O presente artigo visa tecer algumas breves considerações sobre a legalidade ou não do parágrafo 2º do artigo 33 do Decreto nº 70.235/72 e do artigo 24 da MPS nº 520/04, que expressamente exigem o depósito em dinheiro ou arrolamento de bens ou direitos no valor de 30 (trinta) por cento da exigência fiscal definida na decisão proferida em primeira instância do processo administrativo, para que o contribuinte possa exercer o seu direito constitucional de recorrer de decisão que lhe é desfavorável.
A questão abordada, atualmente, é causa de inúmeras discussões no âmbito doutrinário e judicial com vários pronunciamentos a favor da legalidade, bem como, também, muitas e com eloqüentes fundamentos, manifestando-se pela ilegalidade do citado dispositivo legal.
Importa desde logo salientar que adotamos e procuraremos defender a partir de agora a tese de que o parágrafo 2º do artigo 33 do Decreto nº 70.235/72 é totalmente ilegal por ferir a Constituição Federal, o Código Tributário Nacional e os princípios gerais de direito norteadores de nosso ordenamento jurídico. Começaremos a análise da inconstitucionalidade do referido artigo do Decreto nº 70.235/72 e em momento oportuno discorreremos acerca da inconstitucionalidade do artigo 24 da MPS nº 520/04, que regula o Processo Administrativo Tributário no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social.
Antes de começarmos o estudo, afirmamos indubitavelmente que a regra do depósito ou arrolamento de bens prevista no artigo 33 § 2º do Decreto nº 70.235/72 é inconstitucional porque fere os seguintes princípios constitucionais: legalidade, capacidade contributiva, eficiência, interesse público, ampla defesa, contraditório, isonomia ou igualdade.
Começaremos a análise da inconstitucionalidade do citado dispositivo legal frente ao Princípio da Legalidade.
O Princípio da Legalidade, conforme estudamos neste trabalho não objetiva somente, salvaguardar os contribuintes e responsáveis de atitudes do Poder Executivo tendentes a criar tributar ou aumentá-los sem prévia Lei emanada do Poder Legislativo, mas objetiva igualmente estabelecer proteção e regramento para que não sejam editadas leis que infrinjam as regras constitucionais e as Leis Complementares à Constituição em matéria tributária. Diante do exposto, o princípio da legalidade não visa proteger os contribuintes e responsáveis somente de arbitrariedades e ilegalidades provenientes da voracidade tributária do Poder Executivo, mas igualmente protegê-los de leis emanadas do Poder Legislativo eivadas de ilegalidade por graves infrações da ordem constitucional e das Leis Complementares em matéria tributária.
Desta forma, concluímos que deverá a Administração Pública, ao se deparar com norma inconstitucional, deixar de aplicá-la, uma vez que se assim não fizer estará infringindo o seu dever de observar e pautar sua conduta em conformidade com as regras constitucionais regentes de nosso Ordenamento Jurídico.
Pelo exposto, especificamente no âmbito do Processo Administrativo Tributário regulado pelo Decreto nº 70.235/72, deverá a autoridade julgadora de 2ª Instância deixar de aplicar a regra do § 2º do artigo 33 se entender que esta seja inconstitucional ou ilegal, sob pena de ferir o Princípio da Legalidade.
A respeito da nossa afirmação diz a Doutrina:
"Se a ampla defesa é assegurada no processo administrativo, não pode a autoridade administrativa negar-se a discutir matéria constitucional, visto que reduziria a defesa do contribuinte, que deixaria de ser ampla no processo administrativo.
Mais do que isto, se a autoridade administrativa tem convicção de que a norma é inconstitucional, é sua obrigação, como servidora da lei, fazer prevalecer a norma constitucional e não a lei inconstitucional.
O conveniente entendimento de alguns julgadores administrativos, de que não devem examinar questões constitucionais, desclassifica-os, como agentes administrativos e como julgadores.
Todos os cidadãos, sem exceção, devem respeitar a Constituição Federal. E os servidores públicos, principalmente, visto que são aqueles que devem preservar o Estado de Direito, que é plasmado pela lei maior"(MARTINS, 2006, p.74/75)
Em virtude dos fatos analisados, concluímos que deverá a autoridade receber o recurso deixando de aplicar a regra do depósito ou arrolamento de bens se entender que não é constitucional ou legal, sob pena de em não fazendo malferir o Princípio da Legalidade que de sua parte impõe à Administração Pública a observância das leis, sobretudo às leis aduzidas na Constituição Federal. O controle de legalidade dos atos administrativos pela própria Administração envolve a verificação, inclusive, se estão em conformidade com a lei maior de nosso País.
A nossa segunda assertiva neste trabalho é a de que indubitavelmente o depósito ou arrolamento de bens como condição de recebimento do recurso em 2ª instância fere o Princípio Constitucional da Capacidade Contributiva. Provaremos esta afirmação pelos fatos que agora iremos expor.
Como já afirmamos em tópico anterior, o Princípio da Capacidade Contributiva é corolário do Princípio da Igualdade porque seu principal objetivo é a realização do ideal de Justiça Tributária, que, ocorre com a distribuição proporcional aos contribuintes, respeitando sua real capacidade contributiva, do ônus fiscal imposto pelo Estado.
O aludido princípio é o freio inibitório do Fisco, porque sua observância impede que a tributação seja procedida de forma injusta, ou seja, o Princípio da Capacidade Contributiva visa impedir que aqueles que podem contribuir pouco sejam excessivamente onerados e aqueles que possuem maior capacidade contributiva sejam pouco onerados.
Sem a observância do Princípio da Capacidade Contributiva não há como existir tributação isonômica e, desta forma, será impossível a consecução da tão almejada Justiça Tributária.
Importante frisar que o Princípio da Capacidade Contributiva é manifestado expressamente na Constituição Federal e, sendo norma constitucional com status de direito fundamental, sua observância pelo sistema tributário infraconstitucional é obrigatória sob pena de inconstitucionalidade. Desta forma toda regra explicitada no Decreto nº 70.235/72 deverá estar em consonância com este Princípio Constitucional, sob pena de não poder ser aplicada.
O depósito ou arrolamento de bens ou direitos como condição de procedibilidade de recurso voluntário infringe o Princípio da Capacidade Contributiva, porque estabelece verdadeira desigualdade entre contribuintes. O contribuinte que possui situação financeira boa poderá recorrer e defender seu direito, enquanto aquele que não possui bens suficientes não poderá recorrer, ou seja, em virtude de sua má condição econômica terá seu direito à ampla defesa cerceado.
Diante do exposto, constitui a regra do depósito ou arrolamento de bens iníqua maneira infralegal de obstar o direito à ampla defesa à contribuinte que não tenha bens ou disponibilidades financeiras infringindo, portanto, os Princípios da Igualdade e da Capacidade Contributiva e por via oblíqua o Princípio da Ampla defesa e do contraditório.
Para ratificar nosso entendimento transcreveremos abaixo importante lição da Doutrina:
" A exigência do depósito atrita, ainda, a meu ver, com o princípio da capacidade contributiva, que no campo tributário expressa o princípio da isonomia, porquanto coloca em situação de desigualdade os contribuintes para os quais o depósito da quantia impugnada não representa problema maior e os que encontram nesse depósito um obstáculo de monta ao exercício do direito de defesa que lhes é constitucionalmente assegurado" (LOBO, 2006, p. 247)
A regra consubstanciada no artigo 33, § 2º do Decreto nº 70.235/72 fere o Princípio Constitucional da Eficiência, que é princípio informativo da Administração Pública e, por conseguinte, do Processo Administrativo.
O Princípio da Eficiência é o princípio informativo da Administração Pública cuja finalidade é obrigá-la a prestar serviços ou utilidades públicas de maneira célere, com baixo custo e que sejam eficazes.
O leitor então pode perguntar: qual a importância do Princípio da Eficiência e qual a sua influência sobre o Processo Administrativo Tributário?
Podemos afirmar que o mencionado princípio deve ser escrupulosamente empregado e observado no Processo Administrativo Tributário.
Pelo Princípio da Eficiência o processo deve ser célere, o sujeito passivo não pode sofrer qualquer ônus financeiro e deverá dispor de todos os meios eficazes para garantia do seu direito à ampla defesa e ao contraditório.
Diante do exposto, o princípio em estudo visa proporcionar a consecução do principal objetivo do Processo Administrativo Tributário que é garantir ao contribuinte lesado direito à ampla defesa através de processo célere, não oneroso e que possua meios eficazes para garantia e defesa de seus direitos.
Desta forma, concluímos que toda norma que vise tornar o processo oneroso ao contribuinte e que dificulte ou torne ineficaz a sua defesa é indubitavelmente inconstitucional porque fere o Princípio da Eficiência.
Em virtude das conclusões acima expostas é indubitável que a regra do depósito ou arrolamento de bens é inconstitucional por ferir o Princípio da Eficiência, uma vez que constitui obrigação excessivamente onerosa ao contribuinte que, por via oblíqua, torna a garantia da ampla defesa inócua ou ineficaz.
A regra do depósito ou arrolamento de bens como condição de procedibilidade do recurso voluntário do contribuinte não fere somente os princípios acima expostos, mas também fere o Princípio do Interesse Público ou da Indisponibilidade do Interesse Público.
O Princípio do Interesso Público obriga à Administração Pública a velar pela indisponibilidade do interesse geral do Estado. Desta afirmação podemos nos perguntar, o que é esse interesse geral, qual a sua definição e seu alcance?
Interpretando a Constituição Federal, lei maior do Estado brasileiro, constatamos facilmente que nosso Estado é Democrático de Direito, cujo primado é a igualdade de todos perante a lei e a proteção dos direitos fundamentais individuais e coletivos.
Dessa interpretação constitucional do Estado brasileiro podemos afirmar que interesse geral tutelado e indisponível à Administração Pública, nada mais é que a consecução da proteção da igualdade legal e a tutela dos direitos individuais e coletivos pelo Estado.
Desta forma, não pode o Estado brasileiro tanto no exercício de sua função legislativa quanto da administrativa atentar contra esses fins de interesse geral.
Diante do exposto podemos afirmar que o Princípio do Interesse Público impede o Estado de prolatar atos normativos que atentem contra os princípios gerais de Direito que o regem, notadamente os princípios constitucionais, sob pena de ferir o seu dever de tutela de seus interesses gerais que é a instauração real de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Desta forma, podemos concluir que ao estabelecer regra que como provamos obsta o exercício da ampla defesa do contribuinte, o Estado está abrindo mão de seu interesse geral ou interesse público que é proteger os direitos fundamentais do cidadão contribuinte através de mecanismos processuais como é o recurso voluntário, razão por que a regra explicitada no Decreto nº 70.235/72 é inconstitucional.
Continuando nossa explanação, ousamos afirmar que o depósito ou arrolamento de bens ou direitos previstos no artigo 33, § 2º do Decreto nº 70.235/72 é inconstitucional porque fere a garantia do contraditório e da ampla defesa.
Chegamos facilmente a essa afirmação pelo simples fato de que o legislador constituinte ao estabelecer no artigo 5º, LV que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"(CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 2005, p.44, grifo nosso), expressamente garantiu o amplo acesso ao contribuinte lesado a todas as instâncias administrativas, sem mencionar qualquer restrição ou impor qualquer condição para que esse direito constitucional seja exercido. Ora, quando o legislador constitucional diz que a defesa do contribuinte é ampla é o mesmo que dizer que deverá ser exercida em todos os graus de jurisdição, seja em âmbito administrativo ou em âmbito judicial, sem qualquer restrição ou condição ao seu exercício, porque se o constituinte quisesse impor alguma condição ao exercício desse direito do contribuinte, ele o faria de modo expresso. Desta forma, não pode o legislador infraconstitucional criar embaraços ao exercício da ampla defesa pelo contribuinte, uma vez que o legislador constitucional em nenhum momento o fez ou expressamente permitiu a que o legislador ordinário fizesse. Comunga deste pensamento o notável Ives Gandra da Silva Martins (2006, p.66, grifo nosso), que acerca do tema assim se manifesta:
"Em minha opinião, portanto, não é constitucional o depósito total ou parcial do valor exigido pela Fazenda Pública como condição para o exame do recurso administrativo do contribuinte, não valendo, sequer, o argumento de que, nas pequenas entidades federativas ( municípios com nove vereadores), não há quadros para criação de Cortes administrativas. O argumento fático não pode se opor ao claro texto constitucional, que identifica os mais amplos direitos do contribuinte aos processos administrativo e judicial, sem direito a restrição de seus direitos por legislação infraconstitrucional"
Pela análise do supracitado dispositivo constitucional, resta inequivocamente demonstrado que tanto no âmbito judicial, quanto, no âmbito administrativo, os direitos a ampla defesa e ao contraditório são previstos e devem ser obrigatoriamente observados. Desta forma, o legislador constitucional jurisdicionalizou o processo administrativo garantindo aos que nele atuem os mesmos direitos previstos aos partícipes do processo judicial, portanto é totalmente inconstitucional a regra do depósito prévio como requisito de admissibilidade de recurso administrativo, porque como diz acertadamente o Ministro do Superior Tribunal de Justiça José Augusto Delgado (2006, p. 101, grifo nosso) " Para que haja uma verdadeira ampla defesa, como estabelece o constituinte, óbice algum poderá existir".
Alguns doutrinadores e infelizmente alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, entendem, equivocadamente que a garantia da ampla defesa e do contraditório, não incluem o direito do duplo grau de jurisdição. Ora, é totalmente infundada essa tese e merece ser rechaçada por ser desprovida de fundamentos jurídicos que a possam sustentar.
Como dito anteriormente, o constituinte ao garantir o direito à ampla defesa expressamente afirmou que seria exercida com os "recursos e meios a ela inerentes" (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 2005, p.44). Diante do exposto, o legislador não só garantiu o direito a ampla defesa, mas acima de tudo, de maneira expressa disse que ela só será realmente plena ou ampla, se for permitido que o contribuinte possa usufruir todos os instrumentos que a garantam. Esses instrumentos garantidos constitucionalmente englobam não só o direito de petição, mas também os recursos administrativos e, esses só podem ser exercidos se for garantido acesso ao duplo grau de jurisdição, tanto em âmbito administrativo quanto em âmbito judicial. Pelo exposto, o duplo grau de Jurisdição ou o direito ao acesso a segunda instância administrativa de julgamento por ser corolário do direito da ampla defesa é sem sombra de dúvidas direito constitucionalmente garantido aos contribuintes, não podendo seu exercício ser obstaculizado por qualquer norma infraconstitucional. Nesse sentido manifesta-se a mais qualificada doutrina:
" Quer dizer, a Constituição não se limitou a garantir o processo administrativo, mas foi adiante garantindo nesse processo o contraditório e a ampla defesa, e, mais especificamente ainda, dizendo que os recursos são inerentes à ampla defesa. Isto significa que, para a Constituição, os recursos são imanentes, partes integrantes e indissociáveis da ampla defesa, tudo configurando o devido processo legal.
Assim, desde 1988 a dupla instância passou a ser uma característica inseparável do processo administrativo, sem a qual não se pode dizer que a defesa tenha sido ampla. E não havendo ampla defesa, com os recursos que lhe são inerentes, também não se pode afirmar que o contraditório tenha sido garantido." (OLIVEIRA, 2006, p. 200/201)
No mesmo sentido:
" Não obstante já existem manifestações de eminentes autoridades no sentido de que não existe, no Direito brasileiro, garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição no processo administrativo, penso em sentido oposto.
O direito ao duplo grau de jurisdição administrativa é, sem dúvida, um imperativo do Estado Democrático de Direito, e está albergado pelo § 2º, do art.5º, de nossa Constituição Federal" (MACHADO, 2006, p.144)
Alberto Xavier (2002, p.314) assim se manifesta sobre a obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição para garantia da ampla defesa:
" A garantia do duplo grau consiste no princípio segundo o qual os litígios que decorrem perante órgão de julgamento administrativos, notadamente em matéria, devem ser objeto de uma dupla apreciação, de tal modo que da decisão que tenha julgado a impugnação cabe obrigatoriamente recurso"
É importante frisar que a Lei nº 9.784/99 dispõe expressamente que a Administração Pública deverá observar o Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa, e no inciso X do parágrafo único do seu artigo 2º a citada Lei põe uma "pá de cal" no argumento dos juristas que afirmam que a garantia à ampla defesa não envolve necessariamente a garantia de interposição de recurso voluntário de decisão desfavorável ao contribuinte no âmbito do Processo Administrativo.
É importante citar o dispositivo legal comentado:
"art. 2º ....
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;" (BRASIL, 1999, p.2, grifo nosso)
Pelo exposto, o dispositivo legal citado explicita de maneira clara que a garantia da ampla defesa envolve a garantia do contribuinte em interpor recursos administrativos de decisões que lhe sejam desfavoráveis e, desta forma, como já mencionamos, o direito a interpor recurso administrativo por ser corolário do princípio constitucional da ampla defesa e por ser este de categoria de direito fundamental, não poderá ter o seu exercício obstado por normas infraconstitucionais que imponham dificuldades ou requisitos ilegais que, de uma forma ou de outra, visem anular essa garantia constitucional do contribuinte.
Importa ainda salientar, que o direito ao devido processo legal previsto constitucionalmente estabelece que toda e qualquer pessoa só poderá ser privada de seus bens e direitos se lhe for garantido oportunidade de defender-se plenamente, e, para o exercício desse direito o Estado é obrigado a proporcionar ao contribuinte direito a impugnação, recurso, juiz imparcial, duplo grau de jurisdição e todas os meios e recursos que proporcionem a plena e ampla defesa do contribuinte. Desta forma, ampla defesa é direito, elevado à categoria de direito fundamental e, como tal, não pode ser excluído sequer por emenda à Constituição, e o seu exercício não depende de lei que o regulamente. Assim, não poderá o Legislador infraconstitucional estabelecer qualquer regra com o objetivo de dificultar ou mesmo impedir o exercício desse direito. Nesse sentido manifesta-se a doutrina, senão vejamos:
" Como já dito na resposta da primeira questão, o grau constitucional a que foi elevado o processo administrativo, com total aplicação de preceitos e princípios constitucionais para a preservação das garantias fundamentais do contribuinte, por quaisquer justificativas que se apresentem, não dão ensejo a interferências e violações. Ao se exigir depósito parcial ou total de valor cobrado pelo Fisco, e que esteja em discussão em processo administrativo, como requisito para o recebimento de recurso que pretende a revisão de decisão de primeira instância, estará sendo praticada intolerável violação de princípios básicos orientadores da relação Fisco/contribuinte, estabelecida no processo administrativo tributário.
Merece destaque por sua notória relevância o princípio basilar da ampla defesa, assegurado ao contribuinte em processo administrativo, através de previsão de clareza meridiana contida no inc. LV, do art. 5º do Texto Constitucional de 1988, no qual traz o propósito do legislador constituinte, ao deixar expresso que tal garantia tem validade com a utilização dos "meios e recursos a ela inerentes" , ou seja, através da aplicação de todos os meios e de todos os recursos necessários para fazer valer a sua existência, nestes incluído o direito de revisão e julgamento por mais de uma instância.
É de tal importância o princípio da ampla defesa que sequer poderá ser abolido restringido mesmo através de emenda constitucional, muito menos por qualquer lei ou medida provisória (ato administrativo com força de lei)" (MIRETTI, 2006, pg 623).
A exigência do depósito ou arrolamento de bens, analisado sob o prisma do princípio da ampla defesa e do contraditório é indubitavelmente inconstitucional porque fere os princípios corolários da ampla defesa, a saber: imparcialidade, duplo grau de jurisdição, direito de petição e todos os demais que são pressupostos e inerentes para que o direito dos cidadãos à ampla defesa e ao contraditório seja efetivamente garantido.
O depósito ou arrolamento de bens não fere somente os princípios da ampla defesa e do contraditório, e demais princípios acima explicitados, mas também fere igualmente o princípio da isonomia.
Analisada sob o prisma do princípio da isonomia a regra do artigo 33 parágrafo 2º do Decreto nº70.235/72 é, igualmente, eivada de inconstitucionalidade, posto traduzir-se em ilegal distinção entre contribuintes. Diferenciação ilegal que se caracteriza pelo fato de que os contribuintes que possuem boas condições financeiras poderão recorrer, enquanto aqueles que não as possui estarão impedidos de utilizar-se da via recursal. Desta forma, há na exigência do depósito ou arrolamento de bens flagrante violação ao princípio da igualdade, o que, evidencia-se ainda mais a inconstitucionalidade da exigência legal em análise. Diva Malerbi (2006, pg.128, grifo nosso), desembargadora do TRF –3ª Região, assim pronuncia sobre a questão:
" Por força do art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, equiparando o processo administrativo ao processo judicial, é vedado à Administração Pública exigir tributos ou aplicar penalidades pecuniárias ao contribuinte, sem assegurar-lhe o instrumento. Somente haverá processo se os poderes, faculdades e deveres são distribuídos entre as partes de modo a que haja efetiva e real correspondência entre as várias posições jurídicas. A quebra da regra da simetria será justificada se houver proporção entre a medida adotada e os fins com ela visados, inocorrente na hipótese vertente. A necessidade de agilizar a arrecadação tributária é finalidade que pode ser perseguida pelo Fisco, mas o meio é flagrantemente inapropriado ao fim visado, ante o gravame ao princípio da isonomia"
Pelo exposto, resta inequivocamente provado que o parágrafo 2º do artigo 33 do Decreto nº 70.235/72 é inconstitucional porque fere os princípios da ampla defesa e do contraditório e do princípio da isonomia, bem como todos os princípios constitucionais acima expostos.
Ainda resta afirmar que, o citado dispositivo legal, além de inconstitucional, é ilegal por ser frontalmente contrário ao Código Tributário Nacional.
Para fundamentar a alegação acima é oportuno transcrever o artigo 151 do Código Tributário Nacional (VAD..., 2005, pg.534, grifo nosso), que expressamente dispõe:
" Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
- Moratória;
- o depósito do seu montante integral;
- as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;
- a concessão de medida liminar em mandado de segurança;
- a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial;
- o parcelamento.
Diante do regido no citado artigo do Código Tributário Nacional, que, importa salientar, possui status de lei complementar, resta configurado que tanto as reclamações e os recursos quanto o depósito do montante integral são alternativas legais, postas à disposição do sujeito passivo que interpostas, quer opte por uma ou outra, são aptas a suspender a exigibilidade do crédito tributário. Desta forma, o artigo 33 § 2º do Decreto nº 70.235/72 ao dispor que o recurso só poderá ser conhecido se além dele, o sujeito passivo depositar o valor do débito fiscal é exigência totalmente ilegal porque estabelece maior gravame do que estabelece o Código Tributário Nacional. Ora, se o Código Tributário Nacional, lei complementar, exige apenas uma ou outra alternativa legal para que seja suspensa a exigibilidade do crédito tributário reputado indevido, como pode o Decreto nº 70.235/72, lei ordinária, exigir o depósito e o recurso, estabelecendo exigência mais gravosa do que dispõe a lei complementar, Código Tributário Nacional, que regula o Sistema Tributário Nacional? Pelo exposto, claro está, que a regra do depósito ou arrolamento de bens, além de ferir a Constituição, fere igualmente o Código Tributário Nacional. Nesse sentido somos apoiados pela doutrina, nos seguintes termos:
"Ora, para suspender a exigibilidade do crédito tributário o Código Tributário Nacional exige quatro procederes:
- a liminar em mandado de segurança;
- a moratória;
- as reclamações e os recursos na esfera administrativa;
- o depósito do montante integral do crédito tributário.São autônomos os procedimentos. Cada um deles é suspensivo de per si. Por isso, fere o CTN exigir depósito para recorrer (bis in idem)" (COÊLHO, 2006, pg. 191)
Ainda para robustecer a afirmação supra importa-nos transcrever o que diz sobre o assunto o professor Ives Gandra da Silva Martins (2006, pg.70, grifo nosso):
" É, portanto, a lei complementar norma de integração entre os princípios gerais da Constituição e os comandos de aplicação da legislação ordinária, razão pela qual, na hierarquia das leis, posta-se acima destes e abaixo daqueles. Nada obstante alguns autores entendam que tenha campo próprio de atuação- no que tem razão -, tal esfera própria de atuação não pode, à evidência, nivelar-se àquela outra pertinente à legislação ordinária. A lei complementar é superior à lei ordinária, servindo de teto naquilo que é de sua particular área mandamental."
Diante do exposto, pelas razões fáticas, legais e doutrinárias, o artigo 33 § 2 º do Decreto n º 70.235/72 é inconstitucional porque fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, legalidade, capacidade contributiva, eficiência, interesse público e da isonomia e é eivado igualmente de ilegalidade por afrontar expressamente o Código Tributário Nacional.
Comprovada a inconstitucionalidade e ilegalidade da regra recursal consubstanciada no Decreto nº 70.235/72, trataremos a partir de agora da análise do artigo 24 da MPS nº 520/04 que estabelece a condição do depósito de 30 %(por cento) do valor da exigência fiscal definida na decisão de 1ª Instância para que o recurso do contribuinte possa ser conhecido em 2ª Instância Administrativa no âmbito do Processo Administrativo dos tributos cobrados e arrecadados pelo INSS.
Para não nos tornarmos repetitivos, importa-nos informar que a regra recursal acima exposta é inconstitucional e ilegal pelos mesmos fundamentos de direito acima expostos. Porém há na Portaria do Ministro de Estado da Previdência citada vício formal que produz a inconstitucionalidade da regra do depósito bem como de todas as normas constantes da MPS nº 520/04 que porventura versem sobre regras específicas de processo.
A MPS nº 520/04 é conforme se depreende de sua análise, portaria expedida pelo Ministro de Estado da Previdência Social, portanto não é lei em sentido material, ou seja, não é norma criada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo. Nós sabemos péla análise do artigo 22 da Constituição Federal que compete à União, privativamente, legislar (por lei em sentido material) acerca de normas sobre processo. Desta forma não pode o Ministro de Estado legislar sobre matéria específica da União. Portanto, diante do exposto são inconstitucionais todas as normas da MPS nº 520/04 que dispõem acerca de regras processuais e, em virtude disso é inconstitucional a regra do depósito consubstanciada no artigo 24 da referida portaria Ministerial, porque se trata de norma puramente de natureza processual.
Acerca de nossa afirmação dispõe a Doutrina:
" A competência para legislar sobre processo (CF/88, art. 22, I ) e sobre procedimentos em matéria processual (CF/88, art. 24, XI ) é expressamente definida em razão daz importância nuclear do processo em todos os quadrantes do Estado. A CF/88 conferiu à União a competência privativa para legislar sobre Direito processual, e competência concorrente e suplementar entre União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre procedimentos em matéria processual. Nenhum Ministro de Estado está autorizado constitucionalmente a interferir por via de ato administrativo (portaria) no regime jurídico procedimental e processual tributário, pois competência dessa natureza não decorre do art. 87 da CF/88, que supostamente dá suporte à Portaria MPS nº 520/04." (MARINS, 2006, p.338)
No mesmo sentido diz o autor:
"De fato, a Portaria sob comento não é formalmente idônea para conter em seu rol de matérias a disciplina do processo" (MARINS, 2006, p.338)
Diante de todo o exposto concluímos serem inconstitucionais as regras do depósito ou arrolamento de bens constantes do decreto nº 70.235/72 e da MPS nº 520/04. Como afirmamos anteriormente a discussão na Doutrina e na Jurisprudência sobre o tema é ampla, sendo que o Supremo Tribunal Federal está a ponto de decidir pela inconstitucionalidade da regra do depósito e arrolamento de bens. Cinco Ministros já votaram pela inconstitucionalidade enquanto apenas um votou pela constitucionalidade. O Julgamento do recurso, proposto pela HTM – Distribuidora de Melaço LTDA, foi suspenso em abril de 2004, através de um pedido de vista do Ministro César Peluzo. Esperamos que além do Ministro mencionado os outros quatro Ministros votem pela inconstitucionalidade da regra recursal. Seria uma vitória para os contribuintes e para a própria Constituição Federal que, se for firmado o entendimento da inconstitucionalidade, terá os seus princípios fundamentais defendidos pela Suprema Corte de nosso País.