1- Introdução
O Direito brasileiro, historicamente falando, sempre esteve ligado ao Direito de tradição europeu-continental, caracterizado por ser um Direito ligado à lei, no sentido "físico" da palavra, por ser um Direito dependente eminentemente de normas criadas, em regra, pelo poder Legislativo. Como ensina Paulo André Morales Áreas, "o direito pátrio, por adotar um regime influenciado pelos países de cultura européia ocidental, tem um ordenamento jurídico informado, na sua maior parte, por leis escritas provenientes da esfera legislativa de poder". (2005, p. 570)
É o sistema jurídico tradicionalmente denominado civil law, em que a fonte primária de direitos é sempre a lei, tendo cada magistrado o poder de interpretar livremente o conteúdo jurídico dos dispositivos normativos de modo a atingir o resultado que em sua opinião for o mais adequado ao caso submetido à tutela jurisdicional.
Neste sistema, o histórico de decisões, o chamado repertório jurisprudencial, é útil na medida em que pode servir de auxílio à interpretação e ainda contribui para a solidez da decisão do magistrado de primeira instância, pois, uma vez que tenha compatibilizado sua fundamentação com o pensamento dominante nos tribunais superiores (caso entenda que assim deva fazer), sua sentença torna-se consideravelmente mais difícil de ser reformada pelo tribunal a que ele esteja vinculado, ou por um tribunal superior.
Há ainda as chamadas súmulas, por meio das quais os tribunais superiores estabelecem seu entendimento em relação a determinadas matérias que neles chegam com alguma freqüência, sendo estas súmulas um norte a ser seguido ou não pelo magistrado, dependendo de sua convicção sobre ser ou não pertinente o entendimento sumulado.
De outro lado, há o chamado sistema do common law, cuja principal característica é um conjunto de normas escritas pequeno, se comparado ao sistema da civil law, onde as decisões célebres, e os chamados hard cases, constituem um patrimônio jurídico através do qual se criam e se reconhecem direitos, tendo tais decisões uma espécie de força normativa desconhecida no sistema romano-germânico.
Neste sistema o chamado "precedente", que surge no momento da decisão célebre, não é apenas uma indicação de como o magistrado de primeiro grau deveria decidir sobre determinada matéria, ela gera verdadeiro direito ao cidadão de ter seu caso regido pelo entendimento dado à matéria pelo tribunal superior.
De fato,
o que se observa é que tal sistema advém de países que por adotarem um regime de direto costumeiro, se valem dos precedentes para, com base neles, resolverem os casos postos sob a jurisdição estatal. São, portanto, países em que vigora a Common Law. Neles, como as leis escritas são mais escassas, as decisões judiciais do passado alcançam grande relevo no cenário do direito, principalmente como diretrizes a serem seguidas pelos futuros pronunciamentos do Estado-juiz. (ARÊAS, 2005)
Em dezembro de 2004, foi incorporada ao texto constitucional pátrio a Emenda Constitucional de número 45, a chamada "reforma do Poder Judiciário".
Um dos pontos mais debatidos foi a criação das súmulas vinculantes, a serem editadas, apenas, pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos de lei posterior que deverá ser formulada para regular a matéria.
Como bem lembra a professora Carmen Lúcia Antunes Rocha,
Todas as discussões atuais da comunidade jurídica passam por duas preocupações básicas: a imperiosidade de se assegurar, concreta e universalmente, o acesso de todos à justiça, nos termos determinados na Constituição da República, e a necessidade de se dotar o Estado de uma organização, material e formal, voltada à prestação jurisdicional rápida, eficiente e eficaz. (1996)
Desde logo cabe ressaltar que a idéia de uma súmula com efeitos normativos não é nova, tendo sido proposta pela primeira vez em 1946, tendo sido rejeitada e novamente proposta em diversas outras ocasiões, seja por via de emenda à constituição, seja por via de alteração infraconstitucional.
Por meio da EC 45, que entrou no ordenamento pátrio em 31 de dezembro de 2004, restou criada a súmula vinculante, que será editada pelo STF, de ofício ou mediante provocação, devendo para tanto haver o voto de pelo menos dois terços dos ministros a favor da edição, podendo a revisão da súmula ser provocada pelos mesmos legitimados à propositura de ação direta de inconstitucionalidade, e terá força normativa apta a vincular a Administração Pública direta e indireta, em todos os níveis da federação, e ainda os poderes executivo e judiciário, e o poder legislativo no exercício de funções atípicas.
Cabe ressaltar que, obviamente, a edição de súmula vinculante não pode ser óbice à edição de lei regulando o mesmo assunto, vez que haveria um déficit de legitimidade na súmula, vez que o legislativo atua como representante direto do povo, titular único do poder, enquanto o judiciário é acessível por sistema meritocrático.
2- Questões incidentes
Como já seria de se esperar, a inserção de um instituto que, por origem, pertence a sistema jurídico diverso, gerou um sem número de questionamentos aos quais se deveria buscar respostas satisfatórias, antes do início do uso efetivo do novo instituto.
O primeiro deles é a questão do engessamento do magistrado de instâncias inferiores. Veja-se que, se utilizada do modo se tem entendido, uma vez sumulada a matéria dispensa-se a presença do magistrado para decidir a causa, pois caso ela se adeque ao disposto na súmula, o juízo a que a causa foi distribuída não tem alternativa senão a aplicação do conteúdo sumulado, sob pena de ver sua decisão impugnada por via de reclamação constitucional, feita diretamente ao Supremo Tribunal Federal.
Vale ressaltar que, nestes termos, a súmula é inconstitucional, pois, apesar de não excluir, constitui violação material de direito fundamental, pois esvazia o conteúdo jurídico do que está disposto, por exemplo, no artigo 5º, XXXV e LIII.
A saber, o citado inciso LIII dispõe sobre o princípio do juiz natural e do promotor natural. Ora, se a atividade do juiz da causa se limita a verificar a adequação do caso a ele submetido ao conteúdo jurídico da súmula, não há como falar em decisão por parte dele, havendo algo que se poderia chamar de supressão formal de instância, já que o conteúdo da decisão não foi proferido pelo juiz natural da lide, mas pelo próprio STF que, em nosso sistema, só poderia atuar na causa se ela fosse a ele submetida ou por via de Recurso Extraordinário ou por via de ações constitucionais típicas, como o Habeas Corpus.
Comentando o projeto de emenda, Carmen Lúcia afirmou que "positivada a súmula como norma vinculante e vinculada para o magistrado teria sido relativizado, por essa norma sumular, a sua independência ao julgar".
Neste ponto temos que discordar. Vinculado o magistrado ao conteúdo jurídico da súmula, sua independência não foi relativizada, foi ceifada, abolida, exterminada. Assim aduz Hugo Cavalcanti Melo Filho quando informa que "a magistratura brasileira, há dez anos, vem trabalhando contra a súmula vinculante. Apresentou proposta alternativa, a chamada "súmula impeditiva de recursos", mais racional e não ofensiva à independência do juiz". (2003, p.85)
Há de se mencionar neste ponto que a questão sobre efeitos vinculantes é debatida mesmo em sede de controle da constitucionalidade das leis, podendo alguns argumentos, para ambos os lados, serem transportados para a presente discussão, vejamos:
No Brasil, a discussão sobre os contornos do efeito vinculante de decisões relativas a processos de fiscalização concentrada da constitucionalidade das leis insere-se no contexto de uma política judiciária governamental, qual seja, a de desobstrução dos Tribunais Superiores relativamente a seu acúmulo processual e sua morosidade crônica. O enorme número de feitos, especialmente oriundos da Justiça Federal ordinária, que envolvem a discussão de expurgos inflacionários, acumulam-se nas Secretarias do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. (SOUZA CRUZ, 2004, p.410)
Prossegue o professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz:
A justificação do efeito vinculante não encontra respaldo em argumentos tão somente utilitários, quais sejam, de agilização dos feitos nos Tribunais Superiores e de incremento de "respeito" aos pronunciamentos, em especial, do Supremo, pelo Judiciário Ordinário. Seus defensores argumentam em favor do princípio da igualdade e da segurança das decisões jurídicas. (2004, p. 410)
Há ainda diversas outras questões a serem enfrentadas, por exemplo, como um tribunal que firmou entendimento no sentido de que não poderia julgar um mandado de injunção nos termos em que ele foi formulado, pois feriria a separação de poderes poderia agora editar súmula com efeitos normativos por iniciativa própria sem incorrer num fulminante ato de inconsistência argumentativa?
E também, a velha questão, quem guarda o guarda? Ou seja, a súmula, com efeitos normativos, poderia incorrer em inconstitucionalidade, ainda que decorrente de nova interpretação doutrinária. Poderia a súmula vinculante ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade? Se positiva a resposta, seria razoável que a constitucionalidade de uma súmula fosse julgada pelo mesmo órgão que a editou?
3- Conclusão
Como visto, a importação do instituto da súmula vinculante para o ordenamento jurídico brasileiro traz muito mais perguntas do que respostas e, a princípio, muito mais incertezas que garantias.
Disso podemos inferir, com certeza quase absoluta, uma coisa. Deveria se optar por um sistema de controle de constitucionalidade de leis para, a partir daí, criar os institutos jurídicos adequados ao mesmo.
Isto, pois, ao se elaborar este sistema misto de controle da constitucionalidade das leis, faz com que o legislativo, quanto aos institutos que está criando, trabalhe com mesma certeza que tem uma bússola colocada sobre um imã, nenhuma.
Em determinados momentos se fortalece o sistema de controle concentrado, em outros, se fortalece o sistema de controle por via de exceção, e fazem isso como se os sistemas fossem absolutamente compatíveis entre si, o que não é nem pode vir a ser verdade, pois eles divergem na origem.
Melhor seria, tendo em vista inclusive as dimensões territoriais do país, que se optasse por uma jurisdição constitucional concentrada, em que as normas constitucionais fossem interpretadas por um único tribunal, de modo a não se criar abismos interpretativos entre diversas regiões do país, e também, a se criar uma cultura de respeito às decisões do tribunal supremo e às próprias normas constitucionais.
A palavra de ordem é "coerência".
4- Referência bibliográfica
ARÊAS, Paulo André Morales. Um estudo comparativo entre a doutrina de Dworkin e a súmula de efeitos vinculantes – EC 45, Brasil:2005. In: Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano VI, nº6, junho/2005.
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Sobre a Súmula Vinculante. Belo Horizonte: 1996. Disponível no site <www.carmenrocha.com.br>. Acessado em 18/05/06.
SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. cap.7, p.410.