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A hipoteca romana

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10/01/2007 às 00:00
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NOTA PRÉVIA

No presente trabalho, que é parte integrante da avaliação da disciplina de Direito Romano, ministrada pelo Senhor Doutor António dos Santos Justo, optativa no curso de mestrado em Ciências Jurídico-Processuais (2005 – 2006), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, far-se-á uma abordagem geral sobre um dos direitos de garantia real, surgidos em Roma, nomeadamente, a hipoteca.

A abordagem do tema referido será realizada de forma a demonstrar, em linhas gerais, a origem e evolução do instituto; as formas de constituição, bem como o seu objeto; o conteúdo da hipoteca romana, demonstrando as faculdades inerentes tanto ao credor, como ao devedor, enquanto vigente a hipoteca; a possibilidade da cumulatividade de hipotecas sobre o mesmo bem, assim como as formas de proteção que eram permitidas para o credor e para o devedor buscarem a satisfação de seus direitos e, finalmente, os meios extintivos da hipoteca romana.

Diante da especificidade da disciplina à qual se submete o presente estudo, como o próprio nome revela – Direito Romano – e, também, da dilatada dimensão do assunto escolhido, a exposição será focada, basicamente, na hipoteca romana. Entretanto, como o assunto é latente e utilizado com vasta freqüência, tanto no país onde se realiza o curso de mestrado, como no Brasil, onde exerço a advocacia, restou inevitável a apresentação de algumas similitudes entre o instituto romano e as legislações portuguesa e brasileira.


SUMÁRIO:1.Introdução. 2.Da origem da hipoteca. 3.Da constituição. 4.Do objeto. 5.Do conteúdo. 6.Da pluralidade de credores hipotecários. 7.Dos meios de proteção . 8.Da extinção da garantia. 9.Considerações Finais

ABREVIATURAS

AHDEAnuario de Historia del Derecho Español (Madrid)

NNDI – Novissimo Digesto Italiano (Turim)

SDHI – Studia et Documenta Historiae et Iuris (Roma)

CC – Código Civil (brasileiro ou português)

ABREVIATURA DE FONTE

D. – Digesta (Corpus Iuris Civiles, I16 (Editora Theodorus MOMMSEN – Paulus KRÜGER/ Berlin, 1954).


1.Introdução

Os direitos reais de garantia que tiveram aplicação no direito romano são: a fiducia cum creditore, o pignus e a hypotheca.

A hipoteca romana, tema central deste estudo, é um direito real que tem como finalidade assegurar o cumprimento de uma obrigação, concedendo ao credor o direito buscar a posse do bem garantido no caso do inadimplemetno desta. Embora seja detentor deste direito desde que foi constituída a garantia hipotecária, o credor somente poderá fazer uso dele no momento em que se verificar o não cumprimento da avença. Durante o prazo estipulado para o cumprimento da obrigação não é realizada a traditio da res, somente passando para o credor no caso do inadimplemento do devedor, diferentemente da pignus datum, que se caracterizava pela detenção da coisa pelo credor desde o momento em que foi origianda a obrigação, ficando responsável pela conservação e pela restituição ao devedor no momento do adimplemento da obrigação.

A existência da garantia hipotecária está intimamenete ligada à duração da obrigação principal. A liquidação do crédito garantido simultaneamente extingue a garantia hipotecária.

Uma característica marcante da hipoteca é a sua oponibilidade erga omnes, que surgiu com a Serviana pigneraticia in rem. Daí resulta a expressão obligatio rei, res obligata [01], que define bem o vínculo da garantia hipotecária à coisa, estendendo-se o direito real do credor a qualquer possuidor da res, independentemente de ser o devedor ou terceiro.

Por ser um sistema carente de publicidade, o direito real de garantia hipotecária não era muito utilizado pelos romanos que davam preferência às garantias pessoais.

Porém, vale salientar que foi no direito romano que surgiu o primeiro embrião da publicidade hoje em dia conferida à hipoteca, através das hipotecas constituídas em documento público – instrumentum publice confectum –, instituídas pelo Imperador Léon.


2.Da origem da hipoteca

A origem do instituto da hipoteca é controvertida na doutrina especializada em direito romano.

Alguns doutrinadores são adeptos da teoria de que o surgimento da hipoteca deve ser creditada aos gregos devido ao termo hypotheca, de origem grega, ter primeiramente sido utilizado nesta civilização, aparecendo somente no direito romano, nas compilações justinianeas, no período pós-clássico.

Outros estudiosos do direito romano atribuem a origem da hipoteca aos romanos, nos praedia subdita vel subsignata [02], onde os imóveis eram dados em garantia a créditos do Estado ou de um Município. Caso a dívida não fosse adimplida, os bens seriam vendidos em favor do aerarium [03].

A praedia subdita vel subsignata é, portanto, considerada um direito de garantia real romano, mas não é, propriamente, uma hipoteca.

Há uma teoria sobre a origem do instituto da hipoteca que também defende o seu surgimento no direito romano, porém, era tratada pelos jurisconsultos LABEÓN, NERVA, PRÓCULO, CELSO, etc., como pignus cum non transit nec possessio ad creditorem.

Essa forma de garantia, sem a transferência da posse ao credor, teria surgido em Roma com os arrendamentos rurais.

O arrendatário, no princípio, dava em penhor, através de uma convenção, os utensílios da lavoura (invecta), os animais e os escravos (illata) - bens necessários para exploração da terra - como forma de garantia do pagamento da renda (merces). Essa forma de garantia, com a transferência da posse dos instrumentos de trabalho ao locador, impossibilitava o arrendatário de produzir na terra arrendada.

Desta forma, surgiu como solução o pignus cum non transit nec possessio ad creditorem, de forma que os invecta et illata introduzidos pelo arrendatário no bem arrendado continuavam garantindo o pagamento dos aluguéis em caso de inadimplemento, mas a posse permanecia com o locador para que pudesse desempenhar a sua atividade fim, a exploração da terra arrendada.

Surgiu, igualmente, na época clássica, o exemplo da convenção entre as partes referente ao aluguel de um predium urbanum: na casa alugada, quando se concluía o contrato locativo da habitação, surgia a hipoteca sobre os móveis introduzidos e os escravos do inquilino, como forma de garantir o aluguel [04].

No período clássico, antes mesmo da utilização do termo hypotheca, os romanos já tratavam desta garantia real que se baseava na convenção entre as partes sem haver transferência da posse, sob a denominação de pignus conventum¸ em contraposição ao pignus datum, onde havia a transferência da posse ao credor [05].

Para a jurisprudência romana, o pignus é um tipo único de garantia real, pelo qual a entrega da posse da res garantida pode ser imediata ou após verificado o descumprimento da obrigação (inter pignus et hypothecan tantum nominis sonus differt) [06].

A origem do termo hipoteca não parece estar ligada ao surgimento do instituto, uma vez que, na hipoteca romana, uma coisa é o batismo, outra é o nascimento. O termo hypotheca apareceu para os romanos nas compilações justinianeas, no período pós-clássico, tomando força e prevalecendo sobre o termo pignus conventum somente na época dos Severos, através da influência helenística [07] e da formação cultural do jurisconsulto [08], muito tempo depois da efetiva utilização da garantia sem transferência da posse, na época clássica.

Na época de LABEÓN, a hipoteca apareceu restrita aos casos dos arrendamentos rurais, onde eram dados em garantia os invecta et illata [09].

Com o passar dos tempos, mais precisamente no século I, a hypotheca passou a ser utilizada como forma de garantia de qualquer obrigação recaindo sobre os objetos suscetíveis de posse, desde que alienáveis [10].


3.Da constituição

Com essa evolução do instituto da hipoteca, desde o seu surgimento, que remonta à época clássica, com os invecta et illata, até ser utilizada para dar lastro a qualquer obrigação, surgiu a necessidade de demonstrar as suas formas de constituição:

a)por convenção das partes: essa foi a primeira forma de constituição de hipoteca, conhecida através da (1) garantia hipotecária dos invecta et illata, no caso do não pagamento da renda do fundus; (2) do aluguel do predium urbanum, onde a hipoteca recaía sobre os bens introduzidos no predium [11]e sobre os escravos do inquilino [12].

b)por testamento; [13]

c)por disposição legal [14]: A hipoteca legal, surgida no período clássico, tal como a hipoteca convencional, é observada nos seguintes casos: (1) a hipoteca em favor do fisco pelas dívidas fiscais do contribuinte [15], (2) a hipoteca em favor do pupilo sobre a res que o tutor ou um terceiro comprou com o seu dinheiro [16].

Na época pós-clássica foram admitidas, com freqüência, hipotecas legais gerais, que eram constituídas sobre o patrimônio do devedor, quais sejam, (1) do fisco, pelos créditos derivados de impostos; (2) do pupilo [17], do furiosus e do menor sobre o patrimônio do tutor e do curador pelas obrigações contraídas em seu nome [18]; (3) em favor do marido sobre os bens de quem prometeu constituir um dote; (4) da mulher sobre o patrimônio do marido, em garantia da devolução do dote, dos bens parafernais e da donatio propter núpcias [19]; (5) dos filhos sobre os bens do pai e da mãe, quando qualquer um deles contraía novo matrimônio [20]; (6) das igrejas sobre o patrimônio de seus enfiteutas, para garantir os créditos resultantes da deteriorização dos fundi [21]; entre outras.

d)por disposição de autoridade [22]: (pignus causa iudicati solvi) nos casos onde o réu era condenado e não quer cumprir a sentença, o juiz pode determinar a hipoteca dos seus bens [23].


4.Do objeto

O objeto da hipoteca pode ser, tanto as coisas corpóreas, como as incorpóreas, desde que sejam alienáveis [24], em virtude do conteúdo principal do direito de hipoteca ser o ius vendendi. [25]

No que diz respeito às coisas incorpóreas, na legislação justianea, consideravam-se suscetíveis de hipoteca alguns dos direitos reais, nomeadamente, o usufruto [26], a enfiteuse, a superfície [27], as servidões prediais rústicas [28] – as servidões prediais urbanas não estão incluídas nos rol de direitos hipotecáveis [29].

Incluem-se, aos direitos onde os romanos admitiam recair a garantia hipotecária, os créditos (pignus nominis) e, também, a coisa já penhorada (pignus pignoris ou subpignus).

Em se tratando de hipotecas gerais legais, que adquiriram grande importância na era pós-clássica, o seu objeto alcançava todo o patrimônio [30] do devedor, abrangendo os bens presentes e os futuros [31].

No tocante às coisas corpóreas, podiam ser objeto de direito real de garantia os frutos e as coisas futuras.


5.Do conteúdo

A garantia hipotecária não era meramente de natureza coativa [32]. Aos credores hipotecários eram facultados o ius distrahendi e o ius possidendi.

O ius possidendi se traduz no direito do credor de entrar na posse da coisa garantida desde que restou inadimplente o devedor. Pelo fato da hipoteca ser um direito real de garantia, gera efeitos erga omnes, podendo ser oposto pelo credor hipotecário contra todo e qualquer possuidor: proprietário ou terceiro.

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Sendo a hipoteca um direito que tem razão somente para garantir uma dívida ao credor hipotecário, não é atribuída a faculdade de usar a coisa, pois, em fazendo, incorrerá em crime de furtum [33].

Entrando o credor na posse da coisa, este adquire o direito de perceber os frutos produzidos por ela, compensando com o seu valor, primeiramente, os juros da dívida e depois o valor principal garantido. Todavia, se o valor dos frutos excedesse o principal, caracterizava-se o superfluum, podendo o garante reclamá-lo através da actio in factum concepta [34]. Sendo assim, era facultada a celebração de um pacto entre o credor e o devedor, denominado antichesis [35], onde ficava estabelecido que o devedor renunciava aos frutos da coisa e o credor renunciava aos juros da dívida [36].

O credor hipotecário, na posse do bem, em virtude do não pagamento da dívida, somente poderia vender a coisa dada em garantia no caso de o credor e de o devedor convencionarem a possibilidade de venda do objeto para o pagamento da dívida com o preço – o pactum de distrahendo pignor [37]. No caso do valor arrecadado com a venda do bem ser superior à dívida, o devedor tinha a faculdade de reclamar frente ao credor o excedente – superfluum –através de uma actio in factum.

Devido a freqüência com que ocorriam os pactos neste sentido, a partir de Constantino, a possibilidade de venda da coisa garantida (ius distrahendi) [38]passou a ser um elemento natural da hipoteca, tornando a pactuação desnecessária. Ocorre que, na época pós-clássica, surgiu a exigência de que o credor pedisse ao devedor, por três vezes, o pagamento da dívida antes de vender a coisa. Não sendo encontrado comprador, o credor poderia solicitar autorização ao imperador para se tornar proprietário da coisa garantida, facultando ao devedor o resgate mediante pagamento da dívida, no prazo de dois anos [39]. A ausência do resgate em tempo hábil converteu o credor em proprietário da coisa.

Outro meio de satisfação do crédito que o devedor tinha, frente ao não cumprimento da obrigação no prazo acordado, era ficar com a coisa dada em garantia a título de pagamento da dívida, a denominada lex comissoria. Para ser constituída a lex comissoria era imprescindível a realização do pacto entre o credor e o devedor [40].

Diante da carência de créditos na época pós-clássica, tornou-se usual a prática de hipotecas cujo valor da res era muito superior ao da dívida a ser paga. Com a freqüencia de casos de inadimplência era facultado ao credor ficar com a coisa hipotecada como satisfação da dívida, sem a obrigação de realizar o pagamento do eventual superfluum ao devedor [41], acarretando no enriquecimento deste frente a diferença verificada entre o valor da dívida e o da coisa hipotecada.

Conseqüentemente, Constantino proibiu o pacto comissório [42] devido a prática da usura. No entanto, continuou lícito ao credor, decorrido certo lapso temporal, tornar-se proprietário da res a título de compra e venda pelo justo preço, caso o devedor não cumprisse com o pagamento da dívida [43].

Admitindo que o credor entrasse na posse do bem garantido pela hipoteca, mediante a inadimplência do devedor, e que fosse credor do mesmo devedor de outras dívidas não garantidas pela hipoteca, era-lhe facultado reter a posse da coisa mesmo depois de satisfeita a dívida garantida, através da pignus Gordianum, constituída pelo Imperador Gordiano. O direito de posse somente cessava com a satisfação de todas as dívidas.


6.Da pluralidade de credores hipotecários

A hipoteca, por se tratar de um direito real de garantia onde não há a tradição da coisa para a pessoa do credor garantido, permite que sejam cumuladas várias hipotecas sobre a mesma res com o intuito de garantir inúmeras obrigações [44], podendo ser constituídas simultaneamente ou sucessivamente [45].

Nos casos onde se observava a falta de pagamento das obrigações garantidas pela hipoteca, deveria ser respeitada uma ordem de satisfação dos credores, qual seja: era acatada a ordem cronológica das hipotecas, devendo ser satisfeito, primeiramente, o credor cuja convenção foi celebrada anteriormente, seguindo o princípio prior tempore, potior iure [46]. Os credores sucessivamente posteriores seriam alcançados pela garantia no montante do seu crédito, no limite do resíduo da venda da res hipotecada.

Havendo mais de uma hipoteca constituída simultaneamente frente a diferentes credores e não havendo a possibilidade de empregar o princípio prior tempore, potior iure, preferia o possuidor, segundo a regra possidentis meliorem esse conicionem [47].

O credor posterior tem a faculdade de oferecer ao primeiro credor hipotecário a realização de seu crédito, através do ius offerendi. Independentemente da aceitação ou da recusa da oferta por parte do credor prior, o ofertante se coloca em sua posição de preferência.

Além do ius offerendi, podia se verificar, também, uma sucessão hipotecária – successio in locum – nas circunstâncias a seguir: (1) no caso de haver novação e o garante consentisse na transferência da hipoteca para garantir a nova obrigação; (2) quando se realizava um mútuo ao devedor hipotecário para que salde a dívida, a hipoteca era transmitida para garantir a nova obrigação; (3) quando o credor cedesse o seu crédito, gratuita ou onerosamente, a um terceiro, que se sub-rogava no seu direito de hipoteca.

A prioridade temporal não era absoluta, havendo exceções fundadas em privilégios ou em documentos [48].

A prioridade documental [49], estabelecida pelo imperador Léon, observa-se nas hipotecas constituídas em documento público – instrumentum publice confectum –, ou em documento privado subscrito por, pelo menos, três testemunhas idôneas – instrumentum quasi publice confectum. Esta forma de privilégio conferido à hipoteca documentada foi o primeiro embrião do sistema de publicidade deste direito real de garantia [50].

As hipotecas privilegiadas [51] eram constituídas legalmente e se davam em favor, por exemplo: (1) de créditos do Fisco; (2) do mutuante sobre a coisa comprada com a pecunia mutuada; (3) da mulher, sobre os bens do marido; (4) do pupilo sobre as res do tutor.

As hipotecas privilegiadas prevaleciam sobre as documentadas, e estas sobre as hipotecas com prioridade temporal [52].

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Sobre o autor
Rodrigo Ghisleni Fontana

advogado em Porto Alegre (RS), pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal), mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTANA, Rodrigo Ghisleni. A hipoteca romana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1288, 10 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9376. Acesso em: 26 abr. 2024.

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