6 DO CONCUBINATO ADULTERINO: POSSIBILIDADES DE EFICÁCIA JURÍDICA
O concubinato adulterino, como entidade familiar, merece a proteção estatal, uma vez que o princípio da dignidade da pessoa humana impede o tratamento desigual às diversas formas de família pelo Estado.
Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude dos requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação infraconstitucional não de cuida de determinada entidade familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades (Paulo Luiz Netto LÔBO, 2002).
Mas quais são os efeitos jurídicos que o Estado pode conceder ao concubinato adulterino? Mais que isso, quais limites podem alcançar esses efeitos?
Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:183) parte do princípio de que um direito que protege a dignidade coexistencial de componentes de entidades familiares não pode classificar como irrelevante a existência das famílias simultâneas. Assim sendo, deve o ordenamento jurídico conceder-lhes efeitos. Quanto ao concubinato adulterino, impõe o autor que se verifique no meio social em que ele se insere uma publicidade, pois, do contrário, não restaria provada a condição de família.
Em seu modo de pensar a concessão de efeitos ao concubinato adulterino, Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:188) cria uma "teoria" de verificação no caso concreto de uma boa-fé objetiva, que nada mais é do que a forma como o concubino procede diante da existência da outra família. Difere da boa-fé subjetiva, que é a consciência do próprio sujeito sobre sua situação dentro das famílias simultâneas.
Por sua teoria, inobstante o concubino se mostre indiferente a qualquer conduta ética perante os componentes da primeira entidade familiar, mesmo assim o ordenamento jurídico deve oferecer sua chancela à relação concubinária, salvo a parte que porventura venha a invadir o espaço jurídico dos membros do outro núcleo familiar.
Em última análise, podemos dizer que o posicionamento do familiarista é que, dependendo da violação dessa boa-fé objetiva, o concubinato adulterino terá maior ou menor efeito jurídico. Em suas palavras:
Das considerações acerca do atendimento dos deveres decorrentes do princípio da boa-fé é possível aferir alguns potenciais limites à plena eficácia concreta, à luz do direito, de uma situação de simultaneidade familiar. Aquele que viola deveres inerentes à boa-fé pode não ser contemplado com efeitos benéficos da simultaneidade se esses efeitos, de algum modo, vierem a intervir na esfera jurídica dos componentes do outro núcleo familiar, que tiveram sua confiança e suas expectativas legítimas violadas (idem, p. 194-195).
Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:193-194) chega a concluir pela inexistência de deslealdade numa situação de famílias simultâneas em que todos têm ciência dessa condição e a aceitam, de forma que as famílias se mantêm íntegras. Segundo ele, não há no caso quebra da confiança um do outro, e o requisito da boa-fé está plenamente atendido.
Outro ponto que chama atenção na doutrina do autor multicitado, é o caso da bigamia. A bigamia é a condição de quem é formalmente casado com duas ou mais pessoas. Não é necessária a convivência afetiva com os diversos cônjuges para sua verificação. Basta o vínculo formal. Desse modo, a simultaneidade familiar só se verificaria se houvesse a efetiva convivência com os cônjuges. Dessa trama complexa, chega Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005) às seguintes conclusões: se o cônjuge do segundo casamento gozasse de boa-fé subjetiva, por determinação legal, a relação conceberia os efeitos de um casamento para ele até a declaração judicial de sua nulidade; de outro modo, aplicar-se-ia a teoria da boa-fé objetiva antes falada.
Arremata o familiarista dizendo que
O direito não pode se colocar como alheio às pretensões de felicidade coexistencial dessas pessoas: se a violação da boa-fé pode obstar, por conta do sentido ético que dela emerge, a produção de certos efeitos, esse mesmo sentido ético se coloca, quando a boa-fé resta plenamente atendida, a impor eficácia jurídica à situação de simultaneidade. A excepcionalidade da situação passível de eficácia tendencialmente plena não é argumento suficiente para que o direito negue aos sujeitos que a compõem a devida proteção (idem, p. 198)
Preferimos outra forma de avaliar os possíveis efeitos jurídicos do concubinato adulterino, partindo do princípio da boa-fé subjetiva, assim como já fazem os tribunais e a doutrina (ver ponto 4.2.2). Vale dizermos: não levamos em conta a ciência do cônjuge ou do companheiro da outra entidade familiar.
Com efeito, vislumbramos no caso concreto duas formas de concubinato adulterino: primeiro, quando o concubino não tem ciência de sua condição (boa-fé subjetiva); e segundo, quando tem ("má-fé" subjetiva). Na primeira situação, ponto pacífico na doutrina, bem assim na jurisprudência, estamos a vislumbrar uma união estável putativa, segundo a qual ao concubino de boa-fé aproveitarão todos os efeitos de uma legítima união estável enquanto durar sua ignorância sobre a relação simultânea de seu parceiro.
A segunda situação é mais comum, complexa e polêmica, pois o concubino tem completa consciência de sua condição na simultaneidade familiar. Importa ressaltarmos que, da pretensa "má-fé" do concubino, não nos é dado filtrar uma inexistência de objetivo de constituição de uma família no concubinato adulterino, principalmente quando a relação é duradoura e/ou quando dela nascem filhos. Ora, se é verdade que será uma família a relação humana que apresente as características da afetividade, da publicidade e da durabilidade, então, sempre que estivermos diante de um concubinato adulterino, estaremos diante de uma família. De outra maneira, estaríamos a malferir os princípios da dignidade da pessoa humana, do pluralismo familiar e da autonomia privada.
Portanto, no caso dos concubinos de "má-fé", entendemos que, desde logo, afora os direitos previdenciários consideravelmente reconhecidos nos tribunais, podem ser garantidos os seguintes direitos: 1) tendo em vista que, é uma entidade familiar, os assuntos do concubinato adulterino devem ser discutidos dentro de uma vara especializada, qual seja, a de família. Mesmo porque no concubinato adulterino pode haver conexão ou continência com assuntos já reconhecidamente de direito de família; 2) em vez de indenização pelos serviços prestados, como vêm decidindo os tribunais em alguns casos de inexistência de patrimônio comum a ser partilhado, a concessão de alimentos ao concubino que demonstre uma necessidade e prove que o outro pode supri-la, pois o requisito da parentesco familiar está preenchido; 3) o bem imóvel em que reside a família dos concubinos deve estar sob a proteção legal do bem de família, pois, do contrário, estaria o direito a negar uma condição mínima de dignidade a eles; e 4) direito à partilha dos bens onerosamente adquiridos na constância da relação afetiva, desde que de uso exclusivo do casal de concubinos. Nesse caso, deve haver uma presunção de que tenham sido construídos em comum esforço.
O próprio Superior Tribunal de Justiça já prolatou algumas decisões em prol do concubino de "má-fé", mormente, no campo previdenciário. Só por ilustração, relembremos os julgados transcritos no ponto 4.2.2. supra, em que, mesmo reconhecendo o concubinato adulterino, o Egrégio Tribunal Superior entendeu pela concessão de efeitos jurídicos típicos de uma entidade familiar, tudo isso em face da estabilidade da relação. Senão, vejamos:
RECURSO ESPECIAL. PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. PARTILHA DE PENSÃO ENTRE A VIÚVA E A CONCUBINA. COEXISTÊNCIA DE VÍNCULO CONJUGAL E A NÃO SEPARAÇÃO DE FATO DA ESPOSA. CONCUBINATO IMPURO DE LONGA DURAÇÃO. Circunstâncias especiais reconhecidas em juízo. Possibilidade de geração de direitos e obrigações, máxime no plano da assistência social. Acórdão recorrido não deliberou à luz dos preceitos legais invocados. Recurso especial não conhecido (STJ – REsp. n.º 742.685-RJ – 5-9-05).
HOMEM CASADO. SITUAÇÃO PECULIAR, DE COEXISTÊNCIA DURADOURA DO DE CUJUS COM DUAS FAMÍLIAS E PROLE CONCOMITANTE ADVINDA DE AMBAS AS RELAÇÕES. INDICAÇÃO DA CONCUBINA COMO BENEFICIÁRIA DO BENEFÍCIO. [...] II – Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos arts. 1.474, 1.177 e 248, IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra espécie de "bigamia", em que o extinto mantinha-se ligado à família legítima e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do direito. III – Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenização securitária (STJ – Resp. n.º 100.888-BA – 12-3-01).
Por fim, advertimos que, para os casos de amantes, que vivem na clandestinidade e por isso não formam uma entidade familiar, devemos aplicar a teoria do enriquecimento ilícito — que, por sinal, não serve mais para o concubinato adulterino, como veremos no ponto a seguir.
6.1 CRÍTICA À VISÃO TRADICIONALISTA DA DOUTRINA JURÍDICA E DA JURISPRUDÊNCIA
A reserva da jurisprudência e da doutrina no que concerne às entidades familiares que não o casamento sempre impediram a ordem jurídica de assimilar por completo a existência dos vários arranjos familiares. Um caso emblemático é o da união estável, que mesmo após a Constituição Federal de 1988 continuou sem um regramento e um reconhecimento pleno do direito de família pátrio. Aliás, chegava-se ao absurdo de negar-se alimentos aos companheiros em face da ausência de regras próprias desse instituto — erro que só foi resolvido em parte com a promulgação da Lei n.º 8.971/94.
Pior ainda é pensar que, já vigente a Carta Magna de 1988, que empunhava o princípio da pluralidade familiar e previa expressamente a união estável, a súmula 380 do Supremo Tribunal Federal ("Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.") era-lhe normalmente aplicada. Essa atitude representava um atraso com o qual o ordenamento jurídico não mais compactuava. Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), comentando a história dessa súmula, escreve:
Sabe-se que a Súmula 380 foi uma engenhosa formulação construída pela doutrina e pela jurisprudência, durante a vigência da Constituição de 1946, consolidada no início da década de sessenta, para tangenciar a vedação de tutela legal das famílias constituídas sem casamento, de modo a encontrar-se alguma proteção patrimonial a, freqüentemente, mulheres abandonadas por seus companheiros, após anos de convivência afetiva. Como não era possível encontrar fundamento no direito de família, em virtude da vedação constitucional, socorreu-se do direito obrigacional, segundo o modelo das sociedades mercantis ou civis de constituição incompleta, ou seja, das "sociedades de fato". Essa construção é típica do que determinada escola jurídica italiana denomino "uso alternativo do direito". Os efeitos da Súmula limitam-se exclusivamente ao plano econômico ou patrimonial.
Entendemos que a súmula foi instrumento importante de realização alternativa de justiça para aqueles que faziam parte dos então conhecidos concubinatos puros, que, nos regimes constitucionais precedentes, não se incluíam entre as entidades familiares em face da proeminência do casamento. Mas sua aplicação refletia outro momento histórico que não o posterior a Constituição Federal de 1988.
Não bastasse isso, o equívoco se repete ainda hoje, quando já encontramos alguma regulamentação legal da união estável. É que o entendimento vem constantemente sendo utilizado para as relações afetivas à margem do casamento e também da união estável. Como podemos, nos dias de hoje, considerar "sociedades de fato" relações que se fazem a partir do afeto? Outrossim, se a súmula tem cunho genuinamente patrimonial, como aplicá-la às uniões afetivas?
A resposta a esses questionamentos é uma só: a súmula 380 é inaplicável às entidades familiares, entre as quais, o concubinato adulterino. Compreendemos suas razões, porém, os motivos autorizadores desse sumulado não mais persistem num Estado democrático que preza pela inclusão familiar. Não podemos jamais considerar "sociedade de fato" uma convivência conjugal em que se verifiquem uma publicidade, uma durabilidade e, principalmente, uma afetividade. "Afinal, que ‘sociedade de fato’ mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?", pergunta Paulo Luiz Netto LÔBO (2002).
Afora a implementação da súmula 380, questionamos outro entendimento jurisprudencial que tem boa acolhida na doutrina: a indenização pelos serviços prestados pela concubina. Na verdade, essa foi outra forma de realização alternativa de justiça pretendida pelos tribunais para acolher a situação da concubina, que, após anos de convivência afetiva, não havia formado um patrimônio comum apto à partilha. Tal qual a súmula multicitada, a pretensão indenizatória permeou primeiro a união estável, sendo que, após a regulamentação dos alimentos entre os companheiros, o entendimento acabou escorrendo para as outras entidades familiares fora do casamento como o concubinato adulterino. O julgado a seguir diz bem dessa situação:
Caracterizada a sociedade de fato e havendo a comprovação da participação da companheira nos bens adquiridos durante o período concubinário, terá ela, em conseqüência, direito à partilha do patrimônio; não se formando o patrimônio comum, faz jus à indenização correspondente aos serviços domésticos prestados (TAMG, Ap. 119.119-5, em 5.11.1991, Rel. Juiz Abreu Leite, RJTAMG 46/295).
Afinal de contas qual a natureza para os tribunais do concubinato adulterino: uma "sociedade de fato" ou um contrato verbal de trabalho?
Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004a:81-82) critica firmemente esse precedente jurisprudencial. Em suas palavras:
Esta indenização decorre de serviços prestados. Ora, quais são esses serviços? Esbarramos aí em uma contradição e até mesmo uma imoralidade, embora se negue isto. Primeiro: se forem serviços prestados, estaremos diante de uma relação trabalhista e deveremos buscar na Justiça do Trabalho as reparações devidas. Segundo: se são os prazeres, companhia ou qualquer outro desfrute que um tenha proporcionado ao outro, não se poderia cobrar por isso, sob pena de estar o Direito admitindo algo inadmissível na ordem jurídica. Ademais, indenização pressupõe que tenha havido dano. Qual dano?
A evolução dessas correntes jurisprudenciais guerreadas passou a considerar também, como prova de aquisição do patrimônio comum, a contribuição indireta, qual seja, através dos serviços domésticos. A ementa do acórdão proferido pela Segunda Câmara de Direto Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo nos autos do processo n.º 1999/0080154-7, esclarece o caso:
1. [...] 2. CONCUBINATO. Sociedade de fato. Partilha de bens. Contribuição direta da mulher na aquisição do patrimônio. Desnecessidade. Ação da ex-concubina julgada procedente em parte. Provimento parcial do recurso para esse fim. Inteligência do requisito esforço comum exigido pela súmula 380 do STF. Para partilha de bens, nos termos da súmula 380 do STF, a contribuição da companheira, ou companheiro, pode ser indireta, a qual tanto pode estar na direção educacional do filhos, no trabalho doméstico, ou em serviços materiais doutra ordem, como na ajuda em termos de afeto, estímulo e amparo psicológico.
Aqui, a crítica do familiarista Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004a) encontra a mesma razão de ser. Como podemos admitir a indenização de uma relação afetiva? Com efeito, pensar dessa forma o concubinato adulterino é desnaturá-lo, embora haja uma boa intenção por trás. Enfim, não estamos tratando de um contrato de trabalho ou "sociedade de fato", mas de uma entidade familiar.