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Da objeção de consciência à transfusão de sangue sob o enfoque da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade do paciente

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O sistema jurídico brasileiro admite, em diversas circunstâncias, que o particular possa assumir riscos em razão de convicções pessoais ou projetos de vida.

RESUMO: Este artigo abordará o instituto da objeção de consciência a transfusão de sangue no ordenamento jurídico pátrio. Esta pesquisa tem como objetivo discorrer acerca do instituto supracitado, as hipóteses de aplicação, bem como suas implicações legais e qual o impacto de tal em quem a suscita. Será analisado como o processo se desenvolve na doutrina, legislação e jurisprudência. Ainda que o foco seja a objeção a transfusão de sangue por motivos religiosos, na maior parte invocada por pacientes adeptos da religião Testemunhas de Jeová, a mesma poderá ser reivindicada por outras pessoas, por motivos clínicos ou filosóficos. Serão trabalhadas as temáticas do direito à vida junto com os princípios do respeito a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade do paciente. Por fim, a objeção de consciência pode também ser estudada sob um ângulo paralelo: o direito à liberdade de escolha de um tratamento médico isento de sangue.

Palavras-chave: Objeção de Consciência a transfusão de sangue. Direito à vida sob o enfoque da dignidade humana. Autonomia da vontade do paciente.


INTRODUÇÃO

Este artigo nasce do intuito de discorrer e elucidar os principais aspectos da recusa à transfusão de sangue, justificado por objeção de consciência e quais suas consequências jurídicas. O instituto da objeção de consciência ainda é pouco conhecido e difundido pela sociedade brasileira, mesmo podendo ser abstraído de nossa Constituição Federal.

Porém é valido destacar que, de forma alguma, trata-se de um instituto novo. O Brasil é sabidamente um Estado Democrático de Direito e como tal, sua Constituição Federal, recepciona os mais diversos direitos e tópicos, sendo que em sua fundação, destacam-se os direitos fundamentais que foram introduzidos no texto legal. Tais preceitos derivam dos Direitos Humanos, conquistados arduamente após séculos de transgressões à tais leis naturais.

Tais direitos tiveram sua sintetização e ampla divulgação após a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), que remonta do fim do período pós II Guerra Mundial, na qual foram transgredidas todas as espécies de direitos possíveis, como no Holocausto nazista. Em que pese a garantia constitucional de liberdade religiosa, direito à vida e demais direitos que concedam liberdade dentro dos liames legais, um tema específico é bastante controverso para a doutrina brasileira, médicos e para as instituições, que é a recusa de transfusão de sangue, que tem por principal expoente, as Testemunhas de Jeová, que embasam suas decisões de recusa na bíblia cristã.

Numa análise superficial, parece haver um aparente conflito de direito nesta questão. Cabe a este artigo, elucidar eventuais respostas e trazer à tona os posicionamentos que levam os indivíduos que optam pela recusa de tratamentos médicos às transfusões a tomar tal decisão e ainda, comparar com as principais decisões judiciais que o judiciário brasileiro oferece acerca de tal assunto.

Este estudo tem como objetivos, analisar os princípios jurídicos acerca das decisões da recusa de um tratamento médico e estudar as alternativas (viáveis) que possam substituir os tratamentos com sangue, os quais não prejudiquem nem atentem contra a moral do objetor de consciência.

Numa análise fria, aparentemente muitos tendem a alegar que se deve proteger o suposto maior bem jurídico tutelado pela Constituição Federal: a vida. O caso concreto, aqui trazido, extrapola uma leitura positivista da lei. Cabe a esta pesquisa, encontrar um caminho que atenda o aspecto moral de quem deseja, sem quaisquer transgressões legais.

Para tal, este artigo foi promovido através de uma ampla pesquisa bibliográfica, fazendo o uso ainda, como referência, de outros estudos e pesquisas relacionadas ao tema, desde que devidamente registradas. Os métodos utilizados nesta pesquisa, foram o dedutivo e o dialógico; a abordagem qualitativa; a de objetivo explicativo e o procedimento bibliográfico.

1 DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA

O instituto da objeção de consciência mesmo que pouco conhecido e difundido na realidade jurídica brasileira está representado em nossa Constituição Federal. Não se trata de um instituto novo.

A objeção de consciência pode, resumidamente, ser definida como a recusa motivada, a quem, por motivos inerentes à suas convicções, venha se negar a praticar ou aceitar algum ato. O doutrinador Celso Ribeiro Bastos traça uma relação entre uma disposição constitucional, presente no Art. 5º, VIII da C.F com a objeção de consciência em si.

Para Celso Ribeiro Bastos, este artigo trata diretamente da objeção de consciência, a qual, é definido por este autor da seguinte maneira:

É o direito reconhecido ao objetor de não ser compelido a abandonar suas crenças religiosas por imposição estatal. Isto equivaleria, em última instância, a atribuir ao Poder Público o direito de inviabilizar determinada crença religiosa, minando seus fundamentos e impossibilitando seu culto. (BASTOS, 2000, p. 13)

A definição dada por José Carlos Buzanello é de que, a objeção de consciência está caracterizada como um teor de consciência razoável, de pouca publicidade e de nenhuma agitação, objetivando, no máximo, um tratamento alternativo ou mudanças da lei (2001).

Prossegue Buzanello, estabelecendo em sua obra que a objeção de consciência seria ainda:

[...] a recusa ao cumprimento de deveres incompatíveis com as convicções morais, políticas e filosóficas. A escusa de consciência, significa a soma de motivos alegados por alguém, numa pretensão de direito individual em dispensar-se da obrigação jurídica imposta pelo Estado, a todos indistintamente. (2001, p. 174).

Observa-se então que a objeção de consciência coincide com as liberdades públicas clássicas que estabelecem ainda o que se é permitido e condições ou atos de não fazer, os quais, de nenhuma maneira poderá o indivíduo componente da sociedade ou o próprio Estado, transgredir tal disposto. De fato, engloba-se como um direito humano fundamental.

Para John Rawls, a objeção de consciência nada mais é que a desobediência a uma injunção legal ou a uma ordem administrativa mais ou menos direta (RAWLS, p. 408). Contudo, em que pese o aparente e flagrante conflito de ideias e de princípios, deverão estas serem sopesadas para que não ocorram a supressão de liberdades, tais como a liberdade de pensamento, a liberdade de crença, liberdade filosófica e principalmente, políticas.

Assim, com este instituto reconhecido, o Estado, que se coloca como tutor direitos fundamentais, não poderá de maneira alguma, adentrar sobre direito alheio e individual. Ou seja, de forma que não alcance o foro íntimo e privacidade do homem. Para Buzanello, o cerne da questão da objeção da consciência é em cima da não-ingerência do Estado em assuntos privativos de consciência individual. Resumidamente, seria uma espécie de sobra estatal onde ele invade opções que não deveria (2001, p.174).

Há de se destacar ainda, a questão estrutural acerca da objeção de consciência, a qual, se vale de uma complexa ordenação, a qual, impõe ao Estado, alguns deveres para a tutela de direitos subjetivos e individuais. Tais deveres, conferem-se em dupla perspectiva, sendo uma delas, constituindo normas de competência negativa para os poderes públicos que se traduz em uma obrigação de não fazer, e a outra a viabilização do gozo da objeção de consciência pelo particular.

Assim, a perspectiva seria em relação à implicação de um poder de exercício positivo dos direitos fundamentais (liberdade positiva) e ainda, exigindo que o Estado não faça intervenções em assuntos estritamente particulares ligados à objeção de consciência, de forma que se evite transgressões eventualmente lesivas vindas do Estado em atitude de liberdade negativa (BUZANELLO, 2001, p. 175).

2 DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A objeção de consciência pode abarcar diversas áreas do direito e da vida humana, porém destacam-se as áreas religiosa, militar e médica. É compatível com a Constituição Federal Brasileira de 1988. Ainda que não trate explicitamente sobre a objeção de consciência, é importante destacar o inciso III, do Art. 1º da Constituição.

O referido artigo, expressamente prevê, a título de princípios fundamentais, algo basilar para a objeção de consciência que é a garantia de que o Estado não ferirá a dignidade da pessoa humana:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I a soberania; II a cidadania; III a dignidade da pessoa humana; [...] (BRASIL, 1988).

Na Constituição Federal podem ser citados pelo menos dois artigos que têm conexão com a objeção de consciência. Um deles se trata do art. 5º, inciso VIII, que preceitua:

Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (BRASIL, 1988, Art. 5, VIII)

Outro dispositivo se trata do art. 143 da Constituição Federal, que traz em seu texto que o serviço militar é obrigatório nos termos da lei, em seu parágrafo 1º, diz que:

§ 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. (BRASIL, 1988, Art. 143)

As prestações alternativas devem ser compatíveis com as convicções do indivíduo que as suscitam, para que o instituto da objeção de consciência seja plenamente atendido na prática.

Ainda na Constituição Federal, o supracitado art. 5º, em seu inciso VI, traz em seu corpo a garantia da liberdade religiosa em nosso território, onde seu texto diz que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (BRASIL, 1988, Art. 5°).

Assim, a objeção de consciência por motivos religiosos encontra respaldo no sistema constitucional. No próximo tópico, será analisada especificamente a questão da objeção a transfusão de sangue por paciente adepto da comunidade religiosa Testemunhas de Jeová.

3 OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA A TRANSFUSÃO DE SANGUE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITO À VIDA

Antes de adentrar à seara da objeção da consciência e sua relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, devemos entender o conteúdo jurídico deste princípio e suas implicações na ciência do Direito. O que é nítido é que tal princípio se refere à liberdade individual e ao direito à vida que todo ser humano dispõe naturalmente e também é assegurado na ordem constitucional.

A dignidade humana, como princípio basilar para a tutela dos direitos, é definida pelo autor Ailton Cocurutto como um valor fundamental, que deve integrar a própria noção de pessoa humana, pois é um vetor inicial e final na vida de cada um (2008, p. 06). Tal valor é intrínseco à cada vida, cada ser humano e envolve aspectos subjetivos.

Assim, o conceito de dignidade é intimamente ligado à própria vida e liberdade do ser humano. Percebe-se então, a relação ainda deste princípio, com o reconhecimento de que os pacientes objetores de transfusão de sangue desejam ter sua dignidade preservada, vida conservada e liberdades individuais respeitadas.

Este princípio está disposto em nossa Constituição Federal como princípio basilar. De acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, todos os pacientes têm o direito a serem tratados com dignidade. O princípio ético que estabelece e prioriza o respeito à dignidade da pessoa humana tem, como consequência, a obrigação dos profissionais médicos de mostrar respeito, compreensão e tolerância para com os pacientes e seus familiares em geral.

Esse princípio também estabelece que não há justificativa moral para qualquer tipo de discriminação, maus-tratos ou abusos. O princípio da dignidade permite que os médicos reconheçam a autonomia dos pacientes e seu direito de tomar decisões sobre sua saúde, incluindo o direito de recusar o tratamento.

Para Celso Ribeiro de Bastos todos os direitos encontram-se ancorados em um direito que lhes é pressuposto, qual seja, o direito à vida. Este é o fundamento de todos os demais direitos (BASTOS, 2000, p. 06). No entanto, o doutrinador destaca, ainda, que:

O direito à vida costuma ser atrelado à ideia de dignidade da pessoa humana. No caso do Brasil, pois, pode-se buscar como fundamento da tutela estatal referida, tanto o direito à vida quanto o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988. (BASTOS, 2000, p. 06).

A devida importância dada ao princípio da dignidade da pessoa humana é explicitada nas palavras de Sarlet:

Princípio da dignidade da pessoa humana assume posição de destaque, servindo como diretriz material para a identificação de direitos implícitos (tanto de cunho defensivo como prestacional) e, de modo especial, sediados em outras partes da Constituição (2001, p.101).

Ainda sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, posiciona-se Barcellos, a respeito do tema, ponderando que:

 A dignidade da pessoa humana é hoje considerada, sob vários pontos de vista, o pressuposto filosófico de qualquer regime jurídico civilizado e das sociedades democráticas em geral. Assim, do ponto de vista da lógica que rege a eficácia jurídica em geral, a modalidade que deve acompanhar as normas que cuidam da dignidade humana é a positiva ou simétrica (2002, p. 203).

Assim não há como fazer uma leitura individualizada do direito à vida, pois o insumo básico para que a mesma se mantenha é a dignidade da pessoa humana. Neste aspecto, Alexandre de Moraes leciona:

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Um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (2003, p. 129)

A conclusão é que este princípio delimita e norteia os planos individuais do direito à vida e a liberdade da pessoa em decidir sobre os rumos médicos. O respeito à dignidade da pessoa humana é fundamento para o respeito a autonomia da vontade do paciente e a escolha de tratamentos médicos isentos de sangue, conforme serão analisados nos dois próximos tópicos.

4 OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA À TRANSFUSÃO DE SANGUE E AUTOMOMIA DA VONTADE DO PACIENTE.

A autonomia da vontade, em conceito, é basicamente a possibilidade de qualquer ser humano escolher os rumos que deseja encaminhar a sua vida. No âmbito jurídico, tal autonomia está intrinsecamente ligada a dignidade humana e as liberdades individuais. No campo médico, Mikaela Barreira Costa delineia que:

A autonomia do ser humano está ligada a diversos direitos fundamentais que se desdobram em um fenômeno jurídico que nesta relação pode gerar implicações positivas e negativas para ambos os lados. Espera-se que a prestação de serviço médico coadune com as escolhas do paciente através do consentimento informado e a observação de manifestações antecipadas de vontade (2017, p. 02)

Para o ministro do STF Roberto Barroso, há uma ligação entre os direitos fundamentais e a autonomia do ser humano, onde os direitos fundamentais envolvem a autonomia privada, a autonomia pública e o mínimo existencial. Deles decorre um conjunto de posições individuais e de prestações exigíveis do Poder Público ou de particulares (2010, p. 17). Ainda que uma das principais características destacadas pelos doutrinadores na esfera dos direitos fundamentais seja sua indisponibilidade, para Barroso a "afirmação peremptória da indisponibilidade parece imprecisa ou, no mínimo, exige qualificações e exceções. A disposição de posições jurídicas subjetivas decorrentes de direitos fundamentais faz parte, com frequência, do próprio exercício do direito (BARROSO, 2010, p. 17). O autor preceitua que:

Portanto, existe no mínimo um problema conceitual por trás da afirmação de que direitos fundamentais são indisponíveis. Na sua dimensão subjetiva, é perfeitamente legítimo que o titular de um direito fundamental, voluntariamente, abra mão de certas posições jurídicas (2010, p. 18).

Para o doutrinador Celso Ribeiro Bastos, o direito à vida se perfaz contra o Estado, o qual tem como dever, a preservação da vida, ou seja, isto significa que o Estado há de prover a necessária e adequada segurança pública, que impeça inclusive os demais particulares de desrespeitarem este sagrado direito (BASTOS, 2000, p. 06). Para Bastos ainda é necessário observar que:

Qualquer intervenção estatal nesta seara - por exemplo, mandado judicial requerido pelos médicos para transfundir sangue em adultos, contra seu desejo, ou em filhos de Testemunhas de Jeová contra o consentimento de seus pais - deverá ser submetida a cuidadoso escrutínio, sob pena de estar-se violando frontalmente a dignidade da pessoa humana. (BASTOS, 2000, p. 07).

Desta forma, ainda que o Estado tenha o dever de resguardar a vida, tal cuidado não poderá ser feito de maneira que transgrida outros princípios, em destaque o da dignidade da pessoa humana e a autonomia do paciente. José Luiz Quadro Magalhães, dispõe que:

O direito à vida vai além da simples existência física. O direito à vida que se busca através dos Direitos Humanos é a vida com dignidade, e não apenas a sobrevivência. Por este motivo, o direito à vida se projeta de um plano individual para ganhar a dimensão maior de direito. (MAGALHÃES, 2000, p.189).

Para o ministro Barroso, o Estado não poderá, em nenhuma hipótese, anular a liberdade pessoal e a autonomia moral do indivíduo a fim de lhe administrar transfusão de sangue:

Vigora, no direito constitucional brasileiro, o princípio da liberdade, do direito geral de liberdade, expresso no art. 5º, II, da Constituição: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Desnecessário enfatizar que a lei há de ser compatível com a Constituição e que há limites para a restrição a direitos fundamentais (2010, p. 18).

Barroso encara a recusa a transfusão de sangue do paciente Testemunha de Jeová por motivos religiosos como questão existencial, que decorre da autonomia e da liberdade pessoal. Assim, é discutível que valores puramente pessoais ou ainda direitos fundamentais possam justificar a intromissão Estatal (2010, p. 22). Quando um ou mais direitos fundamentais e individuais entram em concorrência, não deverá ser o Estado quem decidirá a respeito sobre qual direito deve prevalecer, sob pena de afronta a uma série de questões existenciais e pessoais relacionadas a dignidade do indivíduo.

A jurisprudência brasileira tem começado a compreender que a proteção da dignidade do ser humano, envolve a tutela da sua autonomia como paciente em decisões de foro íntimo, isto é, as chamadas questões existenciais. O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso determinou a transferência de paciente Testemunha de Jeová para unidade hospitalar tratá-lo sem transfusão de sangue:

TESTEMUNHA DE JEOVÁ PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIREITO À SAÚDE DEVER DO ESTADO RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA PRINCÍPIO DA ISONOMIA OBRIGAÇÃO DE FAZER LIMINAR CONCEDIDA RECURSO PROVIDO. A liberdade de crença, consagrada no texto constitucional não se resume à liberdade de culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se e seguir os preceitos dela. - Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la. - (T/JMT AGRAVO: 22395/2006).

Na mesma linha de orientação, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região possibilitou que um jovem Testemunha de Jeová de 19 anos, que fazia tratamento de leucemia, recusasse transfusão de sangue:

A opção de escolha pela modalidade e características do tratamento médico que lhe pareça mais conveniente, sob os aspectos biológico, científico, ético, religioso e moral, é conduta que possui a natureza de direito fundamental, protegida pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Liberdade, na forma preconizada no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. É lícito que a pessoa enferma e no pleno exercício de sua capacidade de expressão e manifestação de vontade, de modo claro e induvidoso, recuse determinada forma de tratamento que lhe seja dispensado, não se evidenciando nesse caso lesão ao bem maior da vida, constitucionalmente tutelado, mas se configurando, de outro modo, o efetivo exercício de conduta que assegura o também constitucional direito à dignidade e à liberdade pessoal. (TRF1. Agravo de Instrumento n. 0017343-82.2016.4.01.0000/MG. Decisão pelo Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, julgado em 16 de maio de 2016).

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais cassou uma decisão de primeiro grau que autorizava a aplicação de sangue contra a vontade do paciente religioso, reconhecendo que:

[...] o direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustado ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que lhe agregam (Agravo nº 191.519-6/001, julgado em 14.08.2007- TJMG).

Em outro caso o Tribunal de Justiça de Santa Catarina fez uma ponderação entre a liberdade de crença e a vida, mas note que a análise do direito à vida envolveu a tutela da dignidade da pessoa humana:

Nesse caso, se fará a ponderação entre a liberdade de crença e a vida, mas não apenas a integridade física, a intelectual e psíquica também devem ser consideradas, ou seja, tutelar uma vida digna. Assim, admite-se o direito das minorias de não realizar a transfusão de sangue, pois se estaria violando o direito a uma vida digna de uma pessoa Testemunha de Jeová. TJ/SC. (Agravo de Instrumento n. 2011.016822-7, de Joinville. Decisão pelo Relator: Des. PAULO ROBERTO SARTORATO, julgado em 25 de março de 2011).

Interessante o julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual o relator pondera sobre a transfusão de sangue forçada:

Não vejo como possa a recorrente ser submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial; tratamento este que não obstante possa preservar-lhe a vida, retira dela toda a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido, desnecessária, vazia.(...) Colocada assim a questão, dir-se-ia que o Estado não pode intervir nessa relação íntima da pessoa consigo mesma, nas suas opções filosóficas, especialmente na crença religiosa, constitucionalmente protegida como direito fundamental do cidadão, mesmo que importe risco para a própria pessoa que a professa (e para ninguém mais), sob pena de apresentar, o Estado, sua face totalitária ao ingressar cogentemente no âmbito da essência da individualidade do ser humano, onde não deve estar. (TJ/RS. DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL. Agravo de Instrumento nº 70032799041. Relator: DES. CLÁUDIO BALDINO MACIEL, julgado em 11 de março de 2010).

Ademais, a Procuradoria Federal da República ingressou em 2019 com a ADPF nº 618, a qual visa resguardar o direito de o paciente Testemunha de Jeová maior de idade recusar transfusão de sangue por meio de um documento, como, por exemplo, Testamento Vital ou Diretivas Médicas Antecipadas. A referida ação aguarda julgamento.

5 OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA À TRANSFUSÃO DE SANGUE E DIREITO DE ESCOLHA DE TRATAMENTOS MÉDICOS ISENTOS DE SANGUE.

O direito de liberdade de escolha de tratamento médico decorre do respeito à dignidade da pessoa humana e do princípio da legalidade, o qual estabelece que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, a não ser em virtude de lei (art.5º, II, CF).

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, também estabelece que:

Artigo 6 Consentimento:

a) - Qualquer intervenção médica preventiva, diagnóstica e terapêutica só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido do indivíduo envolvido, baseado em informação adequada. O consentimento deve, quando apropriado, ser manifesto e poder ser retirado pelo indivíduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razão, sem acarretar desvantagem ou preconceito.

Para que haja intervenção médica, deve haver consentimento do paciente. Isso não é novidade na legislação brasileira. A título de exemplo, a lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos (Lei 9.434/97), estabelece que:

Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento (PLANALTO, 2021).

No mesmo sentido, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, introduzida pela Portaria 1.820/2009 do Ministério da Saúde, também determina:

Art. 4º (...) Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe:

XI o direito à escolha de alternativa de tratamento, quando houver, e à consideração da recusa de tratamento proposto;

Art. 5º Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-lhe:

V o consentimento livre, voluntário e esclarecido a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo nos casos que acarretem risco à saúde pública, considerando que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer instante, por decisão livre e esclarecida, sem que sejam imputadas à pessoa sanções morais, financeiras ou legais;

Assim, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a liberdade de escolha de tratamento médico por parte do paciente, de tal forma que a intervenção médica só poderá ser realizada com o consentimento do mesmo. Este consentimento deve ser feito por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Como o próprio nome diz, o paciente não pode ser pressionado a assinar um termo que contém diretrizes médicas que não concorda ou não foi previamente esclarecido de seus benefícios, riscos e alternativas.

Neste sentido, o Parecer nº 1.571/04 do Conselho Regional de Medicina do Paraná, esclarece:

O Termo de Consentimento deve ser veículo de efetiva e dialógica relação entre médico e paciente, reduzindo a habitual e indesejável assimetria ainda prevalente. Deve ser considerado como oportunidade do paciente ser ouvido e respeitado como ser humano e não como mecanismo de defesa do médico contra eventuais processos judiciais.

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro no Parecer 124/03 proferiu entendimento idêntico:

EMENTA: Não deve ser adotado um termo de consentimento informado tipo padrão, pois a cada novo passo no diagnóstico, e no tratamento do paciente, devem ser expostos e autorizados os novos procedimentos, sempre em busca da conduta ideal.

Por mais que reconheçamos as vantagens que possam advir da assinatura do mesmo, é nossa impressão de que é muito difícil para qualquer paciente dar uma carta branca, uma autorização para qualquer procedimento que tenha de ser feito, pois cada ato médico tem naturalmente a sua adequada indicação, risco, vantagem e desvantagem... Além disso, por mais que queira um Diretor normatizar, cada médico tem seu ponto de vista, sua forma de relacionamento médico-paciente e sua responsabilidade na proposição dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, sempre em busca da conduta ideal.

Assim, com o objetivo de assegurar o direito de escolha e a autonomia do paciente, os Termos de Consentimento Livres e Esclarecidos devem conter cláusulas e perguntas específicas aos tratamentos que são propostos aos pacientes, dando ao mesmo a oportunidade de consentir ou não com a realização dos mesmos. No caso dos pacientes que objetam transfusão de sangue, o mesmo deve ser feito por meio dos referidos termos. Deve ser dada a oportunidade de o paciente manifestar a recusa a transfusão e solicitar tratamentos médicos isentos de sangue.

Importante não apenas frisar as questões jurídicas relacionadas como também destacar as implicações médicas, acerca da questão. Estudos ao redor do globo, apontam riscos e queda acentuada da qualidade de vida do paciente que foi submetido a transfusões de sangue.

Tais implicações, variam, podendo apresentar sintomas que vão de leves a muito graves. Segundo a Agência de Vigilância Sanitária alguns dos riscos envolvendo as transfusões de sangue são: janela imunológica, estado de imunossupressão, alteração morfológica, reação hemolítica e alérgica, contaminação viral, bacteriana ou protozoária, confusão do tipo sanguíneo, dentre outros (MANUAL DE HEMOVIGILÂNCIA, 2012).

Um estudo realizado pelo Ministério da Saúde, constatou que nos bancos de sangue brasileiros, apenas um percentual do sangue transfundido, em torno de 60%, passaram em testes exigidos pelo próprio Ministério e pela legislação, de maneira satisfatória (MANUAL TÉCNICO DA ANVISA, 2004). Se extrai rapidamente o potencial risco sanitário envolvido quando em torno de 40% de todo o sangue não atende à parâmetros exigíveis de qualidade.

Há de se ressaltar ainda, uma questão extremamente delicada, que é em função da doação de sangue por parte de possíveis indivíduos contaminados com o vírus da AIDS que não foram detectados na janela de produção de anticorpos que se estima entre 30 e 60 dias após a infecção. O doador poderá apresentar o falso negativo que seria a hipótese de o vírus estar circulando pelo sangue sem conhecimento inclusive dos médicos, onde aparentemente, o indivíduo que esteja apto a doar sangue, estará fornecendo sangue contaminado ao banco. Este fenômeno se chama janela imunológica.

Neste contexto, os procedimentos médicos que optam por não utilizar sangue são cada vez mais abundantes, visto que a procura destes tipos de procedimentos por pacientes Testemunhas de Jeová e outros são cada vez mais numerosos. É interessante destacar alguns marcos sobre estes tratamentos e elencar alguns dos motivos que levam muitos pacientes que não são Testemunhas de Jeová a também adotarem tais práticas.

Em 1977, foi publicado um relatório do médico americano Dr. Cooley sobre 542 cirurgias sem uso de sangue (realizadas desde o início da década de 1960). O mesmo demonstrou a eficácia do procedimento, independentemente da faixa etária do paciente (MARINI, 2015, p. 57).

No Brasil, também existem estudos médicos a respeito desta possibilidade. Um destes, foi realizado pela médica Ludhmila Abrahão Hajjar, que compilou uma pesquisa com pacientes que passaram por procedimentos cardíacos, analisando os impactos em quem recebeu transfusão de sangue e nos pacientes que não haviam recebido. Os resultados demonstraram que a taxa de mortalidade em pacientes que haviam sido realizadas as transfusões de sangue, eram em torno de 1/5 mais alta do que a dos pacientes que tinham sido tratados sem o uso de sangue (ÉPOCA, 2011).

Em razão do surto de hepatite na década de 1990, o governo canadense fez uma campanha para auxiliar os médicos a adotarem tratamentos isentos de sangue. No ano de 1997, foi distribuído um Manual para a classe médica intitulada Construindo um sistema de sangue para o Século XXI Procedimentos e Recomendações. Neste foram destacados diversos procedimentos sem sangue que será brevemente explicado abaixo.

Para manter o volume líquido no corpo do paciente são recomendados os expansores do volume do plasma, como por exemplo, Haemaccel, Gelafundi, Voluven, Lactato de Ringer, dentre outros. Para a produção de glóbulos vermelhos são utilizados os fármacos a base de eritropoeitina, podendo serem utilizados o Hemax, Eprex, Recormon, Eritron, Eritromax, Hemoprex, Eritrina, Alfaepoetina, entre outros.

Durante a cirurgia podem ser utilizados procedimentos para a recuperação do sangue do paciente. Isto pode ser feito por meio de uma máquina de recuperação de sangue, ou pelo processo de hemodiluição com expansores do volume do plasma. Para diminuir o sangramento, podem se utilizar equipamentos minimamente invasivos, como o eletrocautério e o coagulador com raio de argônio. Assim, o sangue do próprio paciente que seria perdido na cirurgia, é recuperado, limpado e devolvido ao mesmo, eliminando o risco de contaminação viral.

Vários produtos podem ser utilizados para prevenir e controlar a hemorragia, bem como promover uma coagulação sanguínea mais rápida e eficaz. Dentre estes, podem ser citados o Transamin, Hemoblock, Ipsilon, Ddapv, Baxter, Novo Seven, dentre outros. Também pode ser utilizada a cola e o tampão de fibrina para estancar ferimentos graves e a Inteleucina-11 Recombinante em caso de queda de plaquetas.

De fato, os pacientes da referida comunidade religiosa não reivindicam o direito de morrer, nem são suicidas. Na realidade, a objeção de consciência a transfusão de sangue também pode ser vista de forma paralela sob um outro ângulo: como o direito de liberdade de escolha de um tratamento médico isento de sangue.

Neste contexto, o jurista Álvaro Villaça Azevedo também raciocina:

Dessa forma, quando uma Testemunha de Jeová procura um médico ou hospital, é internado e opta por receber tratamento médico que dispensa o uso de transfusão de sangue, está exercendo o direito à vida em sentido pleno. Está zelando por sua vida biológica ao buscar cuidados médicos de qualidade que evitem os perigos transfusionais...

Não se pode mais argumentar que a postura das Testemunhas de Jeová quanto às transfusões de sangue gera um conflito de direitos fundamentais, tais como entre o direito à vida e o direito à liberdade religiosa. Pelo contrário, sua postura evidencia o exercício desses dois direitos. (2010, p.13).

Celso Ribeiro Bastos raciocina que a sociedade tem uma visão deturpada desta escolha da recusa à transfusão de sangue por parte das Testemunhas de Jeová. Neste aspecto, esclarece:

Aqueles que aderem à orientação das Testemunhas de Jeová também pretendem, como todas as pessoas, continuar vivos. Apenas ocorre que também objetivam uma vida em paz consigo mesmo, sem que a sua posição religiosa reste maculada. (BASTOS, 2000, P. 08)

A liberdade de escolha de tratamento médico afasta o falso dilema do conflito de direitos (direito a vida x liberdade religiosa), uma vez que não há dois titulares disputando bens jurídicos na ordem jurídica. No máximo poderia se falar em concorrência de direitos, no qual, o seu titular, no contexto de uma escolha existencial e sob o prisma do Princípio do Respeito à Dignidade da Pessoa Humana, terá a sua decisão respeitada.

Nelson Nery Junior, leciona:

Ora, quando um praticante da religião Testemunhas de Jeová manifesta recusa a se submeter a tratamentos que envolvam transfusões de sangue, está ele exercendo seu direito público subjetivo de liberdade de religião, por quanto está se negando a realizar uma prática atentatória à sua liberdade religiosa e à sua dignidade. Nesse passo, quando esse cidadão exerce esta recusa ele invoca seus direitos fundamentais, conduta esta que em nenhuma hipótese atenta contra direito fundamental de outrem. Afinal, qual direito fundamental de outrem essa recusa pelo paciente Testemunha de Jeová violaria? Ou seja, quando o praticante dessa religião exerce seu consentimento informado e se recusa a realizar qualquer procedimento médico ou cirúrgico que envolva transfusão de sangue, em hipótese alguma está atentando ou pondo em risco direito fundamental de outrem. (2009, p.17).

O sistema jurídico brasileiro admite em diversas circunstâncias que o particular possa assumir riscos em razão de convicções pessoais ou projetos de vida. No Brasil uma pessoa pode praticar esportes radicais, utilizar seu corpo na atividade de prostituição (de forma autônoma, sem aliciamento) e não pode ser fisicamente coagida a se vacinar (coação direta). Não haveria lógica o Estado submeter uma pessoa a receber sangue em seu corpo contra sua vontade.

Neste sentido, o ministro Barroso também argumenta:

Uma pessoa que tenha histórico familiar de câncer não pode ser obrigada a se submeter a exames periódicos ou a evitar fatores de risco para a doença. Não se pode impedir uma mulher de engravidar pelo fato de ser portadora de alguma condição que esteja associada a elevado risco de morte na gestação. Como se vê, admite-se sem maior controvérsia que a vida seja colocada em risco pelo próprio indivíduo para que ele possa levar adiante inúmeras decisões pessoais e realizar seu próprio projeto de vida. Em outras palavras, admite-se o risco de morte quando seja indissociável do exercício autônomo da vida, que não pode se converter em mera subsistência, privada de sentido para o seu próprio titular (2010, p.22).

Assim sendo, o ordenamento jurídico brasileiro respalda a objeção de consciência a transfusão, bem como o direito a um tratamento médico isento de sangue, os quais protegem a autonomia e a dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para quem desconhece a objeção de consciência acerca da recusa de transfusão de sangue por parte dos adeptos da religião em estudo, pode parecer um posicionamento extremista e por vezes elencado como absurdo. Porém, numa rápida análise pode-se chegar à conclusão que os fatores e motivos que levam tais religiosos a tomada destas decisões é legítimo e que o arcabouço jurídico brasileiro garante este direito através do sistema constitucional e infraconstitucional.

Outro ponto a se ponderar é que os integrantes do grupo religioso de forma alguma desejam abrir mão de suas vidas apregoando a liberdade religiosa. O desejo deles é buscar alternativas viáveis para que envolva o uso de sangue, o que este artigo, demonstrou ser plenamente possível.

Há inúmeras opções de tratamentos médios isentos de sangue. Inclusive, tais tratamentos evitam diversos riscos transfusionais e podem ser utilizados por qualquer pessoa, independentemente da questão religiosa.

O direito à vida não deve ser analisado de forma isolada no contexto do sistema jurídico. O mesmo não se esgota meramente na existência biológica. Os princípios constitucionais do respeito à dignidade da pessoa humana, as escolhas existenciais, a autonomia do paciente e a liberdade de escolha de tratamentos médicos também devem ser analisadas no caso em concreto. A jurisprudência brasileira tem amadurecido nesta questão, reconhecendo a autonomia do paciente. Por fim, encontra-se pendente no Supremo tribunal Federal a ADPF nº 618 de autoria da Procuradoria Federal da República, a qual visa assegurar o direito de o paciente maior de idade Testemunha de Jeová, recusar transfusão de sangue por meio documental.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de Tratamento Médico Sem Transfusão de Sangue, mediante os atuais preceitos civis e constitucionais brasileiros. Parecer Jurídico, São Paulo, SP, 2010.

BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, RJ, 2002.

BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Parecer Jurídico, Rio de Janeiro, RJ, 2010.

BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes, de seus familiares ou dependentes, às transfusões de sangue por razões científicas e convicções religiosas. Parecer Jurídico. São Paulo SP, 2000.

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BUZANELLO, José Carlos. Objeção de consciência: uma questão constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, vol. 38, Edição 152, 2001. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496884 Acesso em 11 de Out 2021.

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COSTA, Mikaela Barreira. Autonomia de vontade e consentimento esclarecido: uma análise sobre os pacientes Testemunhas de Jeová. Conteudo Jurídico, Brasília-DF: 27 set 2021. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50081/autonomia-de-vontade-e-consentimento-esclarecido-umaanalise-sobre-os-pacientes-testemunhas-de-jeova. Acesso em: 27 set 2021.

MANUAL DE HEMOVIGILÂNCIA Nº 5, ANVISA, 2012.

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MAGALHÃES, José Luiz de. Direito constitucional. Ed. Mandamentos, Belo Horizonte, MG, 2000.

MARINI, Bruno. Dos tratamentos médicos isentos de sangue para pacientes Testemunhas de Jeová, sob enfoque da liberdade religiosa, da bioética e do biodireito: Editora Prismas. Curitiba, PR, 2015.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Ed. Atlas, São Paulo, 2003.

NERY JÚNIOR, Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová: como exercício harmônico de direitos fundamentais. Atualizado conforme do novo Código de Ética Médica Resolução CFM 1931/09. Parecer. São Paulo, SP, 2009.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. Ed Martins Fontes, São Paulo, 1997.

REVISTA ÉPOCA ONLINE. Menos sangue, por favor. Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI200448-15257,00-MENOS+SANGUE+POR+FAVOR.html

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Sobre os autores
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Guilherme Chaves Vieira

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINI, Bruno ; VIEIRA, Guilherme Chaves. Da objeção de consciência à transfusão de sangue sob o enfoque da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade do paciente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6790, 2 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96190. Acesso em: 21 nov. 2024.

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