3. Homicídio culposo
O homicídio culposo é um tipo penal aberto em que se faz a indicação pura e simples da modalidade culposa, sem se fazer menção à conduta típica ou ao núcleo do tipo. A culpa não está descrita nem especificada, mas apenas prevista genericamente no tipo, isso porque é impossível prever todos os modos em que a culpa pode apresentar-se na produção do resultado morte. Depende, pois, da análise subjetiva do caso concreto.
Deve-se observar que: inexiste, no Direito Penal, a figura da compensação de culpas, de modo que a culpa recíproca poderá, contudo, influenciar na fixação da pena, na análise das circunstâncias judiciais (artigo 59); a culpa exclusiva da vítima exclui a culpa do agente; é possível a concorrência de culpas quando dois ou mais agentes, em atuações independentes, causam, culposamente, o resultado lesivo, de forma que ambos os agentes respondem por este; a participação stricto sensu não é possível, e sim apenas a co-autoria; o homicídio cometido na direção de veículo automotor é tipificado pela Lei n 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), artigo 302.
Destaque-se o § 4º, primeira parte, em que o legislador prevê o aumento de um terço da pena de homicídio culposo, caso este resulte de um dos seguintes fatores: inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, se o agente não procura diminuir as conseqüências do seu ato e se o agente foge para evitar a prisão em flagrante. Observe-se que, de acordo com a Exposição de Motivos, o objetivo de tais causas de aumento era o de cuidar, com maior rigor, dos crimes cometidos na condução veículos automotores. Com o advento do Código de Trânsito Brasileiro (1997), tais causas não mais se aplicam aos crimes cometidos na direção de veículos automotores; mesmo assim analisaremos cada causa de aumento de pena do homicídio culposo, haja vista que a aplicabilidade, apesar de ter sofrido restrição, permanece.
Na primeira hipótese, ou seja, quando o homicídio culposo resultar de inobservância de regra técnica de profissão, de arte ou de ofício do agente, não há se falar em imperícia, haja vista que o agente é perito (profissional) no que realiza, mas deixa de observar as regras técnicas da atividade que exerce.
A segunda hipótese (caso o homicídio culposo resulte de o agente não ter prestado socorro à vítima) deve ser analisada juntamente com a terceira (se o homicídio culposo resultar do fato de o agente não ter procurado diminuir as conseqüências de seu ato), uma vez que esta é decorrência daquela (Nucci, 2005, p. 507). Assim, se o agente podia prestar socorro à vítima e não prestou, fala-se em incidência da segunda situação, mas, se não podia prestar socorro, deveria, ao menos, ter procurado diminuir as conseqüências de seu ato, buscando auxílio de terceiros. Observação válida é a de que a segunda causa de aumento não se confunde com o crime de omissão de socorro (artigo 135), no qual a pessoa que está obrigada a prestar o socorro não se confunde com aquela que causou a situação de perigo.
Quarta hipótese é aquela em que o agente, depois de provocar o homicídio culposo, foge do local, a fim de evitar ser preso em flagrante. Trata-se de causa de aumento de pena de constitucionalidade duvidosa, haja vista que é o princípio do nemo tenetur se detegere, ou seja, ninguém é obrigado a se auto-incriminar, ninguém é obrigado a produzir provas contra si próprio (Nucci, 2005, p. 507).
4. Perdão judicial
Por fim, há que se falar no perdão judicial, permitido pelo § 5º: na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. O perdão judicial é a clemência do Estado, o qual deixa de aplicar a pena prevista para determinados delitos, em hipóteses expressamente previstas em lei (artigo 107, IX), extinguindo a punibilidade.
O perdão judicial, para ser concedido no delito de homicídio, requer que: o homicídio cometido seja na modalidade culposa, sejam geradas conseqüências muito graves para o agente e a aplicação da pena seja desnecessária, uma vez que não será necessário atingir-se qualquer das finalidades da pena (ressocialização, retribuição ou prevenção).
Uma vez presentes todos os requisitos previstos em lei, não cabe ao magistrado negar o benefício – apenas se não estiver convicto de que é uma situação concreta compatível com o perdão pode negá-lo, desde que o faça de modo fundamentado (princípio do livre convencimento motivado).
As conseqüências do ilícito podem ser físicas ou morais. No caso de conseqüências morais, a aplicação do perdão judicial só será cabível se for averiguado que o agente realmente padeceu de insuportável dor moral, não sendo, pois, suficiente a tão-só constatação da relação de parentesco ou de afinidade entre ele e a vítima.
O perdão judicial tem aplicação extensiva, não se limitando ao crime de que se trata. Assim, se num mesmo contexto o agente matou culposamente o seu filho e um estranho, o perdão judicial estender-se-á a ambos os delitos.
Quanto à natureza jurídica da sentença que concede o perdão judicial, há dois posicionamentos: de acordo com o Supremo Tribunal Federal, a sentença é condenatória sui generis, afastando apenas o efeito principal da condenação, que é o cumprimento da pena imposta, e a reincidência, subsistindo os efeitos secundários, entre eles a obrigação de reparar o dano e o lançamento do nome do réu no rol dos culpados; de acordo com o Superior Tribunal de Justiça, a sentença é declaratória, afastando todos os efeitos da condenação, principais e secundários. Mas uma coisa é pacífica: de acordo com o artigo 120, a sentença que concede perdão judicial não será levada em conta para efeitos de reincidência.
Necessário lembrar que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n 9.503/97) trouxe importantes inovações legislativas, na medida em que passou a tipificar os crimes de homicídio e de lesões corporais, na modalidade culposa, praticados na direção de veículo automotor. Contudo, a lei não menciona a possibilidade de aplicação de perdão judicial, sendo certo que o artigo 291 refere-se apenas à possibilidade de aplicação das regras gerais do Código Penal, que, em princípio, não abrangem o perdão judicial. O fato de a lei não mencionar a aplicabilidade, ou não, do perdão judicial, gera divergências doutrinárias.
O entendimento minoritário, isto é, pena inaplicabilidade, defende que não se aplica subsidiariamente o artigo 121, § 5º, do Estatuto Penal, porque o artigo 291, do Código de Trânsito Brasileiro restringiu essa aplicação às normas gerais do Código Penal. Afirma-se, também que há a impossibilidade de aplicação analógica em se tratando de normas penais não-incriminadoras excepcionais.
O entendimento majoritário é pela aplicabilidade do perdão. São utilizados três argumentos: o delito do artigo 302 trata-se de crime remetido ao tipificado no artigo 121, §§ 3º e 5º, do Código Penal; o artigo 12, do Código Penal, dispõe que as regras gerais do mesmo aplicam-se às leis especiais, salvo se estas dispuserem em sentido contrário; trata-se de caso de analogia in bonam partem, uma vez que a lei apresenta lacuna – este último argumento é o melhor e se encaixa perfeitamente na situação.
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