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O combate à corrupção no Brasil:

responsabilidade ética e moral do Supremo Tribunal Federal na sua desarticulação

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23/01/2007 às 00:00
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3. Atos de improbidade e crimes de responsabilidade: noções distintas e inconfundíveis

A tese de que a Lei de Improbidade veicularia crimes de responsabilidade encontrou pouco prestígio na doutrina [16] e nenhuma adesão na jurisprudência. A primeira dificuldade que se encontra é identificar o que venham a ser crimes de responsabilidade, proposição que enseja não poucas dúvidas e perplexidades. Para o Presidente da República, crime de responsabilidade é uma infração político-administrativa que o sujeita a um julgamento político (sem necessidade de fundamentação) perante o Senado Federal. [17] Para o Ministro de Estado, é uma infração associada a atos políticos e administrativos que o sujeita a um julgamento totalmente jurídico (com a necessidade de fundamentação) perante o Supremo Tribunal Federal. [18] Para o Prefeito Municipal, é um crime comum, que o expõe a uma pena de prisão. [19] E para os Senadores, Deputados e Vereadores? Não é nada. Em outras palavras, esses agentes não se enquadram na tipologia dos crimes de responsabilidade, estando sujeitos, unicamente, ao controle político realizado no âmbito do próprio Parlamento, o que, eventualmente, pode resultar na perda do mandato. [20]

A partir dessa constatação inicial, já se pode afirmar que a "tese" prestigiada por inúmeros Ministros do Supremo Tribunal Federal não comporta uma resposta linear, pois, para alguns agentes, o crime de responsabilidade ensejará um julgamento jurídico e, para outros, um julgamento político, isto para não falarmos daqueles que sequer são alcançados pela tipologia legal.

Avançando nos alicerces estruturais da curiosa e criativa "tese", argumenta-se que boa parte dos atos de improbidade definidos na Lei nº 8.429/1992 encontra correspondência na tipologia da Lei nº 1.079/1950, que trata dos crimes de responsabilidade, o que seria suficiente para demonstrar que a infração política absorveria o ato de improbidade. Além disso, o próprio texto constitucional, em seu art. 85, V, teria recepcionado esse entendimento ao dispor que o Presidente da República praticaria crime de responsabilidade sempre que atentasse contra a probidade na Administração, possibilitando o seu impeachment. Como o parágrafo único do último preceito dispõe que esse tipo de crime seria definido em "lei especial", nada mais "natural" que concluir que a Lei de Improbidade faz às vezes de tal lei. Afinal, se é crime de responsabilidade atentar contra a probidade, qualquer conduta que consubstancie improbidade administrativa será, em última ratio, crime de responsabilidade.

Com a devida vênia daqueles que encampam esse entendimento, não tem ele a mínima plausibilidade jurídica. Inicialmente, cumpre manifestar um certo alívio na constatação de que os crimes contra a Administração Pública tipificados em "leis especiais", que consubstanciam evidentes manifestações de desprezo à probidade, não foram considerados crimes de responsabilidade!

O impeachment, desde a sua gênese, é tratado como um instituto de natureza político-constitucional que busca afastar o agente político de um cargo público que demonstrou não ter aptidão para ocupar. [21] Os crimes de responsabilidade, do mesmo modo, consubstanciam infrações políticas, sujeitando o agente a um julgamento de igual natureza. Nesse sentido, aliás, dispunha a Exposição de Motivos que acompanhava a Lei nº 1.079/1950, ao tratar do iter a ser seguido na persecução dos crimes de responsabilidade, que "ao conjunto de providências e medidas que o constituem, dá-se o nome de processo, porque este é o termo genérico com que se designam os atos de acusação, defesa e julgamento, mas é, em última análise, um processo sui generis, que não se confunde e se não pode confundir com o processo judiciário, porque promana de outros fundamentos e visa outros fins". [22]

Entender que ao Legislativo é defeso atribuir conseqüências criminais, cíveis, políticas ou administrativas a um mesmo fato, inclusive com identidade de tipologia, é algo novo na ciência jurídica. Se o Constituinte originário não impôs tal vedação, será legítimo ao pseudo-intérprete impô-la? E o pior, é crível a tese de que a Lei nº 1.079/1950 é especial em relação à Lei nº 8.429/1992, culminado em absorver a última? Não pode o agente público responder por seus atos em diferentes esferas, todas previamente definidas e individualizadas pelo Legislador? Como é fácil perceber, é por demais difícil sustentar que uma resposta positiva a esses questionamentos possa ser amparada pela Constituição, pela moral ou pela razão.

Não se pode perder de vista que a própria Constituição fala, separadamente, em "atos de improbidade" [23] e em "crimes de responsabilidade", [24] remetendo a sua definição para a legislação infraconstitucional. [25] Como se constata, por imperativo constitucional, as figuras coexistem. Além disso, como ensejam sanções diversas, a serem aplicadas em esferas distintas (jurisdicional e política), não se pode falar, sequer, em bis in idem.

Com escusas pela obviedade, pode-se afirmar que a Lei nº 1.079/1950 é a lei especial a que refere o parágrafo único do art. 85 da Constituição, enquanto a Lei nº 8.429/1992 é a lei a que se refere o parágrafo 4º do art. 37.

Os agentes políticos, assim, são sujeitos ativos em potencial dos atos de improbidade, conclusão, aliás, que encontra ressonância na termos extremamente amplos do art. 2º da Lei de Improbidade: "reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior"

Apesar da clareza desses argumentos, ainda se deve perquirir se seria (ética e moralmente) permitido ao intérprete último da Constituição construir uma interpretação semelhante àquela que vem paulatinamente delineando.


4. Interpretação constitucional

A interpretação jurídica reflete um processo intelectivo que permite sejam alcançados conteúdos normativos a partir de fórmulas lingüísticas, [26] indicativo de que o intérprete constrói a norma com observância de um dado balizamento, o texto normativo. [27] O intérprete identifica a fonte de direito, associa a disposição normativa à realidade e, a partir de uma operação mental, individualiza a norma. [28] Essa atividade não reflete propriamente uma "(re)produção", [29] pois o texto não possui um sentido imanente, [30] em que a atividade do intérprete se limitaria a mostrar o seu conteúdo. [31]

Sob a epígrafe da interpretação jurídica podem ser incluídos dois sentidos distintos: a) a análise do significado de um conjunto de dados lingüísticos e, mais especificamente, de textos normativos; e b) o ato pelo qual se produz uma norma particular a partir da concretização de uma disposição normativa geral e abstrata. [32] Esse processo, por sua vez, sofre a influência de fatores práticos, teóricos e ideológicos, [33] que refletem, respectivamente, a realidade, a metodologia jurídica e os valores prestigiados pelo intérprete.

A interpretação jurídica, assim, deve ser concebida como um processo aberto, não de submissão a um conteúdo estruturalmente definido ou, mesmo, de recepção de uma ordem previamente dada. [34] A operação conducente à identificação do conteúdo da norma assume uma feição necessariamente criativa: [35] não no sentido da edição de uma norma geral a partir de um vazio legislativo, mas como reflexo da integração da atividade do intérprete àquela iniciada pelo legislador.

Não é por outra razão que se atribui ao intérprete um poder de nível idêntico ao da autoridade que editou a disposição normativa objeto de interpretação: "o intérprete da lei detém um poder legislativo e o intérprete da Constituição um Poder Constituinte". [36] As opções valorativas do intérprete terminam por aperfeiçoar os contornos semânticos da disposição normativa, assumindo vital importância na construção do seu conteúdo: [37] poder constituinte e intérprete - em momentos que, embora sucessivos, integram uma unicidade operativa - são os responsáveis pela individualização da norma constitucional.

O reconhecimento da força normativa da Constituição e a necessidade de determinar o seu significado bem demonstram que a interpretação constitucional em muito se assemelha à interpretação jurídica em geral. As especificidades, no entanto, não permitem uma ampla e irrestrita superposição entre essas figuras. Apesar de igualmente voltada ao delineamento da norma, a interpretação constitucional é diretamente influenciada pelo caráter fundante da Constituição, que ocupa uma posição de preeminência na hierarquia do sistema, sendo este um nítido diferencial em relação à interpretação das demais espécies normativas. [38] A supremacia constitucional é um claro indicativo de que o processo de concretização das normas constitucionais, incluindo a atividade interpretativa, apresenta funções e métodos próprios, conferindo-lhe algumas características de inegável singularidade.

Acresça-se que a interpretação constitucional sofre a ação de três elementos hermenêuticos que apresentam uma operatividade mais limitada no âmbito da interpretação jurídica em geral. São eles a evolutividade, a politicidade e a extrema sensibilidade axiológica. [39] A evolutividade sofre a influência dos contornos acentuadamente abertos das disposições constitucionais, o que lhes assegura grande mobilidade e um grande poder de adaptação aos circunstancialismos presentes no momento de sua aplicação. A politicidade está associada ao fato de a ordem constitucional regular as principais "portas de entrada" da política na esfera do direito, que são a organização dos órgãos de soberania e o processo de elaboração normativa. Quanto ao fator axiológico, é possível afirmar que as Constituições modernas, sectárias do pluralismo político e que buscam harmonizar uma multiplicidade de padrões ideológicos, ao que se soma a estrutura demasiado aberta de suas disposições, são o campo propício à proliferação de valores, de indiscutível relevância na concretização do seu conteúdo.

Interpretação e modificação refletem os dois níveis de desenvolvimento constitucional, sendo necessariamente influenciadas pelas "cristalizações culturais" do meio social. [40] Assim, é absolutamente normal que disposições constitucionais idênticas sejam interpretadas de forma diferente no tempo e no espaço, permitindo que de um mesmo texto sejam extraídos conteúdos distintos conforme a cultura em que apareça. [41]

A interpenetração entre texto normativo e realidade é um claro indicativo de que a norma constitucional não é atemporal ou indiferente aos padrões sociais do momento de sua aplicação. Ainda que a Constituição formal apresente uma vocação à perenidade, característica inerente à própria concepção de constitucionalismo, as normas dela extraídas não assumem um contorno idêntico. A norma constitucional é volátil, sustentando-se a partir de um discurso argumentativo contemporâneo à realidade que direciona a sua concretização. [42]

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A integração entre os planos real e jurídico também se faz sentir na orientação constitucional aberta, representada por Häberle com a tensão entre o possível (potencialidades normativas do texto), o necessário (reflete as pré-compreensões e aspirações do intérprete) e o real (os condicionamentos de ordem circunstancial). [43] Entre esses fatores se produzirá tanto uma relação de concorrência, como, sobretudo, de cooperação, exigindo seja identificada a "dose correta" de cada um deles para que o processo de concretização seja corretamente finalizado: uma "boa" exegese constitucional tenderá a ser o resultado dessa tríade cognitiva.

A Constituição, corretamente interpretada, alcançará um "final feliz" (happy ending), noção indicativa daquilo que a justiça ou a filosofia política requer, [44] vale dizer, corresponderá aos valores supremos ou históricos que inspiram a ordem jurídica. [45] A partir da atividade desenvolvida pelo intérprete, a Constituição, como o direito, pode ser justa ou injusta, conclusão que será alcançada com a realização de um juízo valorativo voltado à interação entre disposição normativa e realidade. [46] Em outras palavras, somente será possível concluir pela justiça ou injustiça de uma disposição constitucional ao final do processo de concretização. O objetivo da interpretação constitucional é conduzir o operador do direito à obtenção de um resultado racionalmente justificável e constitucionalmente correto.

A importância da interpretação constitucional decorre de três fatores principais: [47] a) a indeterminação de sentido do texto, que pode ser vago ou ambíguo, absorvendo uma pluralidade de conteúdos, isto sem olvidar que as disposições constitucionais são acentuadamente conflitantes; b) a irrelevância da intenção dos constituintes; e c) a evolução das concepções políticas e sociais, exigindo a contínua atualização do conteúdo normativo da Constituição.


6. Ideologia dinâmica de interpretação constitucional

Entrando em vigor, a Constituição assume individualidade própria e desprende-se da vontade constituinte: o conteúdo da ordem constitucional é encontrado a partir de seu texto, não do elemento anímico que influenciou o poder responsável pela sua elaboração.

Longe de ser um instrumento de regulação meramente sazonal, a Constituição é vocacionada à continuidade, devendo acompanhar o Estado em todas as suas vicissitudes históricas, sociais e culturais. No entanto, se o texto (programa da norma) é o mesmo, como assegurar a sobrevivência da ordem constitucional em realidade (âmbito da norma) distinta daquela contemporânea à sua entrada em vigor? Como regular situações futuras, desconhecidas quando do surgimento da Constituição? Em uma palavra, com a sua interpretação.

A Constituição, ainda que estática no texto, é dinâmica no conteúdo, [48] estando o seu evolver dependente de uma interpretação prospectiva, vale dizer, de uma identificação de sentido contemporânea à sua aplicação. Fosse prestigiado o seu sentido originário, ignorando-se todo o processo evolutivo da sociedade, o dever ser se distanciaria de tal modo do ser que terminaria por transmudar-se em algo impossível de ser. Tal ocorrendo, a Constituição não mais poderia subsistir, acarretando a ruptura da ordem constitucional, efeito inevitável na medida em que as alterações na vida social são mais céleres que as alterações promovidas nas disposições constitucionais.

Observado o balizamento fixado pelo texto constitucional, é ampla a liberdade do intérprete na sua constante releitura, permitindo que, sem acréscimos, modificações ou supressões formais, seja a Constituição continuamente atualizada.

Wróblewski [49] atribuiu a essa concepção o designativo de ideologia dinâmica de interpretação jurídica, contrapondo-a à ideologia estática de interpretação jurídica. A primeira defende a adaptação do direpito às necessidades da vida social, desprendendo-o do legislador histórico; a segunda, por sua vez, prestigia os valores básicos de certeza e estabilidade, vinculando a norma à vontade do legislador histórico e não admitindo seja ela atualizada pelo intérprete. [50] Enquanto a ideologia dinâmica visualiza matizes de adaptabilidade e criatividade na interpretação, melhor se adaptando às vicissitudes da vida social, a estática a concebe como uma atividade de descobrimento, resultando num "governo dos mortos sobre os vivos". [51] Apesar de voltada à interação entre texto e realidade, essa classificação, quanto aos seus efeitos, pode ser reconduzida às teorias subjetiva e objetiva, conforme seja prestigiada, ou não, a vontade do legislador. [52]

Também se pode falar em interpretação como "ato de conhecimento" ou "ato de vontade". [53] No primeiro caso, parte-se da premissa de que o texto possui uma unidade de sentido, que encontra abrigo na vontade do legislador; no segundo, ao revés, é reconhecida a impossibilidade de se atribuir um sentido claro e unívoco ao texto e aos seus mentores, não bastando o mero conhecimento de algo previamente ultimado, sendo necessária a consciente formação do que anteriormente fora apenas delineado. [54]

Acresça-se que a norma constitucional, apesar de individualizada a partir de um texto, sofre a influência de outros textos e de outras normas igualmente integrantes do sistema. [55] Uma disposição constitucional não pode ser concebida como uma partícula isolada, insuscetível de influência do exterior e impassível de influenciá-lo. Integra uma unidade existencial (a Constituição) e será direcionada por essa unidade no processo de delineamento da norma. Essa constatação também contribui para demonstrar a inviabilidade da ideologia estática, pois a interação das disposições e das normas do sistema impede a manutenção do seu sentido original sempre que novas disposições sejam aprovadas ou antigas disposições sejam modificadas ou suprimidas. [56]

A força normativa da Constituição não se coaduna com o subjetivismo da mens legislatoris, não sendo legítimo que seu alcance e seus efeitos sejam forjados em elementos de natureza individual, já que sua gênese se encontra atrelada a caracteres eminentemente sociológicos. Em síntese: "interpretatio ex nunc e não interpretatio ex tunc". [57]

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. O combate à corrupção no Brasil:: responsabilidade ética e moral do Supremo Tribunal Federal na sua desarticulação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1301, 23 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9417. Acesso em: 24 nov. 2024.

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