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Concubinato adulterino:

uma entidade familiar a ser reconhecida pelo Estado brasileiro

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23/03/2007 às 00:00
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5 DO CONCUBINATO ADULTERINO COMO ENTIDADE FAMILIAR

O fenômeno das famílias simultâneas, em nosso ordenamento jurídico, tem duas fases bem distintas: a da unicidade do Código Civil de 1916 e a da pluralidade familiar da Constituição Federal de 1988. Dentro do modelo singular de família formada pelo casamento indissolúvel, o Estado via a família em sua faceta transpessoal, onde a afetividade não fazia parte do seu rol de funções. Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:22) resume bem essa fase:

... a estabilidade da instituição familiar é reputada pela codificação de 1916 como mais relevante do que a felicidade dos membros que a compõem. Esse tratamento transpessoal, centrado no signo da desigualdade entre filhos e, sobretudo, entre os cônjuges — haja vista a hierarquização imposta para atender ao sentido de preservação da família — é mitigado ao longo do século XX.

Por outro lado, em que pese o formato positivado de nossa ordem jurídica, a abertura trazida pelo Texto Constitucional vigente com o princípio do pluralismo familiar e o da dignidade da pessoa humana fez com que as famílias simultâneas encontrassem terreno fértil para se desenvolverem juridicamente e encontrassem um portal de entrada para o Direito. Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005), com sua clarividência, fala da mudança do objetivo de formação da família, que passa da estabilidade patrimonial à felicidade dos seus membros. Diz-nos o familiarista:

... se o enfoque do jurídico não mais se dirigir a um ente abstrato, mas à pessoa concreta, que na relação com seus familiares busca, mutuamente, a satisfação de uma felicidade coexistencial, a simultaneidade familiar — muito mais ampla e multifacetada que a bigamia — pode se apresentar como realidade com alguma relevância jurídica, não mais na seara do desvalor, da sanção, mas, sim da proteção das pessoas que se inserem no âmbito dessa pluralidade de relações familiares em núcleos distintos (idem, p. 23-24).

Assim é que a Carta Magna de 1988 não mais repetiu a norma de exclusão familiar de suas precedentes, inaugurando um novo horizonte para as famílias sem casamento. A valorização da dignidade humana, desde então, trouxe para o direito pátrio uma posição amistosa diante das entidades familiares não explicitadas no Texto Constitucional. Nesse particular, cabe a lição do grande doutrinador Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), o qual preconiza que

Para a Constituição (art. 226, § 8º) a proteção à família dá-se "nas pessoas de cada um dos que a integram", tendo estes direitos oponíveis a ela e a todos (erga omnes). Se as pessoas vivem em comunidades afetivas não explicitadas no art. 226, por livre escolha ou em virtude de circunstâncias existenciais, sua dignidade humana apenas estará garantida com o reconhecimento delas como entidades familiares, sem restrições ou discriminações.

Desse modo, a partir da Carta Constitucional de 1988, família não é somente aquele arranjo humano formado pelo casamento, mas aquele que se apresenta como tal.

Partindo desse mote, o concubinato adulterino, verificável na hipótese de famílias simultâneas, encontra condições para fazer-se apreendido pelo Estado como mais uma entidade familiar. Tudo isso por causa da abertura do sistema jurídico-positivado proporcionada pelos princípios da pluralidade familiar e da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, se observarmos bem, o conceito que demos de concubinato adulterino no capítulo 4 guarda grande coerência com aquele que trouxemos para família no capítulo 2. Ou melhor, as características apontadas por Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) como presentes em toda e qualquer entidade familiar são facilmente encontradas no concubinato adulterino. Senão vejamos: no concubinato adulterino podemos observar uma afetividade, ou seja, nele existe uma troca de afeto entre os concubinos; um mínimo de publicidade, ao menos no meio social do casal; e, por fim, uma durabilidade, pois não verificamos o concubinato adulterino em relações eventuais.

Aliás, cabe aqui uma breve discussão para que saibamos reconhecer no fato social o que é o verdadeiro concubinato adulterino. Em primeiro lugar, as relações esporádicas que acontecem fora do casamento, como aventuras sexuais, não passam de simples adultério, até pelo fato de serem eventuais. Em segundo lugar, as relações que se fazem na completa clandestinidade, mesmo que existam o afeto e a durabilidade, não conformam um concubinato adulterino. Como dissemos, a família pressupõe uma publicidade mínima que não condiz com a situação dos amantes. Por último, não o confundamos com a união estável, como fazem algumas decisões judiciais favoráveis aos concubinos. É o caso do julgado a seguir transcrito:

PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO DE PENSÃO POR MORTE DE COMPANHEIRO. UNIÃO ESTÁVEL. CONCUBINATO IMPURO. MARCO INICIAL. 1. Demonstrado, mediante início de prova material corroborado por prova testemunhal idônea, a convivência marital entre a requerente e o ‘de cujus’, é de ser concedido o benefício de pensão por morte à autora. 2. A existência de esposa não constitui óbice ao reconhecimento do direito à parte autora, porquanto as novas diretrizes constitucionais erigiram a união estável ao status de casamento, devendo ser reconhecido, para fins de direito previdenciário, os efeitos decorrentes do concubinato, mesmo que impuro [grifo nosso]. 3. [...] (Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, Apelação Cível 483154/RS, rel. Juiz Tadaaqui Hirose, j. 18/32003).

Na realidade, são duas entidades familiares distintas, de modo que a regulamentação legal daquela não é plenamente aplicável a esta — salvo no caso da união estável putativa. Outrossim, não podemos interpretar o art. 1.º, da Lei n.º 9.278/96, que regula a união estável, como sendo complacente com o concubinato adulterino, conquanto sua redação não mencione expressamente que os companheiros devam ser desimpedidos de casar. Não há uma "união estável adulterina" como quis Américo Luís Martins Silva, citado por Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002). Além do mais, o Código Civil de 2002 revogou implicitamente esse artigo ao conceituar a união estável em seu art. 1.723.

Postas essas noções, temos que não mais se justifica a não inclusão do concubinato adulterino entre as entidades familiares merecedoras de proteção especial pelo Estado brasileiro. Ora, se é verdade que o princípio do pluralismo familiar impôs a abertura do ordenamento para as famílias não explicitadas no texto maior, afastando a clausura de outrora, então o concubinato adulterino também conta com o selo de legitimidade familiar. A sua vez, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana impede o tratamento desigual entre as entidades familiares, porque dessa forma estaríamos amesquinhando as pessoas dos concubinos — mais exatamente da concubina, geralmente a parte que sai mais prejudicada dessas relações, conquanto não tenha sido ela quem quebrou efetivamente o dever da fidelidade ou lealdade conjugal.

Nem mesmo a presença do princípio da monogamia pode impedir que se faça o reconhecimento estatal do concubinato adulterino. Como veremos no ponto a seguir, o sistema monogâmico está relativizado, de forma que, atualmente, pelo bem da justiça, já é possível assimilar a existência de uma poligamia de núcleos monogâmicos.

O argumento que diz que, reconhecendo o concubinato adulterino, o Estado estaria desprivilegiando um instituto por ele criado, o casamento, não merece prosperar. Em verdade, o casamento nunca perderá sua maior característica que é a formalidade, de modo que as pessoas que querem oficializar sua união se casam. Se forem impedidas, resolvem essa pendenga e se casam. A autonomia das pessoas para estabelecerem o contexto familiar em que se inserem é decorrência lógica de sua dignidade. E no estágio em que nos encontramos, não é mais tarefa do Estado estabelecer políticas objetivando por um lado que os cônjuges se mantenham casados e que os companheiros se mantenham unidos, e por outro, rechaçando as outras relações afetivas. Além do mais, punir o concubino sob o pretexto de que ele foi um "destruidor de lares" não nos convence, já que a culpa do fim do relacionamento amoroso é justamente do fim da afetividade entre os cônjuges ou companheiros.

A complexidade das relações familiares não se compactua com uma visão fechada e preconceituosa em nome de uma moralidade excludente (ver ponto 5.2 abaixo). Desse modo pensa Sílvio de Salvo VENOSA (2003:56), segundo o qual "... qualquer posição apriorística e inflexível é arriscada, principalmente em matéria de família, que possui enorme conteúdo emocional e afetivo". Juntamente a sua voz, podemos localizar as de Maria Berenice DIAS (2004), de Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), de Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002), de Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005), de Maria Celina BRAVO e Mário Jorge Uchoa SOUZA (2002) e, em certa medida, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b).

Nestas alturas, já encaramos o fato social do concubinato adulterino e sua inclusão no ordenamento jurídico através dos princípios. Resta-nos comentar as poucas disposições do Código Civil que trazem como tema o concubinato adulterino.

Primeiro o art. 1.727, conforme o qual "As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato". Complementando o entendimento o § 1.º, do art. 1.723, que exclui do conceito os cônjuges separados de fato ou judicialmente.

Sobre o artigo em comento, extraímos o interessante trecho do julgamento da Apelação Cível n.º 70004306197, da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatado pelo Des. Rui Portanova, datado de 27/02/2003:

Em suma o novo Código: a) diferente do que acontecia no Código Civil antigo, reconheceu a existência de uma realidade que tem aportado nos Tribunais, qual seja, (repetindo os termos da lei) "relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar"; b) deu um nome para essas relações: concubinato; c) não previu efeitos, mas, atendo a uma de suas diretrizes fundamentais, deixou o juiz decidir em cada caso concreto os efeitos que entender de justiça.

Pelo julgado, o concubinato adulterino não é proibido pelo ordenamento jurídico, pois, se assim quisesse, o legislador teria se manifestado explicitamente. Destarte, além de incluir o concubinato adulterino como instituto de direito de família, o Texto Civil permitiu a previsão de efeitos jurídicos conforme o talante do juiz. Sílvio de Salvo VENOSA (2003:61), com outras palavras, diz coisa semelhante ao escrever que o art. 1.727

... por si só, não retira dessa modalidade de união todo o rol de direitos atribuídos à união estável, assim definida em lei. Não é essa a conclusão a que se há de chegar. Impõe-se verificar em cada caso, ainda que a situação seja de concubinato na concepção legal, quais os direitos de união estável que podem ser atribuídos aos concubinos.

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Contra a idéia acima transcrita, levantou-se o Des. Luiz Felipe Brasil Santos em seu voto no julgamento da Apelação Cível n.º 70005330196, da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, datado de 07/05/2003:

Divirjo profundamente desta premissa porque, ao contrário, o Novo Código veda expressamente o concubinato adulterino, não apenas em um, mas em três artigos. Veja-se o art. 550 do No Código, que veda doações do adúltero ao seu cúmplice, sendo o prazo de dois anos para a sua anulação; art. 1.642, inc. V, que autoriza que o cônjuge reivindique os bens doados ou transferidos pelo outro ao concubino, sem que para esta reivindicação necessite de autorização do outro, e, terceiro dispositivo, o art. 1.801, inc. III, que proíbe expressamente que o concubino de testador casado seja nomeado herdeiro ou legatário. Ora, se desses dispositivos não se extrai a vedação do concubinato, que no Código só é o concubinato adulterino, não atino o que seja vedação.

Ao nosso ver, o art. 1.727 do Código Civil tem duas funções: primeiro, a de diferenciar o concubinato adulterino das outras modalidades de relacionamento afetivos e, segundo, de reconhecer que o concubinato adulterino é um instituto de direito de família, mesmo que tenhamos em vista a suposta ilicitude ressaltada pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos. E por falarmos nessa ilicitude, temos que os dispositivos 550; 1.642, V e 1.801,III, do Código Civil devem ser repensados ou reinterpretados à luz do princípio da pluralidade familiar e da dignidade da pessoa humana, sob pena de incorrermos em grave inconstitucionalidade. Se as doações ou inclusões dos concubinos em testamento não ferirem plenamente a dignidade do cônjuge ou companheiro do doador/testador, não há razão para impedir tais atitudes. Do contrário, estaríamos a infringir a dignidade do concubino, o que já dissemos inadmissível atualmente. Há casos, por exemplo, em que os cônjuges detêm grande patrimônio, de forma que a doação por um cônjuge de um bem ao concubino não representaria perda considerável para o outro cônjuge, não infringindo a regra proibitiva da doação.

5.1 A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA MONOGAMIA

O princípio da monogamia não está explicitamente previsto em nossa Constituição Federal, contudo, dizem os estudiosos, sua observação advém da interpretação sistemática das normas constitucionais. Em verdade, o sistema monogâmico é traço marcante na parte ocidental do mundo, como é nosso caso. Em sua visão, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:76) nos conta que

O princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental.

Segundo o preceito monogâmico cada homem ou mulher só pode ter um único parceiro. Nas sociedades antigas, a monogamia foi vista como a forma mais favorável de formação familiar, visto que sua viabilização permitiu a segurança da transmissão da herança e a certeza da paternidade. Com a instalação da monogamia ganhou força a família patriarcal, conforme a qual a mulher era submetida ao homem e dele dependente, sendo certo que a ala feminina e sua resignação representaram o pilar maior de sustentação do casamento monogâmico. Em última análise, podemos dizer que o sistema monogâmico surgiu por questões econômicas, traço que marcou por muito tempo a família.

A história nos mostra que a monogamia detém pesos diferentes para o homem e para a mulher. E isso está ligado à discrepância econômica entre os sexos, de forma que a fidelidade se mostrou mais intensa na parte hipossuficiente da relação conjugal — geralmente a mulher. A tendência, por outro lado, é que a igualdade econômica entre os gêneros dentro da relação faça com que a monogamia se mostre tão influente para o lado masculino quanto para o feminino.

Comungando do mesmo pensamento, Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:98) nos conta que a família ocidental se caracterizou pela observação pela mulher da monogamia endógena e exógena, enquanto que pelo homem somente da monogamia endógena. Monogamia endógena diz respeito à estrutura familiar que só permite a conjugação de um único homem e uma única mulher. Por ela, a poligamia exógena é permitida, ou seja, as relações outras que não a estrutura familiar original. A sua vez, a poligamia endógena é plenamente proibida por significar negação à monogamia endógena. Já a monogamia exógena veda completamente outros relacionamentos fora da conjugalidade. Conclui o estudioso:

De qualquer modo, ainda que o relacionamento sexual extra-conjugal pudesse ser tolerado ou mesmo estimulado em momentos conjunturais do transcurso histórico, verifica-se a monogamia endógena como estruturalmente estável nas sociedades ocidentais. Vale dizer: um elemento de longa duração (idem, p. 101).

Sobre a família brasileira em particular, Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:101), citando Gilberto Freyre, escreve que: "Poder-se-ia objetar, sobretudo, no que tange a formação do Brasil colonial, adentrando o Império até fins do século XIX, que a família escravocrata patriarcal seria, [...], como tipo-ideal, poligâmica". Podemos dizer, então, que a família brasileira foi moldada dentro de uma monogamia endógena, ao menos do ponto de vista do cônjuge varão, "... tolerando-se uma poligamia exógena sob um véu de hipocrisia" (idem, p. 105).

As palavras de Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005) só vêm constatar o fato social de que, apesar da sistemática monogâmica que paira sobre nosso ordenamento jurídico, as relações sexuais fora do enlace conjugal sempre existiram. Nessa linha de pensamento, não nos é errado concluir que as famílias simultâneas também são uma constante na sociedade brasileira. Por conseguinte, a simultaneidade familiar é um fenômeno relevante que pede sua apreensão pelo direito — como já vimos acima, já foi assimilado através da abertura ocasionada pelos princípios da pluralidade familiar e da dignidade da pessoa humana.

Paralelamente, anuncia Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002) uma crise no sistema monogâmico brasileiro nos últimos anos. Segundo ele,

A legislação vem acentuando a crise. Medidas legislativas, no âmbito constitucional e infraconstitucional, como o reconhecimento expresso de outras entidades familiares, dentro de uma perspectiva pluralista; a possibilidade da dissolução do vínculo de casamento, com o divórcio e do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, entre outras, vem-nos mostrando que, paulatinamente, a situação de exclusividade do casamento e do casamento exclusivo, monogâmico e indissolúvel, com filhos havidos na relação de conjugalidade, mesmo no contexto jurídico, vem decrescendo. [...] Além disso, é nítida uma maior preferência pelas uniões livres e surgem no cenário outros arranjos familiares menos usuais.

Essas constatações nos fazem acreditar que o princípio da monogamia e o sistema monogâmico estão relativizados, de forma que já é possível à experiência jurídica pátria a assimilação da existência de uma poligamia de núcleos monogâmicos em que um elemento coexiste em duas famílias (monogamia endógena somada à poligamia exógena). Para tanto, socorremo-nos dos seguintes motivos: a afetividade como elemento fundador da família; o reconhecimento da união estável como entidade familiar; a descriminação do adultério; e a supremacia do princípio da dignidade humana.

A afetividade como elemento fundador da família. Como dissemos no início deste ponto, a família monogâmica surgiu e se consolidou principalmente por questões econômicas, em virtude da melhor administração dos bens pelo cônjuge varão na família patriarcal e sua transmissão aos herdeiros.

Ocorre que, atualmente, não mais persiste a finalidade patrimonial da família. O sentimento de busca pela felicidade do ser humano fez com que o afeto ganhasse o papel de protagonista das relações familiares, de modo que sua falta determina o fim do organismo familiar. Tal transformação, já adotada pela nossa Carta Magna, implicou um novo pensar para o direito de família com o reconhecimento de novas entidades familiares que não o casamento (conforme capítulo 3).

Nessas circunstâncias não nos é equivocado dizer que o princípio da monogamia restou comprometido, pois sua observação encontrará resistência no próprio princípio da afetividade.

O reconhecimento da união estável como entidade familiar. O casamento indissolúvel representava na sociedade brasileira a força do princípio da monogamia dentro da ordem jurídica. Tanto é que toda relação fora do casamento não tinha do Estado o selo de família, refletindo-se na inexistência de direitos no âmbito do direito de família para seus participantes.

O divórcio, assim, representou um baque na estrutura do casamento e, por via de conseqüência, do sistema monogâmico. O aparecimento de novas tramas familiares, mormente dos concubinatos puros, só veio a reforçar isso. E com a Carta Magna de 1988, que previu explicitamente a existência da união estável (antigo concubinato puro), ficou definitivamente superada a supremacia do casamento.

Inclusive, é possível a configuração de uma união estável formada por pessoas que, embora casados, sejam separadas de fato. Portanto, o princípio da monogamia perdeu parte de sua força.

A descriminação do adultério. O Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal, reproduzindo o ambiente social que o rodeava, criou, entre outros, o tipo penal do adultério com o objetivo de proteger a paz familiar, observando-se que família à época era aquela formada pelo casamento monogâmico e indissolúvel. Adultério é a relação sexual fora do casamento levada a efeito pelo cônjuge.

Eis que, demonstrando assimilar a tendência na doutrina e na jurisprudência de descriminação do adultério, a Lei n.º 11.106/2005 aboliu do Código Penal essa figura penal, pois não cabe ao Estado meter-se em esfera íntima dos cônjuges. Esse abolitio criminis assevera, por outro lado, um menor grau de reprovação pela sociedade brasileira à conduta adulterina, o que, a nosso ver, representa mais um fator de fragilização do sistema monogâmico.

A supremacia do princípio da dignidade da pessoa humana. Como já dissemos no capítulo 3, o princípio da dignidade da pessoa humana, por sua localização topográfica na Constituição, é um vetor de interpretação de toda a ordem jurídica. Desse modo, a hermenêutica legal que o desabone sofrerá a pecha da inconstitucionalidade. Sua importância é de tal modo que é conhecida como macroprincípio.

Sabemos que os princípios constitucionais devem conviver em perfeita harmonia, vez que todos eles têm uma função útil dentro do ordenamento jurídico. Porém, do embate entre os princípios da dignidade da pessoa humana e da monogamia, filtramos a preferência daquele. Ora, se é verdade que a proteção estatal à família se faz na pessoa de seus membros, de forma que lhes seja garantida uma vida digna, não podemos conceber que o sistema monogâmico impeça essa proteção. Do contrário, estaremos amesquinhando a dignidade humana.

Sobre o assunto, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:72) traz-nos importante lição:

Como se vê, o Direito de Família está intrinsecamente ligado aos "Direitos Humanos" e à dignidade. A compreensão dessas noções, que nos remetem ao conceito contemporâneo de cidadania, é que tem impulsionado a evolução do Direito de Família. Cidadania pressupõe não exclusão. Isto deve significar a legitimação e a inclusão no laço social de todas as formas de família, respeito a todos os vínculos afetivos e a todas as diferenças. Portanto, o princípio da dignidade humana significa para o Direito de Família a consideração e o respeito à autonomia dos sujeitos e à sua liberdade. Significa, em primeira e última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares. Neste sentido, podemos dizer que é indigno dar tratamento diferenciado às várias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição de família.

Em corrente oposta, Tiago de Almeida QUADROS (2002) vê no princípio da monogamia uma premissa indiscutível no qual está pautada toda a estrutura o Direito de Família. Desse modo, a quebra desse princípio representaria uma incoerência do ordenamento jurídico.

Conquanto apresente versão semelhante a de Tiago de Almeida QUADROS (2002), como citamos no início desse ponto, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b) consegue vislumbrar uma relativização do princípio da monogamia, desde que seja para atingir o ideal maior da justiça. Em suas palavras:

Não há dúvida de que o concubinato (adulterino) fere o princípio da monogamia, bem como a lógica do ordenamento jurídico ocidental e em particular o brasileiro. O mais simples e elementar raciocínio nos faz concluir isto. Aliás, é somente por causa desse princípio que foi possível à doutrina e jurisprudência construírem um pensamento para o concubinato não-adulterino e traze-lo para o campo do Direito de Família. Até que isto ficasse definitivamente esclarecido (Lei 8.971/94), fomos obrigados a conviver com os ridículos pedidos de indenização por serviços prestados, que era uma fórmula camuflada de se conceder alimentos, já que a união estável/concubinato não estava no elenco das fontes da obrigação alimentar e uma base principiológica para o Direito de Família não estava suficientemente assentada e forte como está hoje e a cada dia mais. Mas, se o fato de ferir este princípio significar fazer injustiça, devemos recorrer a um valor maior que é o da prevalência da ética sobre a moral para que possamos aproximar do ideal de justiça [...]. Ademais, se considerarmos a interferência da subjetividade na objetividade dos atos e fatos jurídicos, concluiremos que o imperativo ético passa a ser a consideração do sujeito na relação e não mais o objeto da relação. Isto significa colocar em prática o que disse antes, ou seja, que o Direito deve proteger a essência e não a forma, ainda que isto custe "arranhar" o princípio jurídico da monogamia. Se o fim dos princípios jurídicos é ajudar a atingir um bem maior, ou seja, a justiça, este paradoxo do concubinato adulterino deve ser resolvido, então, em cada julgamento, e cada julgador aplicando outros princípios e a subjetividade que cada caso pode conter é quem deverá aplicar a justiça, dentro de seu poder de discricionaridade. Assim, estaremos preservando o princípio jurídico da monogamia, eixo gravitacional sob o qual todo o Direito de Família está estruturado [grifo nosso] (idem, p. 88).

5.2 A ÉTICA QUE SE SOBREPÕEM À MORAL EXCLUDENTE [01]

Toda vez que fazemos uma avaliação pessoal e íntima de nossas ações e das ações dos outros, e aceitamos certa conduta com correta ou incorreta, estaremos nos guiando por nosso juízo moral. Considerando que aquilo que é correto para um nem sempre o é para outro, temos que a moral é um campo onde reina o relativismo.

A história do direito de família brasileiro nos mostra que a moral já produziu inúmeros casos de injustiça. Assim é que, em nome da moral sexual e dos bons costumes, o ordenamento jurídico pátrio por muito tempo somente reconheceu a família patriarcal formada a partir de um casamento indissolúvel. Tudo que se afastava desse modelo, era excluído da proteção legal, como conseqüência da ditadura excludente da moral.

Por sua vez, a Ética tem a ver com a racionalidade própria do ser humano. Isso implica dizermos que estaremos nos utilizamos de nosso juízo ético sempre que analisemos uma situação de acordo com critérios racionais. Assim sendo, o juízo ético detém um sentido universal, pois a razão é o único elemento essencial em todo ser humano.

Em verdade, a Ética, antes de ser ferramenta de estudo das condutas morais existentes, é o estudo racional do agir humano, porque faz parte do homem a necessidade de agir conforme seu julgamento de justiça. Nessa esteira, o conceito de justiça é permeado pela Ética, segundo a qual é justo aquilo que não deteriore ou preserve a natureza de certa coisa.

Segundo Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:66), "O moralista prefere sempre a formalidade e a lei em sua literalidade, enquanto o ético, a essência do Direito, e, por isso, buscará sempre nos princípios a fundamentação para mais justa adequação". Se assim é, concluímos que o estudo do concubinato adulterino pressupõe um sujeito ético, porque só esse sujeito enxergará a família além do estigma moral. Conquanto por vezes conte com o respaldo legal, o sujeito moralista nem sempre tem a solução mais justa para o caso concreto, vez que só pela Ética chegaremos mais próximos do ideal de justiça.

Outrossim, concluímos que os princípios informadores da família, dentre os quais o da dignidade da pessoa humana e o da pluralidade familiar, ganham maior relevo quando postos no caminho do sujeito ético. Talvez, somente nas mãos deste é que eles serão desenvolvidos em toda sua plenitude.

Portanto, é imperioso o reconhecimento pelo Estado da entidade familiar do concubinato adulterino sempre que ele preencha os requisitos da publicidade, afetividade e estabilidade. Ora, a Moral excludente não pode mais dar a cor das relações familiares, porque já se mostrou ineficaz e injusta.

Maria Berenice DIAS (2004:32) diz que, se o ordenamento jurídico tratar com indiferença situações como a do concubinato adulterino, acabará por criar privilégios injustos, visto que "A omissão em extrair conseqüências jurídicas pelo só fato de a situação não corresponder ao vigente modelo de moralidade não pode chancelar o enriquecimento injustificado". Acredita a desembargadora gaúcha que "... é impositivo invocar a ética como elemento estruturante do Direito de Família", pois "Ainda que sejam alvo do preconceito ou se originem de atitudes havidas por reprováveis, o juiz não pode afastar-se do princípio ético que deve nortear todas as decisões".

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Sobre o autor
Anderson Lopes Gomes

advogado em Forquilha (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Anderson Lopes. Concubinato adulterino:: uma entidade familiar a ser reconhecida pelo Estado brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1360, 23 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9624. Acesso em: 25 abr. 2024.

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