5 Condutas mais comuns que caracterizam o assédio moral
A prática do assédio moral demanda árdua comprovação, porquanto, em geral, sua ocorrência é dissimulada, camuflada. Ademais, seu conhecimento não raro restringe-se ao agressor e à vítima. Essa dificuldade probatória, tratada mais adiante, restringe ou dificulta sobremaneira a pretensão de reparação da ofensa.
De todo modo, variadas condutas são típicas e bem ilustram o assédio moral. Diversas pesquisas as têm detectado e destacado regularmente, dentre as quais podemos enumerar: isolamento do empregado; desconsideração de suas opiniões e de sua própria pessoa; gozações sobre seus defeitos físicos; divulgação de boatos maldosos; ataques à reputação e à família; delegação de tarefas flagrantemente superiores ou inferiores à sua capacidade; imputação de erros inexistentes; orientações, ordens ou instruções contraditórias e imprecisas; críticas em público; imposição de horários e tarefas injustificadas; atribuição de sobrecarga injustificada de trabalho; cobrança de urgência desnecessária no cumprimento de uma tarefa; isolamento do empregado; não atribuição de qualquer incumbência ao empregado; proibição de contato com outros colegas de trabalho; recusa à comunicação direta com a vítima, dando-lhe ordens através de colegas; supressão de documentos ou informações importantes para a realização do trabalho; ridicularização das convicções religiosas ou políticas, dos gostos do trabalhador; dentre várias outras.
A forma como tais atitudes são externadas, com um verniz de "brincadeira", mediante sutis e humilhantes insinuações ou, mais ainda, através de comunicação não-verbal (suspiros, erguer de ombros, olhares de desprezo, silêncio, ignorância da presença e/ou existência, ironias e sarcasmos), constrange a defesa da vítima, temerosa de ser encarada como paranóica ou desajustada. A natural e instintiva reação, nesse cenário, é o retraimento e isolamento do ofendido, o que só contribui para consolidar-lhe uma imagem de destemperamento e conduta anti-social.
Como se vê, os meios de manifestação do assédio moral dificultam a sua detecção e percepção generalizada e, mais claramente, a comprovação de sua ocorrência.
6 Classificação
O assédio moral pode se classificar em três tipos.
Do mais comum ao mais raro, comecemos pelo assédio vertical ou descendente, isto é, aquele perpetrado por pessoa com ascendência funcional sobre outra. Trata-se da utilização abusiva dos poderes diretivo e disciplinar reconhecidos ao empregador e a alguns de seus prepostos.
O estado de subordinação próprio da relação de emprego proporciona o florescimento desse tipo perverso de conduta, conforme abordado no último item do tópico 4, retro.
De ocorrência menos freqüente, há o denominado assédio horizontal, praticado entre colegas de serviço de mesmo nível hierárquico, sem ascendência funcional entre si. São casos mais ocasionais, mas existentes, cuja conduta reprovável é geralmente motivada por inveja pela discrepância salarial, por maior competência do ofendido, pelo relacionamento privilegiado da vítima com a chefia, por ciúmes, etc.
Por fim, de maior raridade, temos o assédio moral ascendente, praticado pelo empregado subordinado em relação a seu chefe ou empregador. Os poderes diretivo e disciplinar, a precariedade da relação de emprego, o poder potestativo de dispensa, as dificuldades de reinserção no mercado de trabalho em caso de desemprego, dentre outros, são fatores que reduzem a margem de ocorrência dessa espécie de assédio moral.
Nada obstante, teoricamente, pode-se cogitar do assédio moral ascendente levado a efeito pelo trabalhador melhor qualificado profissionalmente. É um típico caso de subordinação técnica às avessas, próprio da evolução do sistema produtivo, em que o empregador, cada vez mais distanciado da atividade fabril para dedicar-se à administração econômica do empreendimento, depende do empregado que possui os conhecimentos práticos inerentes ao processo produtivo.
Pode-se vislumbrar, de outra parte, sem maior esforço, a possível existência do assédio moral ascendente em relações de emprego especiais, dentre as quais ressalta ilustrativa a do atleta profissional. Em certos casos de atletas consagrados, de remuneração de padrão elevado, a subordinação ao técnico da equipe ou à diretoria é bastante mitigada, contribuindo para a tomada de atitudes abusivas, como a de boicotar ou ignorar as instruções de um treinador.
Por fim, pode ocorrer o assédio moral do tipo ascendente na hipótese de discriminação dos subordinados a um novo chefe, menos tolerante e amigo que o anterior.
Não há dúvida, entretanto, que pela própria estrutura da relação de emprego, os casos mais habituais envolvem assédio dirigido pelo empregador ou chefe ao seu subordinado.
A importância dessa constatação apresenta alguma relevância no campo probatório. Não se pode chegar ao extremo de presumir-se a existência do assédio moral vertical ou descendente; todavia, será exigido um acervo probatório muito mais robusto e convincente para demonstrar o assédio horizontal e, principalmente, o ascendente. Afinal, conforme vetusta lição de Malatesta, convertida em verdadeiro adágio jurídico, "o ordinário se presume, o extraordinário se comprova".
7 Aspectos legislativos
Geralmente, o poder de legislar é reativo às demandas e evolução da sociedade. Muito raramente, o legislador é capaz de antecipar-se às necessidades sociais, para construir um arcabouço legal capaz de evitar conflitos ainda não emergidos – o que de certa forma ocorreu com a outorga da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em meados do século passado.
O legislador brasileiro, no caso do assédio moral, foi tão apanhado de surpresa quanto o foram os juristas, que se aperceberam da importância do fenômeno quando este já alcançara formidável dimensão.
Uma vez disseminada a importância do tema, colocou-se em marcha o processo legislativo com intuito de regulá-lo. Todavia, trata-se de um procedimento reconhecidamente moroso, sujeito à debates no seio das casas legislativas, e por isso mesmo até os dias em que este artigo é redigido muito pouco há de direito positivo pátrio vigente acerca da matéria [11].
No âmbito federal, o processo legislativo já foi encetado. Pende de aprovação no Congresso Nacional um Projeto de Lei que cuida de tipificar penalmente o assédio moral (PL n. 4742/2001), mediante inclusão ao Código Penal do art. 146-A, com a seguinte redação:
Art. 146-A. Depreciar, de qualquer forma e reiteradamente a imagem ou o desempenho de servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica funcional ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo, colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica.
Pena - detenção de um a dois anos.
Na seara administrativa, foi proposto o Projeto de Lei (PL 4591/2001) que estabelece a aplicação de penalidades à prática de assédio moral por parte de servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicas federais a seus subordinados, alterando a Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Ambos os projetos encontram-se em andamento na Câmara dos Deputados, sujeitos às demoras e vicissitudes próprias do processo legislativo já mencionado.
Quanto à legislação posta, pode-se mencionar a Lei n. 9.029/95, que "proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências", como indica sua ementa.
No entanto, esse diploma legal não abrange especificamente o assédio moral, senão de forma indireta e, ainda assim, restrita a hipóteses e efeitos específicos. Bem ilustra essa afirmação o teor de seu artigo 1º, caput:
Art. 1º Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.
A rigor, em certa medida o primeiro diploma legal que tangenciou o tema discutido foi a tão criticada Consolidação das Leis do Trabalho, que nos artigos 482, b e 483, a, b e d traça hipóteses de extinção contratual por justa causa, no primeiro caso do empregado que comete a conduta abusiva (assediador) e, no segundo, daquele que sofre a lesão moral (assediado).
É de se reconhecer, contudo, que essa abordagem é superficial, cuida tão-somente dos efeitos do assédio sobre a continuidade do contrato, não estabelece meios satisfativos de compensação ao assediado, nem abrange medidas preventivas da ocorrência do mal.
Sem embargo, a ausência de legislação federal específica sobre a questão não deságua na absoluta desproteção ao empregado assediado. Além dos meios legais de suprimento da omissão normativa (LICC, art. 4º; CPC, art. 126), que auxiliam o magistrado no julgamento das lides, é imperioso notar que a tutela preconizada para os casos de assédio moral está contida, com vigor, nos princípios, direitos e garantias fundamentais traçados na Carta Magna.
Com efeito, já no seu primeiro artigo, a Lei Maior fixa como fundamentos da República a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, II, III e IV).
Ainda elenca a Constituição Federal, dentre os objetivos fundamentais da República, "a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, I e IV).
Também, no plano das relações internacionais, consagrou dentre seus princípios a "prevalência dos direitos humanos" (art. 4º, II).
Por fim, cite-se o próprio princípio da igualdade, tratado no art. 5º, caput e inciso I, além da vedação à tortura e tratamento desumano ou degradante (inciso III).
Todas essas disposições, em que pese sua intensa carga axiológica e seu elevado teor de abstração, tem concretude, efetividade real.
A moderna hermenêutica pressupõe que o ordenamento jurídico comporta exegese em consonância com as normas constitucionais. Toda lei, em sentido amplo, deve ser interpretada de forma a amoldar-se às disposições constitucionais, do que é exemplo eloqüente a "interpretação conforme a Constituição", a qual busca, dentre as possíveis leituras da norma, aquela que melhor se adapta ao espírito da Carta da República, a fim de lhe assegurar a constitucionalidade – e validade.
À parte dessa função interpretativa, têm os princípios função propriamente normativa, flagrantemente perceptível nos casos de omissão legislativa, quando então atuam como fonte supletiva, meios de integração do direito. Exemplificativamente, as recentes e sucessivas decisões que reconhecem direitos como a garantia no emprego, dentre outras formas de tutela, aos portadores do vírus HIV, alicerçaram-se nos fundamentos e princípios constitucionais já referidos.
Consoante o primado da máxima eficácia da norma constitucional, em vista do teor dos dispositivos retratados, não há interpretação possível aos casos de assédio moral que não vise a conferir, em cada caso concreto, a tutela mais ampla possível à vítima do abuso.
Melhor seria, para efeito de segurança das relações jurídicas, em vista do sistema romano-germânico a que se filia o direito pátrio, que tivéssemos legislação infraconstitucional regulando amplamente a questão. Nada obstante, enquanto tal não ocorre, não se justifica alegação de impotência do operador ou intérprete jurídico frente aos casos de assédio moral, ante as claras e concretas disposições constitucionais.
Do ponto de vista da reparação pecuniária devida pelo cometimento do ato ilícito, a solução segue o que ordinariamente ocorre nas hipóteses genéricas de responsabilização civil, cabendo recurso às disposições do art. 186 c/c 927 do Código civil, sem prejuízo das indenizações e direitos propriamente trabalhistas albergados na legislação.
Nesse sentido, calha mencionar a lição de Luiz Salvador [12]:
Assim, o lesado por assédio moral pode pleitear em juízo além das verbas decorrentes da resilição contratual indireta, também, ainda, a indenização por dano moral assegurada pelo inciso X do art. 5º da Lex Legum, eis que a relação de trabalho não é de suserania, é de igualdade, de respeito, de intenso respeito, cabendo frisar que a igualdade prevista no art. 5º da CF não restringe a relação de trabalho à mera dependência econômica subordinada: assegura ao trabalhador o necessário respeito - à dignidade humana, à cidadania, à imagem, honradez e auto-estima.
Saindo do âmbito federal para incursionar sobre as legislações estaduais e municipais, cumpre registrar, como nota histórica, que o pioneirismo legal no tratamento do assunto coube ao município paulista de Iracemápolis, que regulamentou o tema em 2001. São Paulo e Rio Grande do Sul têm projetos de lei em tramitação nas respectivas assembléias estaduais. É, também, digna de menção a Lei Municipal n. 13.288/2002, da cidade de São Paulo, que procura conceituar o assédio no âmbito da Administração, pela tentativa de capitular, na lei, os traços característicos do assédio moral. Dispõe a lei municipal, em seu artigo 1º, verbis:
Para fins do disposto nesta lei considera-se assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela sua repetição, a auto-estima e a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando em dano ao ambiente de trabalho, à evolução da carreira profissional ou à estabilidade do vínculo empregatício do funcionário, tais como: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir um funcionário só se dirigindo a ele por meio de terceiros. Sonegar informações de forma insistente, espalhar rumores maliciosos, criticar com persistência, subestimar esforços.
O conceito e exemplos mencionados bem podem ser estendidos analogicamente ao conjunto de trabalhadores, até que legislação de caráter amplo (federal) venha a regulamentar o tema.
Pela própria relação exemplificativa do texto legal, nota-se que existem diversas outras hipóteses de assédio moral, sendo impossível sua catalogação exaustiva, de maneira que a sensibilidade do intérprete desempenhará papel fundamental na definição, a cada caso, de sua presença e dos contornos do instituto, tendo por bússola as normas constitucionais indicadas.