O direito penal material, como é sabido, tem por uma de suas finalidades aquela que se refere à proteção da pessoa humana. Assim, é de se salientar que o fundamento básico de todas as sanções penais previstas encontra-se na Constituição Federal, em seu artigo 1º, III: a dignidade da pessoa humana. Mas não é só. O princípio basilar da dignidade da pessoa humana é o fundamento de todos os direitos e garantias fundamentais, de modo que estes, direta ou indiretamente, vão remontar a ele.
Quando tratamos de crimes contra o patrimônio, faz-se necessário colhermos na ordem constitucional brasileira aqueles direitos que dão fundamento à penalização ao desrespeito dirigido contra o patrimônio das pessoas. Mas antes, é preciso estabelecer-se o que vem a ser patrimônio.
Patrimônio é tudo aquilo que possui valor econômico, isto é, é o plexo das relações jurídicas de um sujeito apreciáveis economicamente, podendo ser direitos reais ou direitos obrigacionais. Assim, qualquer relação jurídica que gere efeitos econômicos (incluindo tanto elementos ativos como passivos) é denominada patrimonial, haja vista que tais efeitos afetarão (positiva ou negativamente) o patrimônio de pelo menos uma pessoa.
Quanto aos direitos presentes na Carta Constitucional, o principal é o direito à inviolabilidade da propriedade, presente no caput do artigo 5º. Há que se observar que a propriedade à qual se refere o texto constitucional é, por uma questão de interpretação sistemática, tanto a patrimonial como a extrapatrimonial. Nos delitos que analisaremos a seguir a propriedade deve ser entendida sob um viés patrimonial.
São crimes contra o patrimônio: o furto (artigos 155 e 156), o roubo (artigo 157), a extorsão (artigos 158, 159 e 160), a usurpação (artigos 161 a 162), o dano (artigos 163 a 167), a apropriação indébita (artigo 168 a 170), o estelionato e outras fraudes (artigos 171 a 179), a receptação (artigo 180) [01].
Há que se fazer algumas observações acerca dos artigos 181 a 183 do Código Penal, os quais são aplicáveis a todos os crimes previstos no título sobre Crimes contra o patrimônio (artigo 155 a 183).
O artigo 181 estabelece a escusa absolutória, confirmando a existência do crime, mas isentando de pena o sujeito ativo que cometa crime contra o patrimônio: de seu cônjuge, na constância da sociedade conjugal; de ascendente ou descendente seu, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.
O artigo 182, por sua vez, torna a ação pública de iniciativa pública incondicionada, que é a regra nos crimes contra o patrimônio, em ação pública de iniciativa pública condicionada à representação, caso o crime contra o patrimônio seja cometido em prejuízo: do cônjuge, consensual ou judicialmente separado; de irmão, legítimo ou ilegítimo; de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
Por fim, o artigo 183 estabelece as exceções das exceções, de modo a prescreve que não serão aplicadas as regras postas pelos artigos 181 e 182 quando: o crime for de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando houver emprego de grave ameaça ou de violência à pessoa; quando o crime for praticado contra pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos. Também não serão aplicadas as regras dos artigos 181 e 182 ao estranho que participar do crime.
Estabelecidas tais regras, passamos à análise dos seguintes tipos penais conhecidos como Crimes contra o patrimônio: furto, roubo e extorsão.
FURTO
O furto simples, ou em seu tipo fundamental, encontra-se definido pelo artigo 155: subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Assim, o agente retira da vítima coisa qualquer. JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI afirma que na doutrina há três correntes sobre a tutela jurídica no delito de furto [02]. A primeira defende que a tutela é apenas em relação à propriedade da coisa. A segunda, que a tutela é apenas em relação à posse da coisa. E a terceira: a tutela jurídica se refere tanto à posse como à propriedade. Há ainda, a nosso ver, uma quarta corrente, a qual admite que a tutela jurídica abarca a posse, a propriedade e a detenção da coisa. BITENCOURT escreve que, além da posse e da propriedade da coisa, admite-se também "a própria detenção como objeto da tutela penal, na medida em que usá-lo, portá-lo ou simplesmente retê-lo representa um bem para o possuidor ou detentor da coisa [03]". A adoção de cada tese implicará principalmente no entendimento acerca da consumação do crime em estudo.
Acolhemos a quarta corrente, e entendemos que o crime se consumará mediante a subtração e conseqüente posse, direta ou indireta, propriedade ou detenção da coisa. Há doutrina que afirma que a consumação se dará mediante a presença de dois elementos: subtração e posse mansa e tranqüila da coisa. Data maxima venia, discordamos integralmente da necessidade da tal posse mansa e tranqüila da coisa, o legislador foi bem claro ao dizer que o crime de furto se dá com a subtração, para si ou para outrem, de coisa alheia móvel [04]. Note bem que as elementares estão bem claras: subtrair, coisa móvel alheia, para si ou para outrem; não faz o tipo penal qualquer outra exigência.
Basta, pois, o animus de subtrair a coisa, de modo que a posse, direta ou indireta, ou a propriedade sobre ela pode ter qualquer duração, mesmo que mínima, e, mesmo assim haverá o delito. É preciso notar que a subtração tem de ser feita em relação a uma coisa. Assim, preciso é que falemos acerca do momento consumativo do delito em epígrafe. BITENCOURT afirma que existem três correntes: a) para ocorrer consumação, basta o deslocamento da coisa; b) para ocorrer consumação, é preciso que a coisa seja afastada da esfera de vigilância da vítima; c) para ocorrer consumação, necessária se faz a posse mansa e tranqüila, mesmo que momentânea, da coisa [05].
Consideramos que o momento consumativo do delito de furto ocorrerá quando o agente passa a, pelo menos, deter a coisa, como se sua própria fosse [06]. Há, pois, uma inversão ilícita da detenção, posse ou propriedade da coisa. CAPEZ lista algumas hipóteses em que o delito de furto apresenta-se consumado: perda pelo agente do bem subtraído (é o caso em que o agente furta a coisa e, logo depois, a joga ao mar), prisão em flagrante, subtração de parte dos bens [07].
Surge, então, a questão da possibilidade da tentativa. Como se trata de delito material, a ilação é de que a tentativa é possível. Vislumbramos um exemplo: Tício, ao iniciar a execução do furto da bicicleta de Caio, é detido por Mélvio, vizinho de Caio. Isto é: a tentativa ocorrerá, haja vista que, por circunstâncias alheias à vontade de Tício, o furto não se consumou. A doutrina põe outras situações: produto com sistema antifurto, loja com fiscalização de seguranças, coisa com dispositivo antifurto, punguista que enfia a mão no bolso errado da roupa da vítima [08].
Situação interessante é aquela em que o agente furta a coisa, mas logo em seguida a lança ao mar: entendemos que o furto já se consumou. Ora, o agente subtraiu, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, ou seja, a situação fática se adequou ao substrato normativo: ocorreu o furto. Em suma: a consumação se dá com a subtração, seja para que fim for, seja por quanto tempo durar, desde que a conseqüência seja a inversão da posse, direta ou indireta, ou da propriedade da coisa.
Daí que a coisa, para que se configure o furto, deverá ser móvel. Necessário se faz apresentar o conceito legal de bem móvel: são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social, é o que prescreve o artigo 82 do Código Civil. Assim, fica clara a opção do legislador ao incluir o termo móvel como elementar do crime em epígrafe: se a coisa for imóvel, a sua subtração importará na alteração de sua substância, de sua estrutura ou de sua destinação econômico-social [09]. Estabelece BITENCOURT que, para o direito penal, coisa móvel tem a seguinte conceituação: "é todo e qualquer objeto passível de deslocamento, de remoção, apreensão, apossamento ou transporte de um lugar para outro", ao que complementa: os imóveis e os acessórios do imóvel, somente se, por qualquer meio, forem mobilizados, podem ser objeto de furto [10]. De forma geral, as coisas passíveis de furto são aquelas que são corpóreas e materiais.
Situação interessante é a do furto de energia. Estabelece o artigo 155, § 3º, do Código Penal: equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico. Ao que melhor dispõe o artigo 83, I, do Código Civil: consideram-se móveis para os efeitos legais as energias que tenham valor econômico. Portanto, enxergando-se o ordenamento jurídico como um todo, as energias que tenham valor econômico não devem mais ser equiparadas às coisas móveis, haja vista que a lei já as considera coisas móveis. São energias que têm valor econômico: energia elétrica, energia nuclear, gás (por tubulação ou embotijamento), energia térmica, energia solar, energia mecânica, energia genética, energia intelectual exteriorizada, sinal de tv a cabo, dentre outros exemplos.
Surge um primeiro caso: ocorrência de furto de água. Há notícias de que o mesmo gato utilizado para furtar energia elétrica está sendo utilizado para furtar água. O tipo penal, neste caso de gato de água não é o de furto, e sim o de usurpação de águas (artigo 161, § 1º, I): desviar ou represar, em proveito próprio ou de outrem, águas alheias [11].
Outro caso é aquele que se refere aos navios e às aeronaves. Os navios e as aeronaves não são bens imóveis [12], e também não há que se falar que são equiparados a bens imóveis quando sobre eles recai hipoteca: "hipoteca é um direito real, que recai sobre imóvel, navio ou aeronave, alheio, para garantir qualquer obrigação de ordem econômica [13]". Ora, há que se relembrar que a legislação atual prevê a hipoteca naval e a hipoteca de aeronaves. Estabelece o artigo 1.473, VI e VII, do Código Civil: podem ser objeto de hipoteca os navios e as aeronaves.
Portanto, já temos três elementares: subtração de coisa e coisa móvel. Apresentamos a quarta: a coisa, além de ser móvel, tem de ser alheia. Ora, se a coisa for própria, o delito será o de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no artigo 346: tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção. O conceito de coisa alheia é simples: coisa alheia é toda coisa que pertence a outrem.
Concordamos com NUCCI quando este argúi que a coisa que tem um valor meramente pessoal para a vítima não deva ser considerada objeto material do crime de furto [14]. Ora, a proteção dada pelo Código Penal gira em torno do patrimônio, ou seja, tudo aquilo que possui valor econômico, de modo que todas as outras coisas que, se subtraídas, não gerem qualquer grau de redução patrimonial para a vítima, não devem ser consideradas penalmente puníveis, cabendo apenas sua discussão em sede cível. Também não são abarcadas pelo Código Penal as situações que envolvam a subtração de coisas abandonadas (res derelicta), de coisas que não pertençam a ninguém (res nullius) e de coisas de uso comum (res commune omnium) como o sol e o ar, as quais não integram o patrimônio de vítima alguma.
O cadáver pode ser objeto material do crime em estudo caso tenha valor econômico e esteja na posse legítima de alguém. Inexistindo valor econômico, sobre a conduta de subtração de cadáver por incidir o artigo 211: crime contra o respeito aos mortos. Caso se trate de coisas perdidas (res deperdita), estas, se subtraídas, configuram o delito de apropriação, previsto no artigo 169, II.
Na hipótese de coisas de valor ínfimo, deve-se tomar bastante cuidado, para que não se confunda tal situação com aquela prevista no artigo 155, § 2º, em que a coisa deve ter pequeno valor [15]. Ora, no primeiro caso, trata-se da aplicação do princípio da insignificância (ou da bagatela); no segundo, de causa de diminuição de pena [16] – e isso faz uma imensa diferença. Pelo princípio da bagatela, infere-se que o direito penal não se ocupa de coisa de somenos importância. Por exemplo: Tício está em uma revendedora de automóveis e, ao assinar o contrato com o revendedor Mélvio, utiliza-se da caneta deste, mas, pensando pertencer-lhe, coloca-a em seu bolso.
Então há que se falar no furto famélico, o qual constitui estado de necessidade do agente, o qual subtrai gêneros alimentícios, os quais não representam qualquer acréscimo ao patrimônio do agente. É o famoso caso apresentado na literatura mundial por Victor Hugo, em sua célebre obra Os Miseráveis, em que Jean Valjean subtrai um pão para saciar a própria fome. A doutrina e a jurisprudência estão acordes, pelo menos em sua grande maioria, pela não-punibilidade do furto famélico.
Distinta situação é aquela da causa de diminuição de pena, prevista no artigo 155, § 2º, que reproduzimos: se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa. O pequeno valor a que se refere o dispositivo legal, deve ser entendido como o valor da coisa, e não o valor do prejuízo sofrido, haja vista que, quando o legislador quer considerar o valor do prejuízo, traz isso expresso, como se pode depreender do artigo 171, § 1º: se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo. Assim, posiciona-se a corrente majoritária no sentido de que a coisa será considerada de pequeno valor quando for inferior ao salário mínimo vigente no país no momento do delito [17].
No caso do § 2º, para que o juiz, alternativamente, substitua a pena de reclusão pela pena de detenção, ou diminua de um a dois terços a pena de reclusão aplicada, ou ainda aplique apenas a pena de multa, é preciso que a equação prevista no dispositivo esteja completa. Portanto, o magistrado deve aplicar a diminuição, cabendo-lhe escolher apenas o modo de diminuição, desde que presentes duas variáveis: a coisa subtraída ser de pequeno valor e o criminoso ser primário.
Infere-se o conceito de primário negativamente: é primário aquele que não é reincidente. A reincidência é tratada pelo artigo 63: verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. De verificar-se que não se confunde a reincidência com os maus antecedentes, de modo que se o criminoso é primário, e tem maus antecedentes, haverá incidência do artigo 155, § 2º, desde que presente, também, o outro requisito.
Há, também, além da previsão de causas de diminuição, a previsão de causa de aumento, a qual é perfeitamente aplicável em concomitância com aquela [18]. Por exemplo: se o criminoso é primário, subtrai, durante o período de repouso noturno, coisa de pequeno valor econômico, o juiz deverá aumentar a pena de um terço e, simultaneamente, aplicar uma diminuição de pena, como a substituição da pena de reclusão pela pena de detenção.
Há que reproduzir a regra do § 1º: a pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno. Repouso noturno não é uma sinonímia de noite, trata-se de um elemento normativo do tipo, que vai incidir de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Vale reproduzir a lição de MAGALHÃES NORONHA, para o qual período de repouso noturno é aquele em que "a vida das cidades e dos campos desaparece, em que seus habitantes se retiram, e as ruas e as estradas se despovoam [19]".
O aumento da pena é válido, haja vista a diminuição da vigilância e dos meios de defesa daqueles que se encontram recolhidos à noite para repouso, mesmo que não estejam dormindo, de modo que a menor vigilância facilita o cometimento do delito de furto. Não consideramos, entretanto, o argumento de que aquele que comete o delito em estudo durante o período de repouso noturno mereça maior reprovabilidade. Ora, não foi essa a intenção do legislador ao prever tal causa de aumento de pena, isto porque, a legislação não surge da cabeça do legislador, e sim a partir de exemplos sociais concretos, e é patente que os crimes mais graves e cruéis estão sendo praticados à luz do dia: a temibilidade é maior, por óbvio, em relação àqueles que praticam crimes à luz do dia, em que o movimento é maior, assim como o policiamento [20].
Por fim, a quinta elementar: a subtração de coisa móvel alheia tem de ser efetuada para o próprio agente ou para outrem. Tal elementar traduz o desejo de o agente tomar posse ou tornar-se proprietário, mesmo que ilegitimamente, da coisa alheia: é, portanto, dolo específico, ou seja, vontade que o agente tem de subtrair coisa que não lhe pertence para proveito próprio ou de terceiro [21]. Com essa última elementar, fica auferido o elemento subjetivo do tipo delitual de furto: o dolo. Portanto, há o dolo geral, que é o animus de subtrair, e há o dolo específico, que é o animus de subtrair para si ou para outrem, ou seja, detenção, posse (direta ou indireta) e propriedade ilegítima.
Há uma situação interessante: o furto de uso, o qual consiste na retirada, pelo agente, para si ou para outrem, de coisa móvel alheia, para, ao depois, restituí-la ao proprietário ou possuidor. Há duas correntes: uma defende que o furto de uso é fato atípico e outra que o furto de uso é fato típico. LUIZ RÉGIS PRADO destaca que o legislador perdeu a oportunidade de tipificar o furto de uso, haja vista que é um comportamento de certo modo contumaz [22] e que tem recebido a devida atenção pelas legislações modernas [23].
O furto de uso ocorre quando o agente subtrai, indevidamente, coisa alheia móvel infungível, a fim de a utilizar momentaneamente, restituindo-a, ao depois, na íntegra, à vítima. Como é sabido, o delito de furto apresenta dois tipos de dolo, o dolo genérico, que é o de subtrair, e o dolo específico, que é o de pelo menos ter a detenção definitiva sobre a coisa. É preciso, pois, que esteja presente o animus sibi habendi ou animus furandi, o qual não se faz presente no conhecido furto de uso [24].
Somos levados a concordar com o posicionamento majoritário da doutrina, a qual há de concordar que o legislador quis ser omisso em relação à tipificação do furto de uso, haja vista que o natimorto Código Penal de 1969 tipificava tal conduta: se a coisa não fungível é subtraída para fim de uso momentâneo e, a seguir, vem a ser imediatamente restituída ou reposta no lugar onde se achava: Pena – detenção, até 6 (seis) meses, ou pagamento não excedente a 30 (trinta) dias-multa. Apesar da falha do legislador, temos de considerar a ausência de animus furandi na conduta daquele que subtrai coisa móvel alheia para uso temporário e logo a restitui, integralmente, ao sujeito passivo.
Assim, para que o furto de uso não seja tido como furto simples, é preciso que a coisa seja móvel, alheia e infungível; que a coisa seja integral e rapidamente devolvida ao sujeito passivo; que a coisa seja devolvida sem qualquer dano; que a devolução ocorra antes de a vítima dar-se conta da subtração; e que o agente tenha o fim exclusivo de uso. Portanto, assim podemos definir o furto de uso: subtrair coisa alheia móvel infungível, para exclusivo uso temporário, devolvendo-a, sem qualquer dano e tal qual se encontrava, ao seu real detentor, possuidor ou dono.
Diferente da situação apresentada acima é o erro de tipo. Quando o agente, por erro, toma posse de objeto alheio, supondo ser seu, há o erro de tipo, de modo que não há dolo e o fato reputa-se atípico. Note que não há o preenchimento das seguintes elementares: subtrair e para si ou para outrem, ou seja, inexiste o dolo específico. Figuremos um exemplo: Tício está sentado na sala de aula e deixa seu guarda-chuva ao lado do guarda-chuva, o qual é muito parecido com o seu, de Mélvio; ao sair, Mélvio, por achar que pegava o seu guarda-chuva, pegou o de Tício. Há que se observar que o erro de tipo só se faz possível e exclui a tipicidade do crime porque não há a previsão de furto culposo. Se houvesse furto culposo, Mélvio teria agido com culpa (imperícia, imprudência ou negligência), enquadrando-se perfeitamente a sua ação no tipo penal previsto na norma – se houvesse tal hipótese.
Assim, a subtração, para si ou para outrem, de coisa móvel e alheia, é tipificada pelo Código Penal como crime de furto simples. A pena cominada em abstrato é de reclusão de um a quatro anos cumulativamente com multa. Qualifica-se o furto nos termos dos §§ 4º e 5º. Crime qualificado, vale esclarecer, é aquele em que a pena prevista em abstrato para o tipo simples sofre dilação, aumentando-se.
De acordo com a redação do § 4º, temos que a pena em abstrato será de reclusão de dois a oito anos, cumulativa com multa, caso a subtração de coisa alheia móvel, para si ou para outrem, seja cometida com algum dos seguintes meios:
Destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa. Destruir é aniquilar algo; romper é fazê-lo em pedaços, estragá-lo; obstáculo é aquilo que dificulta ou impede o acesso à coisa. Vamos estabelecer casos concretos: 1) Tício quebra vidro do carro de Mélvio para subtrair o toca-fitas; 2) Tício quebra vidro do carro de Mélvio para subtrair o carro. No primeiro caso, quebra-se o vidro para roubar o toca-fitas, de modo que incide a qualificadora, haja vista que foi destruído obstáculo para que a coisa fosse subtraída. No segundo caso, quebra-se o vidro para roubar o carro, de modo que não incide a qualificadora, posto que foi destruída parte da coisa, para que a mesma fosse subtraída. Entendemos que, no caso, incide, não a qualificadora do inciso I, e sim a qualificadora do inciso II (destreza).
Abuso de confiança. Confiança não se presume, e sim se adquire com o tempo, com o relacionamento. Haverá abuso sempre que o agente, utilizando-se da credibilidade que lhe é dada por determinada pessoa, extrapola e viola o sentimento de segurança estabelecido com esta pessoa. Quando não há a credibilidade, não há se falar na incidência da qualificadora. NUCCI entende que é preciso que seja analisada a forma de contratação: o empregador que contrata alguém com base em referências, tomando todas as cautelas possíveis e buscando uma relação de confiança; cometida subtração, incidirá a qualificadora [25].
Não há que se confundir a figura típica de furto qualificado por abuso de confiança com o delito de apropriação indébita. No caso em estudo, o agente, valendo-se da credibilidade que possui face à vítima, aproveita-se, da ausência desta, para retirar-lhe objeto – ou seja, o agente age sem o consentimento da vítima. No caso do artigo 168 (apropriação indébita), a participação da vítima é fundamental, de modo que ela confia no agente, transferindo licitamente a posse da coisa a este, o qual passa a agir como se dono dela fosse.
Mediante fraude. Fraude é aquela manobra consistente em iludir alguém, de modo a fazer com que a vítima incorra em engano. Exemplo bastante conhecido de fraude é aquele em que o agente, passando-se por funcionário de determinada drogaria, entra em edifício, mediante o consentimento do porteiro, o qual foi ludibriado, e subtrai pertences de um dos moradores.
Não se pode confundir a forma qualificada de furto mediante fraude com o delito de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal. Apesar de ambos fundarem-se na fraude, no estelionato a participação da vítima é imprescindível, enquanto que no furto mediante fraude a não participação da vítima é que é imprescindível, ou seja, o agente age sem o conhecimento da vítima.
Mediante escalada. Escalada é ter acesso anormal a um lugar por via anormal. Não se trata da escalada em sentido estrito, isto é: subir ou galgar alguma coisa; pode-se passar por uma galeria subterrânea, utilizar uma escada ou uma corda, passar pelo esgoto, dentre outras possibilidades. O exemplo mais comum é o do famoso homem-aranha, o qual furta as pessoas escalando prédios. Outro exemplo é o do já famoso, no Brasil, furto ao Banco Central de Fortaleza, em que os criminosos utilizaram-se de um túnel para chegar ao cofre do banco.
Mediante destreza. Destreza é uma habilidade incomum, peculiar. O exemplo clássico é o do punguista (batedor de carteira), o qual consegue, sem que a vítima perceba, retirar-lhe a carteira. Importante estabelecer que caso a vítima note que está sendo furtada, não há que se falar na incidência da qualificadora.
Com emprego de chave falsa. Chave falsa é qualquer instrumento utilizado para abrir fechaduras ou para fazer com que determinados aparelhos funcionem. A denominada chave falsa não tem de ter o aspecto de chave. Assim, configuram-se como chave falsa: a chave cópia da verdadeira, a chave mestra e a gazua.
A doutrina muito discute se a chave verdadeira, perdida ou obtida mediante fraude, poderia ser considerada chave falsa. Entendemos que aquele que subtrai a chave verdadeira não tem sobre sua ação a incidência da qualificadora, haja vista que não se trata de chave falsa, e sim da verdadeira [26].
Mediante concurso de duas ou mais pessoas. Está abrangida tanto a co-autoria quanto a participação, de modo que não importa o modo como o agente concorre para a produção do resultado criminoso, havendo a incidência da qualificadora em qualquer caso. A doutrina majoritária e o Supremo Tribunal Federal zelam pela necessidade de os agentes (sejam co-autores, sejam partícipes) encontrarem-se no local do crime. CAPEZ assim escreve: "argumenta-se na jurisprudência que se a execução material do delito é feita apenas por uma pessoa, embora outras estejam envolvidas, a possibilidade de defesa da res é a mesma do furto simples [27]".
Há que se observar que, em regra, o delito de furto é monossubjetivo, não sendo necessária a participação de mais de uma pessoa, ou seja, o concurso é eventual. A razão de ser da qualificadora é a da maior reprovabilidade, seja o crime cometido com co-autoria seja com participação [28]. Por exemplo: Tícia e Caio planejam furtar a bolsa de Mélvia; Caio vai pedir informações a Mélvia, enquanto Tícia furta-lhe a bolsa. Seguindo a orientação do Supremo Tribunal Federal, é necessário que os agentes estejam presentes no local do crime, a fim de que incida a qualificadora.
As formas qualificadas do artigo 155, § 4º são passíveis de tentativa, devendo-se ter em mente, sempre, a disposição do artigo 14, II: diz-se o crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Além disso, há que prestar atenção, também, ao artigo 15, o qual prevê a hipótese de desistência voluntária: o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.
Interessante notar, como bem lembra PIERANGELI, que o Código Penal não prevê o furto calamitoso dentre as formas qualificadas [29]. Furto calamitoso é aquele que ocorre em situações de incêndio, naufrágio, inundação, calamidade pública ou de desgraça particular da vítima. Prevê o artigo 184, § 3º, I, do Anteprojeto de Lei de 1999 o furto calamitoso como espécie de furto qualificado.
A Lei nº 9.426/96 acrescentou outra figura típica de furto qualificado, de modo que o § 5º encontra-se assim redigido: a pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior. Veículo automotor, de acordo com o Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), é todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. Assim, quem subtrai, para si ou para outrem, veículo automotor (que é coisa móvel) alheio, incorre na pena de furto qualificado estabelecida pelo § 5º, desde que o leve para outro Estado da Federação ou para o exterior.
Note bem que a expressão para outro Estado, permite a interpretação de que o veículo automotor deverá ser levado de um Estado para outro Estado da Federação. Assim, de Município para Município, desde que dentro de um mesmo Estado, ou do Distrito Federal para um Município ou Estado, desde que não se passe por outro Estado, ou vice-versa, não haverá furto qualificado pelo § 5º. A doutrina majoritária considera que o Distrito Federal não é Estado federado, assim entendemos haja vista que o Distrito Federal apresenta natureza jurídica complexa, de forma que se pode alegar, em conformidade com o artigo 32 da Lei Fundamental, que o Distrito Federal é entidade federativa que acumula as competências legislativas reservadas pela Constituição aos Estados e aos Municípios [30].
Situação interessante é a de que se o veículo automotor for desmontado, e suas peças levadas para o exterior, não haverá a incidência da qualificadora. Deve-se observar que para a consumação do delito de furto qualificado pelo § 5º do artigo 155 é necessário o efetivo transporte do veículo; desta forma, a tentativa será possível se, por circunstâncias alheias à vontade do agente, o delito não se consumar, ou seja, subtraído o veículo, o agente for pego quando fazia a travessia de um Estado para o outro, ou de um Estado-federado para outro País.
NUCCI põe a seguinte situação: Caio furta veículo automotor mediante a destruição de obstáculo, de forma a incidir, a priori, na figura do § 4º, mas, ao depois, decide levar o veículo para fora do País. Neste caso, e assim também entende o citado autor, haverá a incidência da qualificadora mais gravosa. Descordarmos do autor quando este diz que a qualificadora preponderará sobre a causa de aumento de pena do § 1º, de modo que, caso o veículo seja furtado durante o repouso noturno e, ao depois, venha a sair do País, haverá não só a qualificadora como também a causa de aumento de pena [31].
Estabelecidas as figuras típicas do furto comum, com as respectivas causas de aumento e de diminuição de pena, e dos furtos qualificados, resta fazermos alguns apontamentos finais, no que tange aos sujeitos passivo e ativo e ao concurso de crimes.
Quanto ao concurso de crimes, este também é perfeitamente possível, tanto material como formalmente. Há que se atentar, no entanto, para aqueles crimes que constituem meio para a prática do furto [32], como é o caso da violação de domicílio, previsto no artigo 150, quando se tratar, por exemplo, de crime de furto qualificado pela escalada: tais crimes serão absorvidos pelo delito de furto.
É válido lembrar que o concurso material de crimes ocorrerá quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, praticar dois ou mais crimes, idênticos ou não. Em poucas palavras: há pluralidade de condutas e pluralidade de crimes. A punição consiste na soma das penas.
Concurso formal é aquele em que o agente, mediante uma única ação ou omissão, dá ensejo a dois ou mais resultados típicos. Em poucas palavras: há unidade na conduta e pluralidade de crimes. A pena aplicada é aquela do mais grave com o aumento que o legislador determinar.
Quanto aos sujeitos passivo e ativo, por se tratar de crime comum, podem ser quaisquer pessoas. Situação interessante é aquela que desfaz o adágio popular: se Tício subtrai, para si, coisa móvel de Mélvio, e Caio subtrai a mesma coisa de Tício, tanto Caio quanto Tício incorrem no delito de furto, haja vista que a proteção penal apenas circunscreve a posse, a propriedade e a detenção legítimas da coisa.
Estabelece o artigo 181 que é isento de pena quem comete furto em prejuízo do cônjuge (na constância da sociedade conjugal) ou em prejuízo de ascendente ou descendente (seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural). Há o crime, no entanto este não é punível. Trata-se, pois, de imunidade penal absoluta, nas palavras de NUCCI [33]. Se o delito for cometido em prejuízo de cônjuges (judicial ou consensualmente separados), de irmão (legítimo ou ilegítimo), ou de tio ou sobrinho com quem o agente coabita, a ação penal não será pública incondicionada, e sim condicionada à representação do ofendido (artigo 182). No entanto, estabelece o artigo 183, III que se o crime for praticado contra pessoa de sessenta anos ou mais, o crime é de ação pública incondicionada e punível; o inciso II do mesmo artigo estabelece que as regras dos artigos 181 e 182 não serão aplicadas ao estranho que participa do crime.
Não podem ser sujeitos ativos aqueles que têm a posse ou a detenção legítimas da coisa, haja vista que não a poderão subtrair de outrem; no caso de haver a inversão da natureza da posse ou da detenção, o possuir ou detentor, respectivamente, não praticará o crime de furto, e sim o crime de apropriação indébita (artigo 168).
Também não pode ser sujeito ativo, o proprietário da coisa, mesmo se for em relação ao possuidor, haja vista que não haverá a presença da elementar alheia, o Código Penal não trata acerca do furto de coisa própria, de modo que o máximo que poderá acontecer é incidir o tipo delitual do artigo 346. Nesta mesma esteira encontram-se os condôminos, os co-herdeiros e os sócios.