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O federalismo fiscal na Constituição de 1988:

descentralização e recentralização

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20/01/2007 às 00:00
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Este trabalho tem por escopo caracterizar o arranjo institucional conferido ao pacto federativo pela Constituição do Brasil de 1988, especialmente sua face financeiro-fiscal, e analisar o desenvolvimento desse modelo original.

            1. Este trabalho tem por escopo caracterizar o arranjo institucional conferido ao pacto federativo pela Constituição do Brasil de 1988, especialmente sua face financeiro-fiscal, e analisar, em seguida, o desenvolvimento trilhado por esse modelo original, tendo em vista o conjunto de medidas promovidas pelo governo federal e aprovadas no Congresso Nacional desde a edição do "Plano Real", em 1994.

            Para tanto, caracterizaremos o federalismo, em linhas gerais e, de maneira específica, sua evolução institucional no Brasil. A seguir, analisaremos os pressupostos que induziram a edificação do modelo federativo estatuído pela Constituição de 1988, delineando as relações que sua forma possibilitou, na medida em que envolveu uma repartição de competências normativas [01], materiais [02] e tributárias [03], que deveriam ser realizadas sob o influxo de autonomias organizativas, administrativas e financeiras [04], todas conferidas pela "Constituição-Cidadã".

            Na seqüência, examinaremos, mais detidamente, a natureza do federalismo fiscal estabelecido em 1988, evidenciando as premissas que se lhe embasaram e os problemas que acarretou. Verificaremos, enfim, como este arranjo federativo foi trabalhado nos anos que se seguiram à promulgação da Carta Magna vigente, em vista da agenda dita "neoliberal" assumida pelo governo central a partir da edição do Plano Real e do movimento reformista que se seguiu. Ao final, deixaremos algumas considerações críticas sobre este processo de configuração de nosso federalismo fiscal vivido nos últimos 17 anos e ainda em curso [05]. O exame das situações envolvidas nessa rede inter-relacionada decorrerá, entretanto, não apenas da análise institucional do modelo de federalismo fiscal e de descentralização de políticas públicas e desenvolvimento regional constitucionalmente adotados, mas levará em conta o processo histórico no qual se inserem tais medidas, bem como as relações do ambiente político com o econômico, a partir da ação e dos interesses dos diversos atores envolvidos, mormente aqueles que ocupam posição hegemônica no bloco de poder.

            2. O federalismo é técnica de organização do Estado que se consagrou em parcela significativa dos países ocidentais desde a independência americana [06], geralmente em função de peculiaridades étnicas ou geográficas desses Estados nacionais.

            Conforme o desenho institucional que é efetivamente aplicado em cada Estado, bem como em decorrência da origem de cada pacto federativo, habitualmente se classificam os Estados Federados segundo o caminho que os leva à federalização [07], que os distingue em centrípetos e centrífugos [08]. Verifica-se, sob esse ângulo, que a federação norte-americana acontece mediante um movimento de centralização, com transferência do poder dos Estados para a União. Em países como Brasil, Alemanha e Argentina, o fenômeno ocorreu de forma oposta, com a descentralização política implementada por meio de atribuição às entidades subnacionais de parcela do poder originalmente detido pelo governo central. Estes diferentes processos históricos geraram, como seria de se esperar, aplicação diversa nestes mencionados Estados Federativos. Ao contrário do Brasil e dos demais Estados de movimento centrífugo, nos Estados Unidos a estrutura fiscal está no âmago do pacto constituinte, que distribui competências tributárias entre Estados e União conforme regra estática de predominância do interesse [09], sem preocupação com o resultado final produzido ou com um arranjo sistêmico mais complexo. As limitações e os poderes federais e estaduais são pautados pelas relações originalmente determinadas entre governo central e unidades autônomas subnacionais, os quais foram estabelecidos e evoluíram consoante o desenvolvimento do capitalismo naquele país. Diferentemente, no Brasil, a um processo histórico de federalização que parte do centro, soma-se complexa repartição de competências interpenetrada entre Estados, Municípios e União, o que torna a confecção do modelo de federalismo fiscal um tanto mais sofisticada e à mercê de maiores riscos.

            Tem-se sustentado, em nível doutrinário, que por se tratar de um federalismo descentralizador, o pacto federativo brasileiro deveria operar sempre no sentido centrífugo. Obviamente tal tese não foi sufragada pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, todas as vezes que foi chamado a se pronunciar, o fez em claro benefício do poder central [10].

            3. Além disso, as diferentes possibilidades engendradas pela idéia federativa geram, também, pelo menos outra categorização básica, qual seja a relativa à semelhança entre as diversas organizações que integram o Estado Nacional. Assim, há modelos assimétricos, como o norte-americano, no qual, em sua órbita de competência, o ente federado tem amplo poder e autonomia irrestrita. No caso brasileiro, contrariamente, pretende-se simetria entre as imagens institucionais erigidas em cada um dos entes federativos, em atendimento a disciplina imposta pela Constituição da República.

            A técnica de organização federada se funda, pois, em repartição de competências entre os entes que a compõem. No Brasil temos, nos termos da Constituição de 1988, talvez a mais complexa e ambiciosa partilha de competências, já que estão assentadas em um modelo que combina competências divididas de maneira horizontal e vertical [11], incidindo sobre a produção normativa, a execução de funções públicas e a geração e distribuição de receitas. Essa combinação pode incidir de maneira direta ou indireta em nosso federalismo fiscal, na medida em que possibilita diferentes tipos de regulação estatal sobre a dinâmica financeira dos entes federativos.

            4. O federalismo depende, também, de adequada representação política entre as unidades federadas. Na Constituição vigente preservou-se a representação bicameral, com o Senado espelhando a igualdade formal entre os Estados-membros, e a Câmara dos Deputados sendo escolhida em obediência ao princípio democrático, o qual é mitigado pela necessidade de isonomia material entre as diversas regiões. Este dado provoca distorções na representatividade popular, já que os Estados menos populosos e mais pobres têm representação relativamente superior à dos mais populosos e detentores de mais recursos. A representação política federativa é fator igualmente importante na configuração do federalismo fiscal, uma vez que grande parte da composição da receita pública decorre de transferências interfederativas voluntárias, cuja definição discricionária obedece mais às negociações políticas que às necessidades sociais.

            5. No que se refere especificamente à repartição do poder de tributar e das possibilidades de arrecadação, a Constituição da República inovou, objetivando descentralizar recursos em benefício de um federalismo de fato. Como se verá à frente, tal orientação é fruto da circunstância histórica pós-ditatorial e de valores e princípios que informaram a atividade constituinte.

            Em um adequado regime federativo, o sistema tributário deve distribuir receitas entre as várias unidades administrativas segundo objetivos e princípios estabelecidos em um pacto nacional. Deve-se fornecer condições para que as unidades federadas possam atender, de maneira autônoma ou pactuada, mas nunca subordinada, as demandas que lhes são atribuídas institucionalmente, sob pena de não se alcançar bases federativas sólidas [12]. No Brasil, que se caracteriza por grande heterogeneidade econômica entre as várias unidades federadas e diferenciadas bases tributárias, o sistema financeiro estatal deve adotar meios de transferências de recursos com sentido redistributivo entre as regiões, objetivando compensar ou atenuar as diferenças existentes entre elas, contribuindo para o equilíbrio do sistema e para a solidificação do federalismo.

            6. tratando do tema, José Luis Fiori salienta a existência, na elaboração constitucional, de premissas relacionadas à prioridade conferida na agenda pública para a construção de poderes locais eficientes e legítimos, com sólido vínculo com o Estado central, que se responsabilizaria pelas funções sistêmicas fundamentais e pela preservação da unidade federativa [13]. Afirma o autor que deveria haver uma complementaridade federativa, conducente a amplas negociações entre entidades federativas juridicamente iguais e materialmente desiguais, com manutenção de uma identidade nacional, de uma rede federada cooperativa e de democratização por meio da descentralização [14].

            Observa-se entre o período pré-constituinte e a ascensão de Fernando Henrique Cardoso ao poder (1985 – 1995) uma conjuntura de crise do estado nacional, com aumento do poder dos governadores e instituição de um ordem constitucional favorável aos Estados. Apresentou-se, no período a emergência de uma ordem federativa dita "estadualista", com o estabelecimento de padrões não cooperativos, predatórios, de relacionamentos dos Estados com a União e deles entre si [15]. Após a edição do Plano Real e por todo o período FHC, viu-se, contrariamente, o fortalecimento do governo federal, motivado pela crise das finanças públicas estaduais geradas por altos níveis de endividamento que se tornaram insustentáveis em vista da política econômica do Plano real. A crise financeira dos Estados os obrigou a renegociar suas dívidas com a União, em troca de ajuda para resolver seus problemas mais imediatos, como o pagamento dos servidores ou de suas dívidas junto ao mercado. Fruto dessa negociação das dívidas estaduais, viu-se a fragilização do pacto federativo, com o decréscimo da autonomia dos Estados, que se viram reduzidos, de fato, à condição de meras instâncias administrativas, despidas de poder político e capacidade de intervenção financeira. Observaremos, à frente, de maneira mais detida, que, a par de desconsiderar os princípios de finanças públicas firmados em nossa Constituição em nome de ajustes fiscais, reformas e reequilíbrio federativo, as medidas recentralizadoras executadas após 1995 não foram suficientes para romper com a lógica predatória do federalismo brasileiro, eis que permanece em um canto o governo federal e suas burocracias, lutando para manter o controle político e financeiro sobre o setor público e seus serviços, transferindo apenas responsabilidades para Estados e Municípios, e noutro canto, governadores e prefeitos procurando extrair da União mais recursos tributários, desvinculados de qualquer responsabilidade de gastos em áreas sociais pré-determinadas.

            7. A configuração do sistema tributário é, portanto, parte da definição essencial do pacto federativo, e é, também, instrumento da política econômica. Volta-se, pois, para o estabelecimento, no âmbito da divisão espacial do poder, de um arranjo por meio do qual as forças políticas dominantes, tangenciadas por condicionamentos impostos pelo contexto histórico e pelas relações travadas pelas forças políticas e econômicas presentes em um certo cenário, se comprometem com determinados objetivos, os quais são extraídos exatamente deste conjunto de condicionantes.

            O federalismo fiscal constitui, assim, a forma pela qual a economia do setor público é repartida nas diversas esferas federadas de competência, espelhando, de um ponto de vista substantivo, compromissos e objetivos assumidos pelo Estado com determinadas forças políticas e econômicas.

            É importante realçar a dupla face assumida pelo pacto federativo na esfera das finanças públicas, uma vez que a mera análise formal da estrutura de um modelo de federalismo fiscal não permite que se compreenda seus objetivos e fundamentos [16].

            No caso brasileiro, somente uma análise mais profunda como essa possibilita o fornecimento de explicações adequadas para a manutenção de uma estrutura tributária e financeira que vem se concretizando em visível oposição tanto aos princípios firmados na Constituição de 1988, que constituem nosso projeto de nação, quanto a princípios específicos das finanças públicas, como os da competitividade, da equidade e do equilíbrio federativo. Verifica-se, aliás, que não somente o modelo previsto na Constituição nunca foi, de fato, levado a sério, porque se o fosse causaria transtornos e constrangimentos ao condomínio político-econômico hegemônico, como, a partir do Plano Real e das reformas que o sucederam, certos princípios e objetivos formais da Carta de 1988 foram institucionalmente transformados, abolidos ou interpretativamente deturpados, de maneira que a idéia de federalismo como meio de redução das desigualdades regionais e democratização das relações políticas, econômicas e sociais, ruiu completamente.

            Há, contudo, riscos proporcionais à complexidade do pacto federativo e às dimensões, clivagens e contradições decorrentes de relações políticas e econômicas em confronto, além daquelas próprias do momento histórico. Talvez o principal problema a ser enfrentado seja o referente à manutenção da autonomia das instâncias inferiores sem prejuízo de uma postura cooperativa e equilibrada entre elas. Cabe, neste caso, definir um arranjo institucional adequado tanto a necessidades que serão perseguidas, quanto a perigos e incertezas que deverão ser enfrentadas.

            Afonso, Varsano e Ferreira assinalam, aliás, que, em tese, a possibilidade de existir competição fiscal atrelada à descentralização de políticas públicas, favorece a qualidade destas e cria um ambiente propício para a inovação na seara pública, além de democratizar relações de poder, na medida em que permite maiores controles por parte da sociedade e maior número de atores investidos de poder para definir o sentido da estrutura tributária e do gasto público. Segundo eles, contudo, esse modelo pode produzir efeitos indesejáveis, como estimular uma concorrência na esfera tributário-fiscal conducente a resultados econômicos ineficientes tanto no tempo quanto no espaço nacional, ou impossibilitar a execução de políticas públicas de caráter geral e redistributivo. Para eles o desafio básico seria o de impedir ou reduzir os efeitos indesejáveis da competição fiscal, preservando seus benefícios, por meio de um sistema de transferências intergovernamentais e harmonização da tributação [17].

            8. Cumpre notar que desde a adoção do federalismo no Brasil temos experimentado diferentes modelos de distribuição das competências tributárias entre as unidades governamentais.

            Se na primeira República (1889-1930) tivemos marcada fragilidade fiscal e política da União, em benefício do poder das oligarquias estaduais, em todos os períodos históricos seguintes observamos a precedência do poder central sobre o estadual. Já no Governo Vargas há visível fortalecimento do Poder Central, o qual se acentua a partir de 1937 e vige por todo o Estado Novo. Uma nova pactuação política aliada a bases econômicas em mutação possibilitaram a destruição das bases de poder da República Velha, com a posterior acomodação de seus interesses nos novos aparelhos do Estado. Neste período a centralização das receitas constituiu elemento essencial para o exercício do mando político pelo poder autoritário, na medida em que a descentralização dos gastos atuava legitimando o ambiente político.

            No período liberal ocorrido entre 1946 e 1964, percebe-se uma tentativa de federalização semelhante à de 1988, a qual não foi suficiente para lidar com as profundas contradições decorrentes das condições sociais, políticas e econômicas do país, razão pela qual permaneceram inalteradas as relações interfederativas, com a permanência de autonomias meramente jurídicas e desigualdades regionais significativas. Nesta etapa histórica, porém, viveu-se importantes tentativas de se equilibrar as disparidades regionais, com a criação da SUDENE, por exemplo, presa a recursos vultosos e vinculados.

            O Estado burocrático-autoritário estabelecido no período militar (1964-1985), centralizou decisões de política fiscal e tributária, ativando um sistema de transferências intergovernamentais para Estados e municípios, mediante fundos específicos, condicionados ao exercício de determinadas funções [18]. As políticas regionais redistributivas, por seu turno, cedem a outros imperativos políticos e econômicos, tornando-se fragmentadas e ligadas a objetivos pulverizados.

            Ao fim da ditadura militar havia, no bojo do movimento de redemocratização do país e na essência do anseio constituinte, uma pressão pela construção de um federalismo mais equilibrado, com descentralização de receitas e afirmação das autonomias administrativa e financeira das entidades subnacionais.

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            9. A Assembléia Constituinte transcorreu sob pressão de Estados mais desenvolvidos, pregando a necessidade de descentralização do poder de tributar, o que lhes possibilitaria auferir mais receitas. Não obtiveram êxito, já que as referidas estruturas desequilibradas de representação política, presentes no momento constituinte, trataram de aprovar uma descentralização que teve por base a ampliação das transferências fiscais já existentes. O objetivo principal foi, então, a correção de distorções oriundas da concentração de recursos nos Estados mais ricos da Federação.

            Foi estabelecido, assim, um sistema misto de transferências intergovernamentais, combinando transferências horizontais e verticais, que podem ser definidas em função da arrecadação do imposto, da população ou da área da unidade federada, ou da renda gerada.

            Foi, também, ampliada a base tributária do principal imposto estadual, o ICM - Imposto sobre Circulação de Mercadorias, por força da inclusão de serviços e dos antigos impostos únicos sobre lubrificantes, combustíveis, energia elétrica, transportes, telecomunicações e minerais.

            O Governo Central, fragilizado pela ascensão do poder local, cedeu aos Estados mais desenvolvidos ampliação da base tributária e transferências fiscais. Os governos locais que se financiam através de base tributária própria ficaram em situação confortável.Os Estados menos desenvolvidos da Federação foram beneficiados pelos critérios de transferências de recursos federais, os quais se tornam sua principal fonte de receita, e os Municípios menores ficaram na dependência das transferências provenientes da União (Fundo de Participação dos Municípios – FPM).

            Pretendeu-se, bem assim, tornar eficiente o sistema tributário, por intermédio do qual as despesas devem ser o mais descentralizadas possível, a fim de que os serviços públicos possam ser ofertados com as características e preferências específicas de cada comunidade, e de que haja uma distribuição equânime da receita pública [19].

            10. O federalismo fiscal foi definido na Constituição de 1988 consoante os termos mais gerais do pacto federativo, princípios tradicionais de finanças públicas e objetivos a serem alcançados pela sociedade brasileira. A estrutura tributária permaneceu tripartida, divida em impostos, de natureza não-vinculada, e taxas e contribuições de melhoria, de caráter vinculado. Qualquer dos entes federativos é competente para a imposição desse três tipos de tributos. Além desses, contudo, existem outras contribuições, ditas sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, exclusivos da União, salvo a contribuição previdenciária que cada unidade federativa pode cobrar para custeio de regime previdenciário do funcionalismo público.

            A edição de normas gerais em matéria financeira e tributária compete à União, devendo os Estados complementar ou suplementar a normatização geral.

            A Constituição disciplinou de forma expressa os impostos dos Estados [20] e Municípios [21], ampliando a base de receita tributária destes. Relacionou, ainda, os impostos da União [22], que, todavia, poderá instituir outros não previstos na Carta Magna. A par dessa partilha, o texto constitucional trouxe também mecanismos de repasse vinculado de receitas para os vários entes federativos [23]. Esses mecanismos têm por objetivo assegurar a todas as entidades federativas um mínimo de recursos para o exercício de suas atribuições. Há, ainda, outros instrumentos, ligados à possibilidade de desenvolvimento de regiões carentes de recursos e economicamente débeis [24].

            Essa estrutura descentralizou recursos, aumentou a participação de Estados e Municípios na receita total e fortaleceu a idéia federativa. Todavia, foi vítima de problemas acarretados pela aplicação do modelo constitucional, o que levou a modificações relevantes, que distanciaram o desenho institucional primitivo do que é atualmente posto em prática.

            11. Nossa Constituição adota um modelo federativo que, a par do reconhecimento da igualdade formal entre os entes federados, também considera a necessidade de se buscar isonomia substancial entre tais entidades, na medida em que elenca entre seus objetivos fundamentais a redução das desigualdades regionais e, no plano do federalismo fiscal, admite que determinadas regiões sejam favorecidas por políticas fiscais tendentes a promover seu desenvolvimento.

            Observe-se que a questão federativa, no âmbito da Constituição Brasileira, se refere não apenas à questão organizativa do Estado, mas à concretização do princípio democrático, na medida em que promove descentralização de decisões políticas e repartição de recursos e fontes de receitas de forma igualmente descentralizadora [25].

            O pacto federativo estabelecido na Constituição brasileira de 1988 é, como já dito, alicerçado na distribuição entre diferentes entes federados de competências para tributar e em capacidades de perceber receitas públicas. O alto grau de heterogeneidade encontrado no país exige, sob parâmetros de justiça e democracia, que a adoção de políticas públicas seja descentralizada, o que exige cooperação interfederativa e a construção, de fato, de autonomias política, administrativa e financeira, por parte dos diversos entes, que já as detêm formalmente por força de norma constitucional.

            Note-se que o federalismo fiscal de 1988 é fundado tanto nas idéias clássicas do federalismo, como em recentes teorias do poder local, segundo as quais a descentralização financeira possibilita decisões políticas tomadas por maior número de representantes, controle social, distribuição mais eficiente de serviços em virtude das capacidades financeiras e administrativas estabelecidas, além de proximidade do cidadão dos focos de poder.

            Concedeu-se, então, alto grau de autonomia tributária e político-jurídica aos entes estaduais e locais, em contraste com certa dependência política e incapacidade de os governos subnacionais definirem e implementarem sua agenda política. Na Constituição da República, Estados e Municípios ganharam maior autonomia na tributação e na repartição da receita dos tributos, bem como uma margem relativa de liberdade para determinar a alocação de seus recursos.

            Como resultado da redemocratização e da descentralização ocorreu um fortalecimento do poder político e financeiro dos governos subnacionais, especialmente dos Estados e suas capitais. Contudo, isso não implicou em unidades subnacionais iguais em capacidade de cumprir tarefas institucionais, nem em distribuição uniforme dos benefícios oriundos da nova pactuação federativa.

            Críticos do modelo adotado enfatizam que em um país de grande dimensão territorial e marcado por desigualdades sociais e regionais profundas, as relações intergovernamentais, o grau de autonomia local e os efeitos da descentralização variaram substancialmente e seus resultados permaneceram dependentes da composição e atuação das forças políticas e econômicas locais. O alto grau de heterogeneidade entre as regiões brasileiras poderia prejudicar os objetivos da descentralização e das reformas da administração pública local, na medida em que a descentralização financeira em favor das esferas subnacionais reduziria as possibilidades de ajuda federal e estadual às esferas locais com o objetivo de minimizar os efeitos da referidas desigualdades. Notam, também, que apesar da existência dos fundos de participação, existem milhares de municípios que não podem sobreviver sem a ajuda adicional da União e dos Estados e nem podem iniciar sozinhos esforços de reforma [26]. Constatações desse naipe embasaram o movimento recentralizador ocorrido na segunda metade dos anos 90, o qual assumiu diversas faces.

            12. Observe-se que a reconfiguração da federação brasileira em 1988 constituiu importante elemento de um contexto político relativamente complexo, perpassado por relações políticas típicas de um espaço público ampliado.

            Nessa conjuntura a transferência de recursos para as unidades subnacionais elevou-se acentuadamente, atingindo 47% da receita do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

            O governo central teve subtraído do seu controle parcela expressiva da receita pública nacional, ficando obrigado à utilização de estratégias de incremento de receita que, via de regra, descartariam o uso prioritário dos impostos que seriam repartidos, já que se optasse por fazê-lo, poderia tornar excessivamente onerosa sua política fiscal.

            Já os Estados e Municípios passaram a desfrutar de substancial aumento de receita, o que sustentou a expansão de seus gastos de maneira acentuada. Houve, simultaneamente, a oferta de atrativos fiscais para ampliar as estruturas econômicas regionais, gerando a chamada "guerra fiscal" [27]. Essa competição tributária interfederativa privilegiava aspectos extrafiscais, já que, paradoxalmente, verificou-se profunda acomodação dessas unidades, que não se preocupavam em elevar a receita tributária própria [28].

            Essa estrutura foi, desde sua implementação, premida por imperativos da gestão da política macroeconômica, em particular as relativas à política de estabilização, à política monetária e à disciplina fiscal. Em uma conjuntura marcada por elevado desequilíbrio entre os diversos Estados da Federação, as relações intergovernamentais e as propostas de política global foram marcadas por negociações vigorosas, muitas vezes de difícil consenso.

            13. Estudos aplicados ao caso brasileiro têm evidenciado que nossa estrutura federativa não possui um desenho institucional que se lhe garanta, por si só, atingir seus objetivos de equilíbrio político interfederativo e de promoção do desenvolvimento regional. Pelo contrário, dependem, em grande parte da agenda política firmada em face da correlação de forças entre o governo central e as unidades subnacionais, do equilíbrio entre os três poderes republicanos e da posição do Estado diante das necessidades da dinâmica econômica.

            Realçamos, sob esse prisma, o fato de que, após um impacto inicial, desfavorável à composição de sua receita, o governo da União começa a recuperar terreno, utilizando-se de uma estratégia dupla: aumento de sua receita exclusiva e repartição do ônus público. Piora-se, com isso, a qualidade do sistema tributário brasileiro, pois fica mais regressivo, com o aumento da carga tributária relacionada às contribuições. Desequilibra-se o pacto federativo.

            É fundamental, no equacionamento desta questão, o papel desempenhado pelo Plano Real. Trata-se de uma medida de política econômica calcada no controle da inflação, com impacto direto nos controles do câmbio e dos juros. A este plano se seguiram rigoroso ajuste fiscal, privatizações e ampliação da receita federal e de sua participação na composição de receita pública nacional. Simultaneamente, centralizou-se o controle de políticas públicas, cresceram os casos de vinculação de receitas [29] e impuseram-se restrições à ação dos Estados e Municípios por força de legislação e de acordos de negociação das dívidas desses.

            Note-se que o Plano Real retirou das unidades subnacionais os benefícios diretos que aqueles gozavam em virtude da possibilidade de manipulação da realidade inflacionária. Pegou essas entidades desprevenidas e sem meios para arcar com o ônus da estabilização monetária seguida de estagnação econômica. Prensados, coube apenas a essas unidades se render às condições impostas pela União, que, ao contrário, manipulou o sistema tributário em seu favor e, entregando serviços a Estados e, principalmente, Municípios, reduziu seus compromissos.

            O processo de centralização, administrativo e fiscal, deflagrado no bojo do Plano Real, associado à política econômica decorrente do citado plano e ao processo de isomorfismo organizacional normativo derivado da Reforma do Estado promovida no mesmo período e sob os mesmos fundamentos maiores, não contribui, evidentemente, para um equacionamento adequado da questão federativa. Pelo contrário, contribui para aprofundar contradições geradas pelos modelos de desenvolvimento econômico historicamente adotados, ao qual se ajustaram políticas financeiro-fiscais equivalentes, pelas desigualdades regionais também forjadas em nosso processo histórico, e, ao mesmo tempo, para impedir que opções de mudanças, pretendidas pelo constituinte, sejam buscadas mediante iniciativas, a serem tomadas pelas entidades federativas menores, que sejam capazes de inovar ou de simplesmente de revelar uma prática diversa da política imposta pelo poder central.

            14. A partir de 1995, ocorreu um movimento de enfraquecimento do pacto federativo e conseqüente reforço do poder central, motivado diretamente pelo impacto do Plano Real e das reformas que se lhe seguiram, promovidas pelo governo federal.

            Entre as medidas tomadas, destacam-se, o "Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados", a implementação do "Fundo de Estabilização Fiscal", a edição da "Lei Kandir", que desonerou exportações da incidência do ICMS; a "Reforma da Previdência", a edição da "Lei de Responsabilidade Fiscal", a vinculação de recursos para as áreas da educação básica (FUNDEF) e saúde (Emenda Constitucional n° 29), o impedimento às emancipações de Municípios (Emenda Constitucional n° 15) e, especialmente, o incremento da receita da União, decorrente de tributos pertencentes com exclusividade ao governo federal (CSSL, COFINS, CPMF, PIS, INSS e IOF).

            15. Mônica Mora analisa o processo de endividamento estadual e seus desdobramentos, entre os quais se destacam o Programa de Reestruturação Fiscal e Financeira e a Lei de Responsabilidade Fiscal [30], realçando uma instabilidade histórica que se reflete em movimentos de centralização e descentralização permanentes, encarece a importância de referenciais institucionais que ancorem as relações intergovernamentais.

            Neste contexto de instabilidade, a Constituição de 1988 deu um importante passo na construção da autonomia das unidades subnacionais, institucionalizando a descentralização fiscal, a partir da discriminação das fontes de receita dos governos estaduais e locais e da autonomia administrativa aos entes da Federação, e revendo as relações fiscais intergovernamentais.

            Ocorre que as relações intergovernamentais no Brasil incorporam o endividamento dos Estados e Municípios. No contexto federativo brasileiro, essas relações financeiras intergovernamentais assumiram um papel importante na negociação da autonomia dos entes federados.

            Exercendo sua autonomia as entidades subnacionais se endividaram e se viram obrigadas a estabelecer relações de dependência ao poder central. A natureza desse endividamento evidenciou a precariedade do equilíbrio federativo, vulnerável diante da política monetária e da dependência da União para rolar suas dívidas. O crescimento acentuado da dívida mobiliária, após a implementação do Plano Real, em decorrência da capitalização dos juros ao principal, em um período relativamente curto, colocou em discussão o desequilíbrio financeiro dos estados brasileiros.

            O problema, que já vinha se arrastando desde longa data, tornou-se insustentável após a estabilização monetária, abrindo a oportunidade de controle das entidades federativas pelo governo da União. A Lei n° 7.614, de 1987, editada antes da Constituição, já refletia uma situação de instabilidade institucional ocorrida no governo Sarney, em uma conjuntura marcada por pressões dos governadores [31], de um lado, e pelos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, do outro. Autorizava o tesouro nacional a financiar o serviço da dívida interna contraída pelos Estados, permitindo que esses emitissem títulos para atendimento a diversas previsões legais. Possibilitaram-se, então, operações de auto-financiamento pelos Estados, que elidiam a Resolução n° 62, de 1975, do Senado Federal, por meio da presença de um interveniente, entidade estadual. Uma operação triangular escamoteava a real posição da dívida estadual e impedia o controle pelo tesouro nacional.

            Em 1989, com a Lei n° 7.976, já na vigência da Constituição atual, possibilitou-se o refinanciamento, em até 20 anos, da dívida dos Estados e Municípios com o tesouro nacional e do serviço da dívida externa contratada com aval da União. Já a Lei n° 8.727, de 1993, estabeleceu diretrizes para a consolidação e o reescalonamento, pela União, de dívidas internas das administrações direta e indireta dos demais entes federativos. Tratou a matéria com maior amplitude, possibilitando ampla renegociação das dívidas dos Estados e Municípios. Não havia tantas condições relativas ao ajuste fiscal, pelo contrário, atinha tão-somente à exigências formais.

            16. Nos termos do Voto n° 162/95, do Conselho Monetário Nacional, dispôs-se o Programa de Apoio à Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados, segundo o qual a União forneceria recursos para os Estados, por meio de empréstimos condicionados ao cumprimento de inúmeras exigências relacionadas à administração financeira dos entes federativos, os quais, de fato, perderiam sua autonomia na gestão dos negócios estaduais.

            Observe-se, por exemplo, o contrato firmado em fevereiro de 1996 pelo governo do Estado de Minas Gerais com a Caixa Econômica Federal, tendo como garantidora a União [32], para abertura de crédito em benefício do Estado-membro.

            Entre outras cláusulas que retiravam do Estado-membro significativa parcela de manobra de suas finanças públicas, havia uma série de condições como fixação de meta de resultado primário, impedimento à admissão de servidores e à concessão de reajustes salariais e redução de gratificações e vantagens, estabelecimento de meta de arrecadação tributária, limitação a transferência de recursos aos Municípios, fixação de valores máximos para despesas de capital, implementação de controle centralizado das empresas estatais, privatização de bancos, revisão de benefícios fiscais, apresentação de estudo atuarial referente ao regime previdenciário dos servidores, redução da folha de pessoal, privatização e extinção de empresas estatais, além de prestação contínua de diversos tipos de informação ao governo federal.

            Em 1998 o Estado mineiro, já com base na Lei n° 9.496, de 1997, firmou novo contrato, igualmente rico em cláusulas atentatórias à autonomia estadual, mediante o qual a dívida mobiliária do Estado foi assumida pela União.

            Por meio dessa estratégia, aliás, a União ofereceu à maioria dos Estados a possibilidade de sair de uma sistemática de desembolso financeiro refém das altas taxas de juros então praticadas, retirando, porém, a possibilidade de freqüentes rolagens, como acontecia. A nova dívida deveria ser resgatada em até 30 anos, com juros fixos que variavam entre 6% e 7,5%, com limite mensal para o encargo contratado, o qual chegaria, em 1998, a 12% da receita líquida real.

            Verificou-se um certo isomorfismo induzido normativa e coercitivamente [33]. Pretendia-se, assim, que uma única receita se adequasse a todos os Estados, violando-se a idéia contida no princípio federativo, relativa à possibilidade do exercício de autonomias pelas unidades federativas.

            17. A Resolução n° 78, de 1998, do Senado Federal [34], dispunha sobre operações de crédito interno e externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Nela havia disposições rigorosas referentes a operações de crédito por antecipação de receita orçamentária e por dívida fundada, apresentando metodologia de cálculo do resultado primário e da receita líquida real e, bem assim, estabelecia limites e condições de autorização dessas operações. Além disso, para realizar essas operações o ente federativo ficaria submetido a uma rigorosa rotina de encaminhamento de informações, tais como balancetes de execução orçamentária e de execução financeira, ao governo federal, que passaria a ser tutor da vida financeira do Estado [35].

            A Lei n.º 9.496, de 1997, estabeleceu critérios para a consolidação, a assunção e o refinanciamento, pela União, da dívida pública mobiliária e outras que especifica, de responsabilidade dos Estados e do Distrito Federal.

            Esse Programa de Reestruturação e de Ajuste Fiscal, além dos objetivos específicos para cada unidade da Federação, conteria, obrigatoriamente, metas ou compromissos quanto a dívida financeira em relação à receita líquida real - RLR; resultado primário, entendido como a diferença entre as receitas e despesas não financeiras; despesas com funcionalismo público; arrecadação de receitas próprias; privatização, permissão ou concessão de serviços públicos, reforma administrativa e patrimonial e despesas de investimento em relação à RLR.

            18. Os meios de refinanciamento previstos na Lei 9.496/97 adequavam as formas de financiamento à capacidade de pagamento dos Estados. Renegociou-se mais de R$ 100 bilhões, atingindo 11% do PIB. Nesse processo, constata-se uma iniciativa em direção à institucionalização das relações financeiras intergovernamentais e a um maior grau de transparência. Observa-se, igualmente, uma mudança na lógica de controle ao endividamento que passa a privilegiar o equilíbrio fiscal intertemporal.

            No Programa de Reestruturação Fiscal e Financeira estavam previstos ajustes nas esferas patrimonial, fiscal e financeira. O ajuste fiscal, fundamentado no aumento das receitas e contenção das despesas, era premissa para assegurar condições ao pagamento das prestações do refinanciamento. Constatou-se que, após a assinatura dos contratos de refinanciamento, o endividamento dos Estados se estabilizou. Seu custo foi a perda da autonomia dos Estados para a gestão de seus negócios.

            19. Verificou-se que a introdução do Plano Real apresentou um primeiro momento de euforia e crescimento econômico [36], mas, em seguida, a partir de 1995, revelou sua dupla face problemática, consistente na combinação de baixos indicadores de crescimento econômico com altas taxas de juros. A dívida líquida do setor público saltou de R$152,4 bilhões em dezembro de 1994, para R$367,7 bilhões em outubro de 1998 [37]. A dos Estados e Municípios sai de R$24,6 bilhões e vai a R$121,1 bilhões no mesmo período. Vê-se que a participação dos entes descentralizados passa de 16,15% para 32,92%. Seu déficit operacional avançou de 0,56% para 2,73% do PIB.

            Observe-se que, na esteira de sua implementação o citado plano econômico se concentrou no ajuste fiscal, que incluía não só as contas do governo central, mas o saneamento das finanças públicas das demais instâncias da federação.

            Percebe-se que o governo FHC pautou suas ações no campo econômico pela crença em que, uma vez contida a inflação pela taxa de câmbio, a implementação das reformas sugeridas pelo Consenso de Washington levaria o país a uma trajetória de crescimento sólido. Assim que ficou evidente a insuficiência dessa receita, o governo, em vez de rever sua posição original, aprofundou a política vigente e, consoante recomendação do FMI, adotou uma política monetária ainda mais restritiva, com controle da expansão dos agregados monetários e altas taxas de juros, bem como aprofundou suas metas de superávit primário e sua política de privatizações, e empenhou-se na estabilização da dívida pública [38].

            Neste processo, o governo federal se concentrou em gerar receita por meio da criação ou elevação de tributos que não eram repartidos com Estados e Municípios. Foi, de fato, uma burla oblíqua ao pacto federativo, na medida em que o ente central, detentor do controle da política econômica geral, fragilizou as finanças estaduais e municipais e assegurou somente a si condições satisfatórias de enfrentar a situação. Elevou-se a alíquota da COFINS de 2% para 3%, houve a criação e elevação da CPMF, o aumento das contribuições previdenciárias dos servidores com ampliação da base de contribuintes do regime geral, além de elevação da alíquota do IOF e da CSSL.

            20. A edição da Lei Complementar n° 87/96 – Lei Kandir -, também contribuiu para o declínio financeiro dos Estados, na medida em que desonerou da incidência do ICMS determinados itens [39], os quais nunca foram integralmente ressarcidos pela União aos Estados [40].

            O Fundo de Estabilização Fiscal, criado em 1996, sucedendo ao Fundo Social de Emergência, de 1994, também retirou recursos das instâncias subnacionais, deslocando-as para um fundo financeiro-contábil destinado a finalidade certa, atrelada a imposições derivadas do ajuste fiscal.

            21. A Reforma da Previdência, editada pela Emenda Constitucional n° 20, de 1998, também desferiu duro golpe na autonomia e nas finanças de Estados e Municípios. A maioria das entidades federativas mantinha seus servidores em regimes próprios de previdência destituídos de qualquer base atuarial. Arrecadavam contribuições e não as mantinham em fundo específico, gerando situação de completa instabilidade financeira. Com a reforma, os servidores temporários da Administração foram obrigados a se vincular ao regime geral de previdência (INSS), incrementando a receita do Orçamento da seguridade social, gerido pela União. No mesmo diapasão, Estados e Municípios ficaram sujeitos a rigorosa disciplina de repasses a fundos previdenciários específicos, ou a adesão ao INSS, em qualquer dos casos implicando crescimento da despesa pública da ordem de 10 a 20 por cento sobre a folha de pessoal.

            22. Em 2000 foi editada a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF -, impondo restrições, sacrifícios e comportamento uniforme [41] a Estados e Municípios diferentes.

            A lei estabeleceu regras e limites a fim de assegurar o equilíbrio das finanças públicas e pode ser vista como a consolidação de uma nova concepção de controle das finanças públicas. Passou a haver estreita conexão entre a ação governamental e metas fiscais ajustadas às possibilidades financeiras da unidade federativa.

            Impediu-se o endividamento público, bem como a assunção de compromissos que ofereçam riscos fiscais. No mesmo sentido, vedou-se a concessão de incentivos e benefícios fiscais.

            Apesar de ser impulsionada por um princípio razoável, relativo ao equilíbrio das contas públicas, a LRF desconheceu tanto a diversidade entre os entes da federação, quanto necessidades conjunturais que possam levar a que o setor público possa ser, momentaneamente, melhor atendido por medidas que, eventualmente, não estejam abrangidas no conceito de responsabilidade fiscal. Esclareça-se que, como em outras normas citadas, alguns dispositivos da LRF afrontam de maneira cristalina o pacto federativo, impedindo a efetivação dos ideais de federalismo fiscal plantados pelo constituinte de 1988.

            23. Outra importante estratégia financeira utilizada no período refere-se à vinculação de receitas a objetivos pré-determinados. No texto constitucional original já havia previsão de aplicação de um mínimo de recursos em educação.

            Nos anos 90 forma aprovadas vinculação de recursos para a educação fundamental e para a saúde pública.

            Esses mecanismos de vinculação também se colocaram contra as autonomias consagradas pelo desenho institucional da federação, na medida em que obrigaram os entes federados a um comportamento unificado. Neste caso, porém, buscou-se assegurar resultados mínimos em áreas necessitadas de proteção especial, como saúde e educação.

            24. Verificou-se, então, maior eficiência na institucionalização na vinculação de recursos públicos, no que respeita à garantia de um mínimo de recursos aplicados em funções públicas certas [42]. Produziu-se, neste caso, Incentivo à produção de determinados bens públicos, como no caso do FUNDEF.

            Em uma economia com bens públicos, o bem público consumido por um indivíduo não exclui o consumo por outro, sendo de difícil quantificação a demanda efetiva por este tipo de bem, impedindo a existência de um sistema de preços capaz de conduzir a economia a uma alocação eficiente, ou a um ótimo de Pareto.

            Teorias como a de Charles Tiebout, ou a de Wallace Oates, propõem, por caminhos diversos, uma relação de maior possibilidade de reconhecimento das preferências dos cidadãos, em função da proximidade entre governante e governado.

            Vê-se, todavia, que em instâncias maiores há a possibilidade de geração de ganhos de escala e de internalização de benefícios, e nas menores haverá maior conhecimento da preferência do cidadão e oferta de bens públicos condizentes com suas demandas. Ambas as situações podem levar a efeitos indesejados. Sob decisões descentralizadas cada comunidade não leva em conta as externalidades positivas e negativas de suas decisões fiscais sobre o bem estar dos residentes de outras comunidades e pode produzir regressividade tributária e do perfil de gastos. Em ambos os casos o investimento em políticas sociais seria reduzido.

            A vinculação de recursos pode minorar esses problemas, mediante a imposição de regras de cumprimento obrigatório pelos entes federados, consubstanciadas na aplicação de um volume mínimo de recursos em bens públicos prioritários e geradores de externalidades positivas, como saúde preventiva e educação.

            A criação do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), em 1996, foi pioneira no sentido de se criar um mecanismo de vinculação de recursos capaz de gerar resultados concretos, uma vez que foram explicitamente definidos os tipos específicos de despesas incentivadas, os mecanismos financeiros do incentivo e os instrumentos de fiscalização e controle.

            No âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio de suas Normas Operacionais Básicas, também se tem conseguido este efeito indutor, assim como nos casos em que os Estados têm regulamentado a parcela de distribuição do ICMS aos Municípios desvinculada do valor adicionado fiscal.

            25. Fabrício Augusto de Oliveira, estudando os casos do FUNDEF e do SUS, observa que as vinculações podem ser importantes instrumentos para a efetivação da descentralização de políticas públicas, porque forçam a ampliação e fixam recursos para o financiamento de áreas sociais vitais. Além disso, aumentam a responsabilidade das esferas subnacionais, no que se refere a administração e execução dos gastos públicos, favorecendo a cooperação interfederativa. Lembra o autor, porém, que as peculiaridades de cada objetivo o distingue, devendo ser verificado, em cada caso, as necessidades de ação complementar dos entes federados maiores sobre os de menor porte. [43].

            26. Observamos, então, diversos aspectos do federalismo fiscal brasileiro, especialmente de sua configuração após a instituição do Plano Real e do conjunto de reformas implementadas pelo Governo FHC.

            Conflitos importantes mantêm-se pendentes, como os acarretados pela tensão entre descentralização tributária, responsabilidade fiscal e desigualdades regionais, entre as políticas fiscais de cada entidade federativa e as derivadas dos imperativos de desenvolvimento regional e de democratização das estruturas de poder.

            Observamos que apesar da descentralização fortalecer as possibilidades de consolidação democrática, pela incorporação de vários centros de poder à cena política e à tomada de decisões, existem fatores econômicos e políticos que influenciam os resultados da descentralização, tais como a limitação da descentralização financeira em vista das fortes disparidades regionais e sociais.

            A descentralização fiscal, no entanto, força o sistema político a encaminhar, mesmo que precária e temporariamente, soluções para as clivagens regionais brasileiras, sendo que a experiência brasileira confirma a visão de que o federalismo, como mecanismo de divisão territorial de poder, é uma forma de acomodar conflitos, os quais são inerentes às relações intergovernamentais em países como o Brasil, que optam por fazer a abertura política antes das reformas fiscal, econômica e administrativa.

            Ao optar por este caminho, a federação se fortalece pela incorporação de demandas regionais à agenda política nacional, embora esse caminho seja mais lento na busca de soluções mais estáveis para os problemas fiscais e administrativos do país. Por esse motivo é que, em um dado momento, esta equação se inverte, priorizando-se as questões econômicas, administrativas e fiscais em detrimento do pacto federativo, das necessidades regionais e do potencial descentralizador. Nos últimos anos, além de direcionar a política financeira dos Estados e Municípios, a União restringiu seus meios de ação, seja retirando recursos, seja não lhes dando participação no aumento da receita tributária geral, seja pela imposição de políticas de privatização.

            Apesar de ser formalmente prioritária [44] a redução das desigualdades regionais mediante políticas de fomento e de benefícios e incentivos fiscais cedeu em benefício da estabilidade econômica, do ajuste fiscal e de uma modificação no papel do Estado. Na ausência de ações combinadas para criar condições favoráveis à descentralização da produção e da renda, o antagonismo cresce entre os entes federativos, instaurando, de um lado, a impossibilidade da ação estatal direta no combate às disparidades regionais, e, de outro, na margem de ação restante, uma competitividade predatória em detrimento de um federalismo cooperativo [45]. É este o desafio colocado para o federalismo fiscal brasileiro na primeira década do século XXI.

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Sobre o autor
Wladimir Rodrigues Dias

O autor é professor universitário e advogado. É consultor da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e Professor da Escola do Legislativo, onde coordena os cursos de pós-graduação. Foi Juiz titular do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (2014-2016). Foi professor da PUC-MG e do UNIBH. É Doutor em Direito Público pela PUC/MG, com estágio doutoral na Universidade de Coimbra; Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra; Mestre em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro; Pós-Doutorando em Direito pela Universidade Nova de Lisboa e pela Universidade de Messina; É sócio-diretor e advogado do escritório Rodrigues Dias e Riani Advocacia e Consultoria Jurídica; Foi Ouvidor Eleitoral da OAB/MG; É diretor do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Wladimir Rodrigues. O federalismo fiscal na Constituição de 1988:: descentralização e recentralização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1298, 20 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9411. Acesso em: 19 abr. 2024.

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