Capa da publicação Licença para mandato classista pode ser negada Lei 11.094/2005?
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Podem estados e municípios deixar de conceder licença para mandato classista aos seus servidores públicos com fundamento na Lei 11.094/2005?

20/02/2022 às 11:30
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Alguma dúvida de que a licença para mandato classista em sindicatos de servidores está com seus dias contados? O sindicalismo brasileiro vive o seu pior momento.

A ideia central do presente ensaio é reforçar o entendimento da concessão da licença para mandato classista de servidores públicos estaduais e municipais, uma vez que como veremos, a Lei Federal nº 11.094, de 2005, somente pode ser aplicada para os servidores da União.

Para adentrar no debate proposto, precipuamente há de se levantar as diretrizes traçadas pelo Art. 8º da Constituição Federal de 1988, que trata especificamente da livre associação profissional ou sindical, um dos direitos sociais coletivos dos trabalhadores, ao lado do direito de greve, de substituição processual, de participação e do direito de representação classista.

A constitucionalização dos direitos sociais acima citados tem nascedouro notadamente a partir da primeira década do século XX, com a pioneira Constituição do México de 1917 e logo depois, a Constituição de Weimar na Alemanha em 1919.

Das Cartas Políticas acima referidas, extraímos a força de proteção social aos trabalhadores e um rompimento com a ideologia liberal. Em seus corpos normativos foram inseridos direitos sociais avançados para a época, num movimento de vanguarda. Dentre as proteções sociais podemos citar o direito à sindicalização, junto com o de greve e o salário mínimo.

Esse momento ficou caracterizado dentro do pressuposto do anarco-sindicalismo, com retratos fiéis de luta e enfrentamento nas greves gerais de 1917 e de 1919 e a grande greve de 1923. Contudo, foi ainda marcado por

[...] novas formas de repressão às lutas sindicais: assassinatos, prisões, torturas e deportações, também uma influência estrangeira, prática adotada e institucionalizada nos países da Europa e nos Estados Unidos. Na greve de 1918, a avaliação dos militantes e dirigentes anarquistas é de que se tratou de mais uma greve de caráter geral e revolucionária[1].

Vale dizer que o período da edição da Carta Social Mexicana deu-se durante a I Guerra Mundial (1914-1918) e a da Alemanha logo após o término da guerra. O período foi relacionado ao aparecimento da segunda geração dos direitos humanos, cujo surgimento pode ser associado também em função da Revolução Industrial e os problemas por ela causados. Um deles nitidamente seria a necessidade de amparo aos trabalhadores da indústria (produção em massa), que substituiu a fase artesanal das corporações de ofícios[2].

Assim, os direitos humanos de segunda dimensão são contemporâneos ao nascedouro do Estado Social que tomou sua maior expressão no Welfare State, notadamente após a II Guerra Mundial. Assim, os direitos econômicos, sociais e culturais com fundamento na justiça distributiva, faz alvorecer o direito à livre associação sindical. E como firmar este direito? Através dos sindicatos (aqui trabalhados em acepção ampla).

Não se pode olvidar que os sindicatos são atores importantes no processo de evolução social e contribuem para a formação de uma sociedade efetivamente democrática. Os trabalhadores reúnem-se em sindicatos para fazer valer seus direitos, muitas vezes violados pelo patronato. É através dos sindicatos que os trabalhadores lutam pelo respeito à dignidade, da pessoa que trabalha, pela segurança social e por uma sociedade mais justa.

Contudo, as reformas previdenciária, trabalhista, sindical e em tramitação a reforma administrativa, com a PEC 32/2020, não passam de meros pretextos para fragilizar ainda mais a força de trabalho [tanto no setor privado como no público], assegurando a permanência de mão-de-obra barata, utilizada como argumento para atrair investimentos estrangeiros [inclusive venda de estatais][3].

Em relação à Reforma Trabalhista promovida pela edição da Lei nº 13.467, de 2017, os sindicatos foram enfraquecidos, pois além da promoção da asfixia financeira, houve, dentre outras, o fortalecimento da comissão representativa dos trabalhadores no local de trabalho em detrimento do sindicato, que perde atribuição e fica excluído do processo de organização da eleição dos representantes dos trabalhadores[4].

Para reflexão, vale trazer à baila as ilações de Ulrich Beck, por ocasião de seus diálogos travados com Johannes Willms:

[...] não é bem uma aglomeração de seres humanos que a sociologia define como sociedade. O indivíduo isolado que lê um livro em casa, na tranquilidade de sua casa, também está no campo gravitacional da sociedade. Talvez ele pertença ao chamado segmento culto, pode ser que tenha estudado neolatinas e ganhe a vida escrevendo resenhas. O que a sociedade analisa como sociedade sempre se ajusta ao modo como a própria sociedade se define. De modo que a sociologia não trata da matéria inanimada como a dos químicos -, que fica passivamente no tudo de ensaio e se deixa interpretar cientificamente. Pelo contrário, a sociedade é constituída de sindicatos, partidos políticos, pobres, ricos, etc[5].

Feita essa pequena introdução no sentido de relembrar a importância do sindicato e de sua representação, passo a analisar as situações de licença para mandato classista hoje vigentes. A matéria não pode ser rebaixada ao descaso, posto que sem as licenças, como haverá de ter a representação? Como exercer o papel de agente social, ou seja, de representante sindical e ao mesmo tempo cumprir sua jornada laboral?

A licença para o exercício de mandato classista surgiu justamente para isso: liberar seu representante para poder atuar em prol da coletividade que representa.

No entanto, com a edição da Lei Federal nº 11.094, de 13 de janeiro de 2005 conversão da MPv nº 210, de 2004, o seu Art. 18 sofreu alteração ao modificar a sistemática da licença para exercício de mandato classista aos servidores públicos. Nestes termos, vale colacionar o dispositivo remodelador da sistemática:

Art. 18. Os arts. 92, 102 e 117 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, passam a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 92. É assegurado ao servidor o direito à licença sem remuneração para o desempenho de mandato em confederação, federação, associação de classe de âmbito nacional, sindicato representativo da categoria ou entidade fiscalizadora da profissão ou, ainda, para participar de gerência ou administração em sociedade cooperativa constituída por servidores públicos para prestar serviços a seus membros, observado o disposto na alínea c do inciso VIII do art. 102 desta Lei, conforme disposto em regulamento e observados os seguintes limites:

[...]

"Art. 102. [...]

VIII - [...]

c) para o desempenho de mandato classista ou participação de gerência ou administração em sociedade cooperativa constituída por servidores para prestar serviços a seus membros, exceto para efeito de promoção por merecimento;

[...]

"Art. 117. [...]

X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, salvo a participação nos conselhos de administração e fiscal de empresas ou entidades em que a União detenha, direta ou indiretamente, participação no capital social ou em sociedade cooperativa constituída para prestar serviços a seus membros, e exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário; [...]

Da exegese acima temos que a Lei Federal nº 11.094/2005, foi responsável por novo marco regulatório na seara da licença para exercício de mandato sindical/classista para os servidores regidos pela Lei nº 8.112, de 1990 RJU dos servidores públicos federais. Ou seja, com a edição da norma no âmbito federal, a licença, antes remunerada pelos cofres públicos, passou a ser não remunerada, mas não excluiu a autorização, ou seja, a anuência dada pela Administração Pública para o servidor se afastar para o cumprimento do mandato para o qual fora eleito pelos seus pares.

No âmbito do Supremo Tribunal a questão foi debatida e decidida na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 6051, com a seguinte ementa:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. § 11 DO ART. 81 DA LEI COMPLEMENTAR N. 14, DE 17.12.1991, DO MARANHÃO (CÓDIGO DE DIVISÃO E ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIAS DO MARANHÃO) ALTERADA PELO ART. 1º DA LEI COMPLEMENTAR DO MARANHÃO, DE 10.11.2017. ALEGADA OFENSA AO § 8º DO ART. 19 DA CONSTITUIÇÃO DO MARANHÃO E AO INC. I DO ART. 8º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL IRREGULAR. VÍCIO SANÁVEL. LEGITIMIDADE ATIVA CONFIGURADA. OFENSA DIRETA À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. CONDIÇÃO PARA CONCESSÃO DE LICENÇA REMUNERADA A SERVIDOR PÚBLICO DIRIGENTE DE CONFEDERAÇÃO, FEDERAÇÃO OU ASSOCIAÇÃO DE CLASSE À INEXISTÊNCIA DE SINDICATO REPRESENTATIVO DA CATEGORIA. AUSÊNCIA DE AFRONTA À AUTONOMIA SINDICAL. PRECEDENTES. AÇÃO DIRETA CONHECIDA E JULGADA IMPROCEDENTE.

1. É sanável o vício na representação processual consistente na ausência de procuração com poderes específicos com expressa referência ao ato normativo questionado. Precedentes.

2. A Confederação dos Servidores Públicos do Brasil CSPB é parte legítima para a propositura da ação direta, considerada a natureza jurídica de confederação sindical, registrada e composta por entidades sindicais e presente o requisito da pertinência temática consistente nas atribuições estatutárias e o objeto desta ação. Precedentes.

3. Não contraria a autonomia sindical norma que trata de organização administrativa do Poder Judiciário do Maranhão estabelecendo as condições para a concessão de licença a servidor público para exercício de mandato de representação classista. Precedentes.

4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

(STF, ADI 6051, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento em 27/03/2020 sessão virtual, acórdão publicado no DJE de 06/05/2020 - Ata nº 61/2020. DJE nº 110, divulgado em 05/05/2020). (Os grifos são meus).

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Da decisão de plenário do STF foram interpostos embargos declaratórios. Ao se manifestar, a relatora da ADI, Ministra Cármen Lúcia, assim se posicionou:

Razão jurídica não assiste à embargante. No acórdão embargado, assentou-se que a garantia do inc. I do art. 8º da Constituição da República não confere às entidades sindicais prerrogativa ilimitada de valer-se de instrumento de controle abstrato contra ato da Administração Pública. Cabe ao legislador estabelecer as condições do afastamento do servidor público para o exercício da função de dirigente sindical conforme o regime jurídico estatutário. Esta conformação legislativa não é de direito do trabalho, mas administrativo. Ressaltou-se, na decisão agravada, que, ainda que se pudesse superar o óbice preliminar apresentado, a fixação de balizas na norma impugnada para a concessão de licença a servidor ocupante de cargo de dirigente sindical não contrariaria o princípio da autonomia sindical, ausente ingerência em organização ou funcionamento interno daquelas entidades. (STF, ADI 6051, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento em 27/03/2020 sessão virtual, acórdão publicado no DJE de 06/05/2020 - Ata nº 61/2020. DJE nº 110, divulgado em 05/05/2020). (Destaquei).

Com a deliberação, os membros do STF firmaram o entendimento de que não há afronta ao Art. 8º da Constituição Federal [que trata especificamente da livre associação profissional ou sindical], da norma que indique a forma com a qual o servidor público se licencie para exercício de mandato sindical/classista, nem tampouco afronta ao princípio da autonomia sindical.

Nesta liça, a licença para cumprimento de mandato classista deve ser regulamentada em lei do próprio ente, pois se cuida de diretriz no Regime Jurídico Único de servidores.

Neste patamar, temos que o que está em vigência é o caput do Art. 39 da Constituição Federal de 1988, na redação dada pela EC nº 18/98, verbis:

Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.

Vale dizer que a redação do caput do Art. 39 da CF/88, na redação dada pela EC 19/98 está suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal, através do seu Plenário, deferiu parcialmente a medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI nº 2135 em 02/08/2007, para suspender a eficácia do artigo 39, caput, da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, tudo nos termos do voto do relator originário, Ministro Néri da Silveira e com efeitos ex nunc.

Desta forma, a competência para tratar do RJU é do próprio ente federativo. Nesta senda temos que há necessidade de alteração legislativa no âmbito estadual ou municipal para, dentre outros, modificar, restringir, excepcionar ou até mesmo extinguir a licença para mandato classista.

Ressalte-se que a alteração também deve ser feita em leis orgânicas [certas categorias de servidores] que disponham expressamente acerca da matéria aqui ventilada, notadamente quando tratam de leis complementares que dizem textualmente sobre a aplicabilidade do RJU de forma subsidiária.

Por fim, vale mencionar que caso aprovada a PEC 32, com a redação que está tramitando no Congresso Nacional, a tese aqui elaborada perde o sentido, pois do texto da proposta, extraímos que o Regime Jurídico Único, hoje de competência de cada ente federativo, será de competência exclusiva da União.

Acontece que está se propondo uma nova redação para o caput do Art. 39 da Constituição Federal de 1988 e que vai contar com sete incisos. A saber:

Art. 39. Lei complementar federal disporá sobre normas gerais de:

I - gestão de pessoas;

II - política remuneratória e de benefícios;

III - ocupação de cargos de liderança e assessoramento;

IV - organização da força de trabalho no serviço público;

V - progressão e promoção funcionais;

VI - desenvolvimento e capacitação de servidores; e

VII - duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remuneradas nos termos do art. 37, caput, incisos XVI-A e XVI-B.

Além da redação do Art. 39, o corpo da proposta de emenda constitucional, numa simples e singela leitura, denuncia que as relações no serviço público passarão a ser regidas de forma unitária e igualitária entre os servidores da União, dos estados e dos municípios.

Alguma dúvida de que a licença para mandato classista [representativo de categorias de servidores públicos] está com seus dias contados?

Novos tempos exigem novos desafios. São necessárias ações e respostas efetivas àqueles que hodiernamente se ocupam da reestruturação da máquina administrativa. Com certeza, o sindicalismo brasileiro vive o seu pior momento, tanto no setor privado, como no setor público.


  1. INÁCIO, José Reginaldo, org. Sindicalismo no Brasil: os primeiros 100 anos? Belo Horizonte: Crisálida, 2007, p. 167.
  2. MORENO, Rosana Cólen. Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção. São Paulo: LTr, 2015. p. 26.
  3. PEDROZA, Ruy Brito de Oliveira. Movimento Sindical: origem, conscientização, conquistas e novos desafios. São Paulo: editora do Instituo de Promoção Social IPROS, 1996.
  4. QUEIROZ, Antônio Augusto. Reforma Trabalhista e seus reflexos sobre os trabalhadores e as entidades representativas. Brasília: Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar DIAP, 2017, p. 17.
  5. BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. Tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: UNESP, 2003, p. 7-8.
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Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORENO, Rosana Colen. Podem estados e municípios deixar de conceder licença para mandato classista aos seus servidores públicos com fundamento na Lei 11.094/2005?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6808, 20 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96246. Acesso em: 21 nov. 2024.

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