RESUMO: O estudo que se segue pretende realizar breve análise, com embasamento constitucional, dos crimes de seqüestro e de cárcere privado, conforme dispõe o atual Código Penal brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal; Liberdade Pessoal; Seqüestro e cárcere privado.
O artigo 148 do Código Penal brasileiro tutela a liberdade física individual, de modo que se faz íntima a ligação deste dispositivo com o artigo 5º, XV, da Constituição Federal: é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. Ou seja, aquele que priva a liberdade de ir e vir de outrem, mediante seqüestro ou cárcere privado sofrerá pena de um a três anos de reclusão.
Haja vista que a liberdade é um bem jurídico disponível, não haverá crime quando, para o cerceamento da liberdade, houver consentimento válido da vítima [01], mas, se em algum momento houver dissentimento da vítima, restará configurada a liberdade cerceada e o tipo penal em questão [02].
O dispositivo do Código Penal listou os dois modos puníveis quando a liberdade de ir e de vir do sujeito for tolhida: mediante seqüestro ou mediante cárcere privado. Segundo a diferenciação doutrinária, haja vista que a lei dá o mesmo tratamento tanto para um meio quanto para o outro, o seqüestro consistiria na privação da liberdade de locomoção do indivíduo, não implicando em confinamento do indivíduo, caso em que se trataria de cárcere privado [03].
Interessante notar, contudo, que, apesar de o legislador dar a possibilidade de aplicação da mesma pena em abstrato tanto para o seqüestro como para o cárcere privado, não existindo, pois, diferença no que tange à pena cominada em abstrato, há que se prestar atenção à possibilidade o magistrado, quando da dosimetria da pena, sopesar o modo pelo qual foi privada a liberdade de ir e vir da vítima, neste caso, então, faz diferença a distinção feita pela doutrina entre o seqüestro e o cárcere privado.
De acordo com Capez, o delito em epígrafe pode-se realizar de dois modos: mediante condução da vítima para lugar diverso, prendendo-a em um cômodo, ou mediante impedimento que ela saia de determinado lugar – no primeiro caso a ação leva o nome de detenção, e, no segundo, de retenção [04]. Disto resulta que o crime é de ação livre, podendo ser utilizado qualquer meio hábil para se realizar a detenção ou retenção da vítima: meio físico, moral ou fraudulento.
O dolo é específico de privar a pessoa de sua liberdade é fundamental para a caracterização do tipo penal em epígrafe. De acordo com Mirabete, "se tal elemento subjetivo estiver ausente, ou seja, se o agente atua por outro intento que não o de seqüestrar a vítima, não se configura o seqüestro", o mesmo se dando em relação ao cárcere privado, de modo que o crime será de constrangimento ilegal [05]. Na mesma esteira, ensina Heleno Fragoso: a privação da liberdade mediante seqüestro ou cárcere privado é espécie subsidiária ao delito de constrangimento ilegal, já que se impede a liberdade de locomoção do sujeito passivo [06]. Ao que aduz Capez: se "a finalidade for coagir outrem para que faça ou deixe de fazer algo, o crime será de constrangimento ilegal [07]".
Como já afirmamos, os delitos contra a liberdade pessoal têm um caráter subsidiário em relação aos outros tipos penais. Assim é que se o agente tiver a finalidade de mediante o seqüestro, receber vantagem, incidirá o delito do artigo 159 (extorsão mediante seqüestro). Observe que no caso da extorsão mediante seqüestro é elementar do tipo a finalidade de obter qualquer vantagem, para si ou para outrem, de modo que se restar comprovado que o agente não tinha esse animus, o crime será de constrangimento ilegal, mediante seqüestro.
Importa fazer uma distinção. Foi dito que, no tipo penal em tela, o agente tem o dolo de privar a liberdade da vítima, sem disso pretender auferir qualquer vantagem patrimonial. Ora, há uma diferença ampla no que se refere ao que corriqueiramente se chama de "seqüestro-relâmpago", o qual não se constitui como tipo penal e consiste na privação ou restrição da liberdade da vítima com o escopo de que o agente aufira vantagem patrimonial. O que se chama "seqüestro-relâmpago", no Estatuto Penal pode-se configurar como um dos três delitos a seguir: roubo com restrição de liberdade (artigo 157, § 2º, V), extorsão (artigo 158) ou extorsão mediante seqüestro (artigo 159).
O seqüestro e o cárcere privado apresentam duas formas qualificadas. Na primeira forma qualificada, a pena em abstrato é de reclusão de dois a cinco anos, desde que se configure, pelo menos, uma das cinco hipóteses subseqüentes:
Quando a vítima for ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de sessenta anos. Há que se observar o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, de modo que se a vítima for ascendente biológico ou adotivo, descendente biológico ou adotivo, cônjuge, companheiro ou pessoa maior de sessenta anos, a qualificadora incidirá, provocando mudança na pena em abstrato [08]. Descartada está a relação de afinidade, como no caso de padrasto, madrasta, enteado e afins.
Quando o crime for praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital. É preciso que tal internação ocorra com o dissentimento do indivíduo, para que a internação configure o delito em estudo. É, do mesmo modo, exigido que a internação não decorra de permissão legal ou não seja tolerada pelo meio social – se houver justa causa para a privação da liberdade física, não há que se falar no crime em tela [09], ou seja, "a razão da maior punibilidade reside no emprego de meio fraudulento [10]".
Quando a privação da liberdade durar mais de quinze dias. Esta qualificadora tem por razão de ser o maior tempo de duração da privação da liberdade da vítima, o qual intensifica o sofrimento da vítima e de seus familiares e demonstra a maior periculosidade do agente [11].
Quando o crime é praticado contra menor de dezoito anos. O inciso atende ao disposto na constituição Federal em seu artigo 227, § 4º: a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. Como bem lembra Capez, trata-se de novatio legis in peius, de modo que não poderá retroagir, uma vez que agravou a situação [12].
Quando o crime é praticado com fins libidinosos. Estabelece Nucci que a inclusão do inciso V ao § 1º do artigo 148 merece aplausos, por dois motivos: ter abolido o crime de rapto (artigos 219 e 220, mediante a Lei nº 11.106/05) e ter incluído dentre as formas qualificadas de seqüestro ou cárcere privado, a finalidade libidinosa do agente, haja vista que, na visão do autor, o crime de rapto não passava de um seqüestro para fim libidinoso [13].
Na segunda forma qualificada, a pena em abstrato varia de dois a oito anos de reclusão, caso a privação resultar à vítima, em razão dos maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral. Qualifica-se o seqüestro e o cárcere privado pelo resultado no § 2º do artigo 148, de modo que, em virtude dos maus-tratos ou da natureza da detenção, o agente provoque à vítima lesões corporais ou a sua morte, haverá concurso material entre o seqüestro qualificado e o resultado atingido. No caso de vias de fato, estas serão absorvidas; da mesma forma, em virtude da natureza da detenção, a qual possa trazer sofrimento físico ou moral à vítima, haverá a incidência da qualificadora.
Por se tratar de crime comum, qualquer pessoa pode ser sujeito passivo ou sujeito ativo. Quanto ao sujeito ativo, é preciso observar se ele é funcionário público no exercício de suas funções, uma vez que o delito poderá ser outro [14]. Quanto ao sujeito passivo, há que se observar o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual prevê, em seu artigo 230 que se a criança ou o adolescente for privado de sua liberdade, inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente ou se a detenção ou retenção se proceder sem que o menor esteja em flagrante de ato infracional, sobre o agente poderá incidir pena de detenção de seis meses a dois anos.
Bruno afirma que "não é necessário que a vítima tenha consciência da privação da liberdade que está sofrendo ou seja capaz de querer e agir para afastar-se do lugar da detenção", de modo que podem vir a sofrer esse constrangimento mesmo aqueles que se encontrarem em estado de inconsciência, loucos e ébrios. Da mesma forma, podem ser sujeito passivo os deficientes físicos, aquelas pessoas que têm dificuldade de se locomover e aquelas pessoas que se encontrarem internadas [15]. Deve-se, todavia, prestar atenção no caso de doente mental, o qual não poderá ser sujeito passivo quando não tiver a capacidade de deliberar acerca de sua própria liberdade de ir e vir. No caso de recém-nascidos, haverá o delito de subtração de incapazes (artigo 259).
Em geral, o crime se dá por conduta comissiva, mas é possível que se dê por omissão, ao que exemplificamos: "não pôr em liberdade o hanseniano já curado [16]", deixar de dar alta a paciente que, não estando mais em estágio de observação, já se encontra curado [17].
Trata-se de delito instantâneo, o qual se consuma no instante em que a vítima se vê privada de sua liberdade de ir e vir. Assim, não há que se falar em consumação apenas quando a vítima ficar um tempo razoável em poder do agente. Como dito alhures, o dolo é específico: privar a liberdade de pessoa humana. Ou seja: privada a liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado, nem que seja por cinco minutos, restará consumado o delito.
Por se tratar de delito unissubsistente ou plurissubsistente, isto é, pode ser praticado, respectivamente, por um só ato ou por mais de um, o crime em tela admite a tentativa, desde que na forma comissiva; haja vista que, quando a omissão constitui o meio executório, a tentativa é impossível [18].
REFERÊNCIAS:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial, volume 2. 3.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003
FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Crimes Contra a Pessoa. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial: dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212), volume 2. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte especial, 2º volume: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 20.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 a 234 do CP), volume 2. 13.ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998
NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal, volume 2. 13.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1977
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 2: parte especial – arts. 121 a 183. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
Notas
01
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro..., pp. 313-314: "o consentimento do ofendido exclui a ilicitude da conduta, atuando como causa de justificação. Seu fundamento radica na ponderação de valores. O consentimento opera como causa de justificação porque o Direito concede preferência ao valor da liberdade de atuação da vontade ante o desvalor da ação e do resultado da conduta típica ofensiva ao bem jurídico (liberdade pessoal). Para que possa ser eficaz, o consentimento precisa ser expresso e outorgado por sujeito passivo capaz de consentir. Não é válido o consentimento outorgado pelos representantes legais do menor ou incapaz".02
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal..., volume 2, p. 187; NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado..., p. 586.03
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal..., volume 2, p. 308; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal..., volume 2, p. 186; Damásio Evangelista de. Direito penal: parte especial: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 20.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, volume 2, p. 256; NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal..., volume 2, p. 174; FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Crimes contra a pessoa..., pp. 358-359; PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro..., volume 2, p. 314.04
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal..., volume 2, p. 308; JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal..., volume 2, p. 256; PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro..., volume 2, p. 314.05
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal..., volume 2, p. 187.06
Citado por: MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal..., volume 2, p. 185.07
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal..., volume 2, p. 310.08
Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal..., volume 2, p. 312. Entendem que a qualificadora não abrange pais adotivos e filhos adotados: JESUS, Damásio Evangelista. Direito penal..., volume 2, p. 257; NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal..., volume 2, pp. 176-177; NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado..., p. 587.09
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal..., volume 2, p. 309.10
JESUS, Damásio Evangelista. Direito penal..., volume 2, p. 257.11
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal..., volume 2, pp. 312-313.12
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal..., volume 2, p. 313.13
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado..., p. 587.14
Artigos 322 ou 350 do Estatuto Penal; artigos 3º, a, e 4º, a, da Lei nº 4.898/65 (Abuso de Autoridade).15
FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Crimes contra a pessoa..., p. 360; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal..., volume 2, p. 186; PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro..., volume 2, p. 313.16
NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal..., volume 2, p. 174.17
LUIZ RÉGIS PRADO fornece exemplo interessante (Curso de direito penal brasileiro..., volume 2, pp. 315-316): "em determinado edifício, observa-se defeito contínuo nos elevadores, a ponto de o ascensorista alertar o síndico para o problema, enfatizando que alguém ali ficaria preso, obtendo, no entanto, como resposta, a afirmação de que tudo não passava de mera fantasia e de que nada disso iria acontecer. Certo dia, um profissional liberal, que possuía consultório no prédio, precisou trabalhar até mais tarde, vindo a deixar o serviço após as 22 horas, quando no local apenas permanecia um vigia. Tomou o elevador e este parou no meio dos andares. Imediatamente, acionou o alarme e despertou o vigia. Esta, contudo, apesar de sua boa vontade, não sabia como mover o elevador, nem como abrir suas portas. O profissional liberal pediu-lhe, então, que se comunicasse com o síndico pelo telefone da portaria, o que foi feito. O síndico lhe disse, porém, que nada poderia fazer, que esperasse até o outro dia, de manhã, quando chegasse o ascensorista. Ademais, não poderia ir até o local, porque estava de saída para uma festa. No exemplo apontado, o síndico, como administrador do prédio, detém responsabilidade pelas fontes geradoras de perigo aí existentes e, de conseguinte, o dever de impedir o resultado (princípio da ingerência). Ocupando o síndico posição de garante, o fato de não sanar o defeito do elevador, podendo fazê-lo, caracteriza o delito de seqüestro por omissão".18
JESUS, Damásio Evangelista. Direito penal..., volume 2, p. 257.