Procuraremos tratar neste artigo, de forma extremamente objetiva, as conseqüências que a Lei 9.514/97 (Lei de Alienação Fiduciária de Imóveis – LAFI) pode ter trazido ao sistema das ações possessórias, comparando precedentes jurisprudenciais com o entendimento doutrinário e, por fim, expondo nossa conclusão.
O sistema das ações possessórias, notadamente as questões relacionadas às tutelas de urgência subjacentes – e aqui estamos a nos referir às liminares e tutela antecipada possessórias –, sempre foi muito bem definido e estabilizado no nosso ordenamento jurídico.
Não vamos brigar por conceitos aqui, porque este não é nosso escopo. O que importa dizer é que a definição de possuidor se encontra no art. 1.196 do Código Civil, a saber, todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. É certo, também, que o possuidor esbulhado tem direito de ser reintegrado na posse (art. 1.210 do Código Civil e 927 do Código de Processo Civil – CPC), bastando observar os requisitos do art. 927 do CPC em seu pleito.
No sistema das ações possessórias, importa-nos particularmente o disposto no art. 924 do CPC, assim articulado:
Regem o procedimento de manutenção e de reintegração de posse as normas da seção seguinte, quando intentado dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho; passado esse prazo, será ordinário, não perdendo, contudo, o caráter possessório.
Como se vê, toda vez que a ação possessória é ajuizada dentro do prazo de ano e dia contado da data do esbulho – o que se convencionou denominar de posse nova –, o procedimento a ser seguido é o especial (arts. 926 e seguintes do CPC); do contrário, se a posse for velha, isto é, aquela cujo esbulho deu-se há mais de ano e dia, segue-se o procedimento ordinário.
Qual a relevância, porém, de se ajuizar uma ação que tramitará pelo rito especial – ou seja, aquela cuja posse de quem esbulha é considerada nova – em relação a uma demanda ajuizada pelo rito ordinário?
Pode-se dizer confortavelmente que a resposta à indagação reside no art. 928 do CPC, que permite o pleito da liminar possessória nos casos em que o esbulho data de menos de ano e dia. É dizer, em outras palavras, que toda vez que a ação de reintegração de posse é movida pelo autor após o período de ano e dia da ocorrência do esbulho, ele não terá a possibilidade de pleitear a liminar de reintegração de posse.
É evidente, todavia, que a propositura da ação de reintegração de posse após o prazo de ano e dia não inibe o pedido de tutela antecipada para o autor reaver a posse. A antecipação da tutela, na verdade, é providência que não se exclui, a princípio, de qualquer ação ajuizada pelo rito comum, logo, a situação não poderia ser diferente nas ações de que ora tratamos. Ocorre, neste caso, que o autor deverá amoldar-se aos requisitos do art. 273 do CPC, que são muito mais rígidos do que os do art. 928 do mesmo diploma.
Postas tais idéias, que são básicas em matéria de tutelas de urgência nas ações possessórias, especialmente nas de reintegração de posse, compete-nos fazer seu cotejo com o disposto no art. 30 da LAFI, assim exposto:
É assegurada ao fiduciário, seu cessionário ou sucessores, inclusive o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os §§ 1º e 2º do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação em sessenta dias, desde que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da propriedade em seu nome.
Como se vê, uma vez inadimplido o contrato de alienação fiduciária de imóveis e consolidado o domínio em nome do fiduciário ou de quem tenha adquirido o bem pelo leilão, faculta-se a qualquer desses sujeitos o pleito de reintegração de posse do bem alienado fiduciariamente. O dispositivo ainda reza que a providência será concedida liminarmente, com prazo de desocupação de sessenta dias.
A questão que surge, após o contato com o dispositivo em questão, é a seguinte: a concessão de liminar de reintegração de posse resultante de um contrato de alienação fiduciária de imóveis está sujeita ao previsto no art. 924 do CPC?
É de se ter em conta que o art. 30 da LAFI não é claro a respeito. Numa primeira e rápida leitura, parece que ele só condiciona a concessão da liminar a um único requisito, qual seja, a consolidação da propriedade em nome do agente fiduciário, não se referindo em momento algum a qualquer pressuposto do sistema geral das possessórias, especialmente àquele que se refere ao tempo do esbulho.
Esta é a orientação que vem sendo seguida, ademais, no TJSP, como se pode ver em alguns precedentes de sua lavra, que dispensam a ocorrência do esbulho dentro do prazo de ano e dia, concedendo a liminar de reintegração em casos cujo suposto esbulho se deu há muito mais tempo [01].
Com todo acatamento, não nos parece que a posição adotada acima seja a mais correta. Isto porque a especialidade do rito imposto pelo art. 30 da LAFI não tem o condão de afastar requisitos até então genéricos de toda e qualquer ação de reintegração de posse.
Neste particular, contamos com o apoio de balizada doutrina, como se vê adiante:
Em relação à data do esbulho, tal exigência só te relevância para configurar a posse velha (mais de ano e dia) ou nova (menos de ano e dia), verificando-se se o procedimento será sumário e possível a liminar de reintegração, ou ordinário sem possibilidade de liminar [02].
É dizer, se a norma geral – que é o CPC – não for expressa e especificamente contrariada pela norma especial, que é a LAFI, não se pode dizer que na LAFI há um sistema novo e absolutamente desligado do sistema do CPC.
Nossa posição, todavia, atreve-se a ir mais longe. Para nós, a interpretação que merece o art. 30 da LAFI – bastante ligada com uma visão sistemática das tutelas possessórias, que é o que importa de verdade – é a de que um novo requisito – o da consolidação do domínio – foi somado às possessórias sempre que estas forem resultante de contratos de alienação fiduciária de imóveis, e não que aqueles tradicionais pressupostos foram afastados para estes casos.
Logo, a concessão de liminar de reintegração de posse nos casos de contratos de alienação fiduciária de imóveis não prescinde do requisito temporal. Caso a ação tenha sido ajuizada após o prazo de ano e dia da data do esbulho, só restará ao autor pedir tutela antecipada (art. 273 do CPC), que é hipótese diversa da liminar.
Destarte, salvo melhor juízo, é incorreto o entendimento de que à concessão de liminar nas ações de reintegração de posse resultantes de contratos de alienação fiduciária de imóveis basta que tenha havido a consolidação da propriedade em nome do agente fiduciário. Ao contrário, além desse requisito, é preciso que se esteja diante da chamada posse nove daquele que praticou o esbulho, além dos demais pressupostos imanentes à propositura da ação pelo rito especial.
Notas
01 Cf., por exemplo: TJSP, 31ª Câmara, AI n.º 1087315-0/1, rel. Des. Antonio Rigolin, j. 1912.2006, v.u.
02 MARTINEZ, Sergio Eduardo. Alienação Fiduciária de Imóveis. Porto Alegre: Norton, 2006, p. 84.