considerações acerca dos influxos do modo de produção capitalista na teoria da pena conforme aplicada no Brasil, o que diverge de uma hermenêutica amparada na proteção internacional dos direitos humanos.

A metodologia aplicada a este estudo será de natureza qualitativa e exploratória, com fulcro em levantamento bibliográfico e interpretação de fontes documentais sobre o objeto de pesquisa, com foco nas obras de Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia, bem como amparando-se no repertório teórico de obras referenciadas da Historiografia e das Ciências Sociais.

Enfim, a pesquisa que ensejou a elaboração do presente estudo tem por fundamento a multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, com pretensão transdisciplinar, nos termos da teoria da complexidade elaborada pelo filósofo francês Edgar Morin (2015), especialmente no tocante às relações que podem ser travadas entre o Direito e a Economia Política, na medida em que se levanta a hipótese de que a particular expressão brasileira do modo de produção econômica capitalista influencia sobremaneira a teoria da pena conforme aplicada no território nacional, de modo a reforçar a validade da teoria do labeling approach (etiquetamento social) como elemento de crítica à teoria da pena.

2. Historiografia e Hermenêutica Jurídica na Fundamentação das Decisões Judiciais

Em proêmio, releva-se a historicidade da Hermenêutica Jurídica como seguro amparo para a lavratura das decisões judiciais, especialmente a partir do século XX, quando houve significativa alteração paradigmática na Teoria do Direito e na Filosofia Jurídica, que passam a contar com o repertório teórico do pós-positivismo jurídico como fundamento jusfilosófico predominante nos sistemas jurídicos ocidentais – a saber, mormente do tronco anglo-saxônico (Common Law) e do tronco romano-germânico (Civil Law)6.

Nesse desiderato, o regime de historicidade evidenciado por uma abordagem científica da História é desejável sob uma clivagem interdisciplinar e crítica do Direito. Neste sentido, reputa-se válido o escólio do historiador brasileiro José D'Assunção Barros (2014, pp. 87-88), nos termos seguintes de sua referenciada obra:

Se uma teoria constitui certa visão de mundo relacionada a um ou outro dos diversos campos científicos, uma Teoria da História, ou um paradigma historiográfico, corresponderá a uma certa visão histórica do mundo, ou mesmo a uma determinada visão sobre o que vem a ser a própria História. Qualquer Teoria da História pressupõe, simultaneamente, uma determinada concepção sobre o que é a história e sobre o que deve ser a historiografia (isto é, o campo de estudos que examina a história enquanto campo processual). Isto, é claro, naquele sentido mais abrangente que pode ser atribuído à expressão Teoria da História.

Outrossim, a influência da História sobre as Ciências Sociais (e destas, por óbvio, sobre a Ciência Jurídica, haja vista as intersecções teóricas que podem ser travadas entre o Direito Criminal e a Criminologia como ciência empírico-indutiva autônoma) é bastante evidente e desejável para uma compreensão plural dos fenômenos sociais, como o modelo de sistema penitenciário brasileiro, objeto deste estudo. Torna-se pertinente, neste ponto, a opinião do historiador britânico Peter Burke (2012, p. 40), como pode ser visto no trecho de sua obra referenciada que segue, in verbis:

Vivemos em uma era de linhas indefinidas e fronteiras intelectuais abertas, uma era instigante e, ao mesmo tempo, confusa. Podem-se encontrar referências a Mikhail Bakhtin, Pierre Bourdieu, Fernand Braudel, Norbert Elias, Michel Foucault e Clifford Geertz nos trabalhos de arqueólogos, geógrafos e críticos literários, assim como de sociólogos e historiadores. O surgimento do discurso compartilhado entre alguns historiadores e sociólogos, alguns arqueólogos e antropólogos, e assim por diante, coincide com um declínio do discurso comum no âmbito das Ciências Sociais e humanidades e, a bem da verdade, dentro de cada disciplina.

A Hermenêutica Jurídica, nesse aspecto, é relevante disciplina da Ciência Jurídica que auxilia na fundamentação e compreensão das decisões judiciais – que, embora constituam-se como domínio de conhecimento privilegiado dos juízes, abrem-se aos demais intérpretes do ordenamento jurídico (advogados, promotores de justiça, defensores públicos, delegados de polícia judiciária, procuradores da Fazenda Pública, dentre outros) na figura da crítica às decisões judiciais em matéria criminal.

Logo, mais que uma teoria da pena, em nosso sentir tal abertura hermenêutica enseja a relevância cada vez maior de uma “crítica à teoria da pena”, a ser abordada não apenas por um dos vértices da relação jurídico-processual em matéria penal – que não se confunde com a suposta existência de uma lide penal, teoria que rejeitamos na esteira, dentre outros, de Pacelli (2012, pp. 98-101) – mas por todos os atores do processo criminal, especialmente pelos detentores de atribuição e capacidade postulatória.

Nesse desiderato, embora reconheça-se que a teoria da pena por vezes se revela como um domínio de conhecimento privilegiado dos juízes no contexto da prática forense, uma vez que a eles compete o processo cognitivo de dosimetria da pena, sustenta-se maior pluralidade de sujeitos cognoscentes (intérpretes) quanto ao objeto cognoscível (pena a ser aplicada), de modo a ensejar a construção coletiva da teoria da pena no Direito Criminal brasileiro.

Considera-se prudente, quanto à necessidade de se evitar juízos de valor estranhos a uma regular dosimetria da pena – o que, enfim, evita o decisionismo judicial em matéria penal – a abalizada opinião doutrinária de lavra do insigne penalista brasileiro Luiz Regis Prado, ao abordar as circunstâncias modificadoras da responsabilidade penal no campo da dosimetria da pena, nos termos que seguem (REGIS PRADO, 2021, p. 724):

As circunstâncias modificadoras da responsabilidade penal implicam função de graduar a magnitude do injusto ou da culpabilidade, e têm repercussão na graduação da pena. Assim, tais circunstâncias (agravantes/atenuantes) servem para calibrar ou mensurar a pena em razão da maior ou menor gravidade do injusto. Isso significa que a ilicitude não tem apenas um conteúdo puramente negativo (ausência de justificantes), mas que pode compreender elementos alheios ao injusto específico da conduta delitiva. Quer dizer: a ilicitude contém uma série de elementos que, no caso de graduação do injusto penal, se movem, entretanto, no âmbito do injusto genérico. Ocorre porque no injusto específico, o tipo legal pretende refinar de modo mais preciso um comportamento em sua individualidade sócio valorativa, o que permite a expressão de específico juízo de desvalor próprio a esse comportamento. Ao se incluir no tipo de injusto, elementos que expressam valorações alheias à singularidade axiológica referida, ou a adição a juízos de valor a ela estranhos, opera-se uma inaceitável disfunção.

O contributo à fundamentação das decisões judiciais fornecido pela cientificidade da Hermenêutica Jurídica é, conforme mencionado, determinante para a observância do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição do Brasil de 1988 – CRFB/1988), por sua vez inerente ao modelo de processo penal acusatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro (CPP/1941, art. 3º-A).

A fim de se compreender semelhante contributo, reputa-se pertinente, neste momento, o conceito e âmbito de aplicação conferidos Hermenêutica Jurídica no escólio doutrinário do jurista brasileiro Carlos Maximiliano (2017, pp. 1), em trecho de obra referenciada que segue:

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A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito. […] A interpretação, como as artes em geral, possui a sua técnica, os meios para chegar aos fins colimados. Foi orientada por princípios e regras que se desenvolveu e aperfeiçoou à medida que evolveu a sociedade e desabrocharam as doutrinas jurídicas. A arte ficou subordinada, em seu desenvolvimento progressivo, a uma ciência geral, o Direito obediente, por sua vez, aos postulados da Sociologia; e a outra, especial, a Hermenêutica. Esta se aproveita das conclusões da Filosofia Jurídica; com o auxílio delas fixa novos processos de interpretação; enfeixa-os num sistema, e, assim areja com um sopro de saudável modernismo a arte, rejuvenescendo-a, aperfeiçoando-a, de modo que se conserve à altura do seu século, como elemento de progresso, propulsor da cultura profissional, auxliar prestimosa dos pioneiros da civilização.

Noutro trecho do mesmo estudo (2017, p. 6), o referido jurista tece importantes considerações acerca do conceito de aplicação do Direito nos limites da Hermenêutica Jurídica, conforme segue, in verbis:

A aplicação do Direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real, procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano. O direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e também no individual. Isto se dá, ou mediante a atividade dos particulares no sentido de cumprir a lei, ou pela ação, espontânea ou provocada, dos tribunais contra as violações das normas expressas, e até mesmo contra as simples tentativas de iludir ou desrespeitar dispositivos escritos ou consuetudinários. Assim resulta a Aplicação, voluntária quase sempre; forçada muitas vezes.

Embora haja a referência à possibilidade de atuação ex officio dos tribunais no trecho da referida obra de Carlos Maximiliano – subsistente à época de sua primeira publicação (1925), e fruto da matriz sócio-histórica latina, colonial, escravista e autoritária brasileira, elementos efusivamente sujeitos à crítica noutros estudos (cf. CAVADAS, 2021) – desde a segunda metade do século XX os órgãos jurisdicionais do Estado brasileiro agem eminentemente por provocação, refletindo a adoção do modelo de processo penal acusatório, não sendo este afastado pela fase de investigação preliminar conduzida no bojo do inquérito policial ou procedimento de investigação criminal no âmbito do Ministério Público.

Diante deste cenário, exsurge o decisionismo judicial como grave e permanente vício do sistema de justiça criminal brasileiro, na medida em que a jurisprudência constitui-se cada vez mais em fonte do Direito, dada a influência de elementos típicos do sistema jurídico anglo-saxônico no ordenamento jurídico pátrio, historicamente de tronco romano-germânico, assim como mantendo-se fragilizadas as balizas objetivas legalmente estruturadas, mormente nas regras contidas no CP/1940 e no CPP/1941.

Nesse desiderato, sustenta-se no presente estudo que uma adequada crítica à teoria da pena no Brasil envolve rigorosa abordagem da adoção do repertório intelectual pós-positivista como referencial predominante na Teoria do Direito, o que pode ensejar elevado déficit de segurança jurídica a províncias que dependam de maior objetividade em sua interpretação e aplicação, como ocorre no Direito Criminal, cujas balizas normativas constituem-se em conquista do pensamento liberal do Iluminismo em face da tirania absolutista, calcada no subjetivismo decisionista para expressar sua repressão.

Embora afastado o modelo político absolutista das civilizações ocidentais, ainda resistem modelos autocráticos (autoritários e totalitários) que se locupletam da insegurança jurídica do decisionismo judicial para satisfazer suas pretensões contrárias à proteção dos direitos humanos sob cariz universal e cosmopolita. Os influxos teóricos decorrentes dos sobreditos modelos autocráticos influenciam sobremaneira a prática forense brasileira, o que em determinado nível de abordagem justifica também o fenômeno do decisionismo judicial, verificável especialmente nos Juízos de primeiro grau de jurisdição, nada obstante também acompanhe a formação de precedentes nas Cortes Superiores.

3. Influências da Matriz Sócio-histórica e do Modo de Produção Econômica Capitalista na Crítica à Teoria da Pena no Brasil

Sustenta-se, pois, que a matriz sócio-histórica latina, colonial, escravista e autoritária reconhecida desde a formação do Brasil como Estado-nação7 justifica em parte o elevado grau de decisionismo judicial persistente desde a década de 1940, atravessando o século XX até as primeiras décadas do século XXI.

Embora reconheça-se a predominância do paradigma jusfilosófico pós-positivista, bem como a emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos como eixo estruturante das Constituições do pós-II Grande Guerra num cenário que favorece o monismo com prevalência no direito internacional8, o vício do decisionismo ainda grassa na jurisprudência criminal brasileira, especialmente em virtude da abertura normativa existente nas regras jurídico-penais que regulam a teoria da pena no Direito Criminal pátrio, conforme pontificado pelo CP/1940.

A redação do art. 59 do CP/1940, neste sentido, é dotada de criticável carga valorativa, na medida em que traz um tipo penal não incriminador aberto no aspecto hermenêutico. O referido dispositivo, que traz à lume o instituto das circunstâncias judiciais aplicáveis segundo a doutrina penalista na primeira fase da dosimetria da pena, pontifica em seu caput:

Decreto-Lei Federal n. 2.848/1940. Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime […]

O caput do art. 59 do CP/1940 enquanto fruto da reforma penal promovida pela Lei Ordinária Federal n. 7.209/1984 não difere da redação do art. 42 na redação original do códex, cujo caput segue: “Compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo ou gráu da culpa, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime […]”. Ao contrário, sustenta-se que a atual redação elastece indevidamente o juízo de valor que o titular do órgão jurisdicional terá na aplicação da pena.

A doutrina penalista também tece críticas à abertura normativa da regra contida no art. 59 do CP/1940, embora muitas vezes a justifique com fulcro no princípio da fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CRFB/1988) e a discricionariedade regrada deferida aos juízes brasileiros. Relevante desta forma o pensamento de Magalhães Noronha (2009, p. 248), na forma do escólio doutrinário que segue:

O juiz passou, agora, a ser considerado quase um autômato na aplicação da pena. Esta já era fixada em lei e dividida em graus, a que ele ficava sujeito na sentença. Entre nós, até o advento do Código de 1940, predominou essa concepção. Ao aplicar a pena, o magistrado estava jungido aos graus máximo, mínimo, médio, submáximo e submédio, pouco ou quase nada restando para seu subjetivismo ou determinação pessoal. Não pensou assim a reforma de 1984 como já ocorrera na redação primitiva do Código. Na aplicação da pena foi dada certa latitude ao juiz, não somente em relação à quantidade, mas também à escolha entre as penas alternativamente cominadas, à faculdade de aplicar cumulativamente penas de espécie diversa e deixar de aplicar qualquer uma das cominadas. O julgador não pode se limitar à apreciação exclusiva do caso, mas tem de considerar também a pessoa do criminoso, para individualizar a pena. Como escreve Soler, é uma tarefa delicada, para a qual o juiz, além da competência jurídica teórica, deve possuir conhecimentos psicológicos, antropológicos e sociais, aliados a uma fina intuição da realidade histórica e uma sensibilidade apurada.

Nada obstante a intrépida defesa de uma Magistratura dotada de intelectualidade plural e alheia a ideias derivadas do senso comum, é notório que o texto do insigne jurista brasileiro infelizmente não mais ressoa diante da triste realidade de milhões de processos judiciais em curso no sistema de justiça criminal pátrio9, em sua maioria tendo por acusados a denominada “clientela” do sistema penal – pessoas negras, pobres e periféricas – considerando em especial o desenvolvimento teórico da Criminologia Crítica no Brasil, destacando-se os trabalhos de Malaguti Batista (2012), Yarochewsky (2017) e Cirino dos Santos (2018).

O decisionismo judicial exsurge de normas penais dotadas de abertura hermenêutica, como o citado art. 59 do CP/1940. Ademais, referida subjetividade que se converte em nocivo subjetivismo e enseja prejuízos tanto ao devido processo legal quanto à fundamentação das decisões judiciais – ambos princípios alçados a normas de natureza constitucional – perverte outrossim o fenômeno do ativismo judicial como manifestação válida da predominância do pós-positivismo jurídico na jurisprudência dos tribunais brasileiros, inclusive no âmbito da Suprema Corte. O ativismo judicial favorece, desta forma, a integral proteção dos direitos fundamentais sob um cariz universal e cosmopolita (cf. DWORKIN, 2010; ALEXY, 2008); o decisionismo, perversão violadora do princípio da segurança jurídica (cf. ÁVILA, 2012), não.

Enfim, torna-se relevante tecer breves considerações sobre as matrizes autoritárias do Direito Criminal Brasileiro e sua influência da aplicação da pena à luz da Criminologia Crítica e sua teoria do etiquetamento social (labeling approach), na medida em que uma adequada crítica à teoria da pena perpassa por uma crítica ao modo de produção econômica capitalista tal como vivenciado no Brasil.

É possível afirmar que a sociedade brasileira apenas adotou formalmente o modo de produção econômica capitalista após a publicação da Lei Imperial n. 3.353/1888, conhecida como “Lei Áurea”, tornando proscrito o escravismo como modo de produção econômica predominante em território nacional. No mundo fenomênico, houve um salto exponencial de uma sociedade escravista para uma economia formalmente alinhada ao capitalismo industrial em curso na Europa e América do Norte.

Ao se sustentar semelhante hipótese neste estudo, confirma-se sua hipótese original no sentido de que a forma pela qual o capitalismo instaurou-se no Brasil favoreceu práticas autoritárias como a do decisionismo judicial, intensificado por uma teoria da pena dotada de regras abertas sob a pecha da exigência de juízes providos de conhecimento multidisciplinar, o que se reputa bastante arriscado na garantia do devido processo legal no Brasil.

A Criminologia Crítica, nesse sentido, alça-se como instância científica dotada de mecanismos teóricos que promovem uma abordagem adequada de desvios sociais como o objeto de pesquisa do presente estudo, sem contudo olvidar da crítica necessária na óptica de fenômenos sociais complexos, o que se traduz no acolhimento da teoria crítica da Escola de Frankfurt no âmbito das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, especialmente nos estudos da lavra de Horkheimer (2019).

Ressalte-se, contudo, que em momento algum critica-se a razão de ser e o acerto do modo de produção econômica capitalista, na medida em que promove notável expansão dos setores econômicos em países emergentes, o que amplia seus índices de desenvolvimento humano – agregando ao presente estudo conceito integrativo de desenvolvimento econômico no estudo capitaneado pelo economista indiano Amartya Sen (2010).

Embora calcado no individualismo humano, o capitalismo é modo de produção econômica que não se confunde com sua versatilidade de se manifestar em Estados soberanos democráticos ou autocráticos, cumpridores das normas de proteção internacional dos direitos humanos ou violadores dos mais comezinhos princípios jurídicos aplicáveis ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Economia e Direito, por óbvio, interrelacionam-se, mas não se confundem.

Fixadas estas premissas, verifica-se que o elevado grau de subjetivismo na aplicação da pena na prática do Direito Criminal Brasileiro revela por vezes as prenoções dos julgadores. Este preconceito, por vezes influenciado não apenas pelo capitalismo periférico manifestado no Brasil (cf. SOUZA, 2018), mas também por uma interpretação e aplicação da pena criminal enviesada e “aporofóbica” – em referência ao termo aporofobia (fobia dos pobres), cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina (2020) –, tem nos princípios do duplo grau de jurisdição e da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CRFB/1988) dois contrapontos de fiscalização jurídica (e moral) do mérito de decisões judiciais.

A teoria rotulacionista ou do etiquetamento social (labeling approach) revela-se como importante aporte teórico na Criminologia Crítica que percorre lateralmente o Direito Criminal de bases liberais. Didática exposição da referida teoria é vista em obra referenciada da criminóloga brasileira Vera Malaguti Batista (2012, pp. 74-75), nos termos que seguem:

[…] A criminalidade deixa de ser uma realidade objetiva para ser lida como uma definição. A principal ruptura metodológica é com o paradigma etiológico: o processo de interação dá um sentido radicalmente diferente ao método causal-explicativo. O que está em jogo passa a ser quem tem o poder de definir e quem sofre a definição. Passa-se assim a uma operação epistemológica básica, da fenomenologia aos processos de criminalização. O conceito de criminalidade sofre um golpe mortal: fora da dicotomia do bem e do mal, o “comportamento criminoso” é relativizado. Os mecanismos simbólicos da construção social vão dar conta da reação dos sujeitos aos processos de etiquetamento. Essa relativização da “ontologia criminal” deslegitima a função ideológica dos aparatos de controle social. Segundo Baratta, a atividade de controle social passa a ser agente da criminalização. A norma aparece aqui como regra do jogo, e não como valor. Essa crítica aos papeis sociais ou rótulos criminalizantes vai apontar no rumo da redução da criminalização, no sentido de limitar o poder punitivo. O novo paradigma criminológico, o labeling approach, simultaneamente à ontologização do delito (ao mala in se), à patologização do delinquente proposta pelo positivismo criminológico e à idealização da pena veiculada pelas teorias legitimantes preventivistas, será conhecido como o enfoque da reação social. Essa ruptura, fundamental para a constituição de uma criminologia crítica, produziu um chamado para estudos e pesquisas sobre os sistemas penais. Para compreender a “criminalidade”, é imprescindível estudar a ação do sistema penal. O status de delinquente seria produzido pelos efeitos estigmatizantes do sistema penal. Ocorre, então, uma redefinição radical do objeto da criminologia. O criminoso não é o ponto de partida, é locus de análise de uma realidade socialmente construída. Baratta pontua que se a pergunta do positivismo era “quem é o criminoso?”, a do rotulacionismo seria “quem é definido como criminoso?”. O rotulacionismo seria o estudo da “formação da identidade desviante” e das agências de controle social.

Ao se elevar o decisionismo judicial à categoria de patologia do pós-positivismo como repertório teórico predominante na dogmática jurídico-penal do Estado Democrático e Social de Direito, fundamenta-se sua etiologia justamente em teoria criminológica de cariz pós-positivista: o rotulacionismo.

O rotulacionismo manifestado em países de capitalismo periférico como o Brasil por vezes implica no recrudescimento do populismo penal, outro fenômeno verificável tanto ao nível da Criminologia Crítica quanto do Direito Criminal. Embora sua manifestação de maior evidência se observe no âmbito legislativo, como preleciona referenciada obra de Gomes e Gazoto (2019), há que se aferir a influência do populismo penal também no bojo da atividade jurisdicional, não se limitando à “discricionariedade regrada” como máxima predominante na dosimetria da pena.

Conquanto o decisionismo evidencie-se em primeiro grau de jurisdição no campo da dosimetria da pena, nas Cortes Superiores manifesta-se noutros fundamentos decisórios. A constante alteração de ratio decidendi em julgados do egrégio Supremo Tribunal Federal nas primeiras décadas do século XXI atesta a hipótese em tela10. O referido fenômeno, a par das considerações já traçadas no tocante à liberdade criativa do hermeneuta característica do pós-positivismo como corrente jusfilosófica predominante na Teoria do Direito, também pode ter seu fundamento tanto na prática do rotulacionismo (no campo criminológico) quanto sob a óptica da manifestação do populismo penal (no campo jurídico-criminal), inclusive midiático (cf. MARQUES, BIANCHINI e GOMES, 2013).

Logo, a imperiosa necessidade de balizas objetivas previstas nas regras aplicáveis à teoria da pena no espectro de sua dosimetria, consagrado o método trifásico na prática forense nacional, promoverá a superação de tais assimetrias derivadas de vetustas redações presentes no Código Penal pátrio desde a formação do Brasil como Estado-nação, considerando a sobredita matriz sócio-histórica latina, colonial, escravista e autoritária ainda persistente nas relações sociais em território brasileiro, o que influencia sobremaneira seu sistema penal e, nas críticas tecidas neste estudo, seu sistema de justiça criminal.

4. Considerações Finais

Portanto, ratifica-se a hipótese de pesquisa segundo a qual o decisionismo judicial no sistema de justiça criminal brasileiro é violação ao devido processo legal influenciada tanto pela matriz sócio-histórica latina, colonial, escravista e autoritária, quanto pela percepção que as classes sociais dominantes (dentre as quais, inclusos os altos funcionários públicos dotados de poder decisório, como os juízes) possuem acerca da aplicação da pena criminal submetida a uma teoria da pena elucubrada em país cuja manifestação do modo de produção capitalista é historicamente recente e derivada de um modo de produção escravista desprovido de qualquer período de transição.

Neste sentido, o levantamento bibliográfico realizado nos campos do Direito Penal, da Criminologia Crítica e do Direito Processual Penal, além dos aportes teóricos relevantes na Historiografia e nas Ciências Sociais, sem olvidar da circunscrição do objeto de pesquisa pela Hermenêutica Jurídica, comprovou que as regras aplicáveis à dosimetria da pena criminal no Brasil são dotadas de abertura normativo-interpretativa, capaz de amoldar às prenoções de seu intérprete, o que não é desejável na perspectiva de um Direito Criminal liberal que observe as normas de proteção internacional dos direitos humanos, especialmente aquelas aplicáveis às vicissitudes regionais brasileiras, como a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica).

A Criminologia Crítica revela-se, nessa linha de raciocínio, como instância adequada para a compreensão da prática da aplicação da pena criminal na realidade brasileira, tornando viável a elaboração de uma crítica à teoria da pena com esteio criminológico, resguardadas tanto a independência científica da Criminologia frente ao Direito Criminal, quanto a autonomia metodológica da Criminologia Crítica frente à Criminologia Tradicional.

Logo, a superação da problemática apresentada na pesquisa perpassará pela reforma ampla da dogmática jurídico-penal brasileira, mormente pela publicação de leis alinhadas ao pensamento jurídico e social pós-século XXI, considerando o paradoxo entre o dinamismo típico da Criminologia como ciência social e a estabilidade do Direito Criminal como instância de controle social formal alinhavada na sociedade brasileira há séculos, tendo o CP/1940 já alcançado a marca de 80 anos de vigência, o que enseja mais que uma simples releitura ou novos métodos interpretativos, mas sim a emergência da publicação de novos Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execuções Penais, considerando estes três diplomas como o centro nevrálgico da dogmática jurídico-penal brasileira.

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Sobre o autor
Divo Augusto Cavadas

Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal, Direito Tributário e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. Crítica à teoria da pena e decisionismo judicial no direito criminal brasileiro:: Contributos da historiografia, hermenêutica jurídica e economia política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6671, 6 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93685. Acesso em: 10 out. 2024.

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