1. O JUDICIÁRIO NOS TEMPOS ATUAIS
Lenta e com retrocessos, tem sido a evolução do Poder Judiciário, que na atualidade encontra-se de certa forma desacreditado pelos jurisdicionados que, talvez por desconhecerem a sua rotina, a carga de serviços a que seus membros estão submetidos e também a sua total falta de estrutura por não ser arrecadador de dinheiro, coloca-o como o único vilão.
Dentre as várias críticas, está a sua morosidade em dar a tutela almejada dentro do prazo ideal, o que certamente geraria nos cidadãos, se a prestação fosse ágil, o sentimento de justiça realizada e temeridade à violação da norma posta.
Entretanto, por mais que se fale em reforma judiciária, súmula vinculante, controle externo etc., ao meu ver, esta situação não será resolvida a curto e médio prazo, porque antes dessas inovações, deve-se primeiro enxugar o elevado número de leis existentes no Brasil, dentre elas, mormente as que atravancam o desenrolar da justiça contemplando procedimentos engessados e prevendo inúmeros recursos, razão pela qual devem os magistrados, no âmbito pessoal, procurar determinadas formas para que esta situação se amenize, tornando a prestação jurisdicional, senão ideal, ao menos viável.
Na atualidade, não há mais lugar àqueles que se demonstram excessivamente formalistas, mas tão somente aos aplicadores do direito, arrojados, dinâmicos, que exercem a função judicante como sacerdócio, sentindo prazer em estudar para cada vez mais se tornarem exímios e justos equacionadores dos conflitos sociais.
Os ranços de uma justiça lenta, arcaica e formalista não mais encontram eco num mundo globalizado e informado pela rapidez e clareza da internet.
Noutras palavras, o juiz deve ostentar mentalidade progressista, de conformidade com as necessidades atuais, interpretando as normas de forma lógica e finalística, voltando-se mais para a tutelar final, a qual soluciona o conflito, do que para o instrumento que até a ela induz.
Não se trata, e nem é essa a minha pretensão, de fomentar o desprezo pelos ritos em detrimento da segurança jurídica, ampla defesa, contraditório etc.
Porém, urge se ter em mente que sempre e sempre, o juiz deve estar mais direcionado ao fim colimado e não aos caminhos que leva a tal fim.
Diante dessa afirmação, o leitor pode perguntar: Mas qual será a fórmula mágica de dar a tutela de forma relâmpago e ao mesmo tempo, obedecer aos procedimentos estanques até que eles sejam revistos em uma eventual e demorada reforma?
Pois bem, todos os cultores do direito devem buscar, utilizando de seu preparo intelectual, respostas para este, que não deixa de ser um grande problema. Conquanto eu, juiz criminal, na minha área, encontrei uma saída, que apesar de não estar prevista em lei e ser repudiada por muitos, é possível de ser aplicada, face a sua extrema lógica.
Falo sobre a prescrição retroativa em perspectiva ou antecipada.
2. O DIREITO DE PUNIR
Com efeito, antes de entrar no âmago desta matéria, mister se faz a realização de uma pequena digressão.
É cediço que, ultrapassada a fase da vingança privada e da autotutela como forma de promoção de justiça, o Estado passou a ser o único detentor do direito de punir.
O direito de punir ou jus puniendi decorre do ordenamento legal e consiste no poder genérico e impessoal de sancionar qualquer pessoa que tenha cometido uma infração penal, onde temos o jus puniendi in abstracto.
No momento em que a infração penal é cometida, o direto que até então é abstrato, concretiza-se, individualizando-se na pessoa do agente, fato este que faz nascer o jus puniendi in concreto.
Desta feita, a partir do instante em que é praticada a transgressão, nasce para o Estado o direito de aplicar a punição prevista em sua lei àquele que agiu de forma reprovável.
Porém, a pretensão estatal de punir será obrigatoriamente resistida pelo autor do ilícito, o que gera um conflito de interesse entre a pretensão punitiva e o direito de defesa, somente podendo ser solucionado por um órgão deste mesmo Estado e que detém a função jurisdicional, qual seja, o Poder Judiciário.
Mas para que isso ocorra, essencial se torna que a jurisdição seja exercida por intermédio de um processo, cujo início se dá mediante o desencadeamento de uma ação penal, que nada mais é do que o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo a um caso concreto, a fim de que seja satisfeita a pretensão punitiva.
Para que referida ação penal seja admitida na ordem jurídica, deve estar subordinada a determinados requisitos denominados condições da ação, no âmbito criminal, condições da ação penal. Tais condições são a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse de agir.
Para o nosso trabalho, essencial é que se discorra somente sobre esta última condição.
Interesse de agir desdobra-se no trinômio necessidade e utilidade do uso das vias jurisdicionais para a defesa do interesse material pretendido, e adequação à causa, do procedimento e do provimento, de forma a possibilitar a atuação da vontade concreta da lei segundo os parâmetros do devido processo legal.
A necessidade é inerente ao processo penal, tendo em vista a impossibilidade de se impor pena sem o devido processo legal. Já a utilidade traduz-se na eficácia da atividade jurisidicional para satisfazer o interesse do Estado. Por último, a adequação reside no processo penal condenatório e no pedido de aplicação da sanção penal.
De outro modo, o interesse processual, portanto, é uma relação de necessidade e uma relação de adequação, porque é inútil a provocação da tutela jurisdicional ou a insistência no prosseguimento de um processo já em curso, se ela, em tese, ao término, não for apta a produzir a punição do autor do ilícito.
No campo civil, onde as condições da ação tiveram origem e posteriormente foram trazidas para o âmbito do processo penal, a doutrina dominante é no sentido de que falta interesse à parte, quando o provimento jurisdicional pleiteado seja inócuo sob o aspecto prático; Não pode o autor pedir uma atuação do Poder Judiciário que não resulte, se positiva, em utilidade no mundo objetivo.
É o caso, por exemplo, daquele que portando título executivo, almeja ver a outra parte condenada a pagar a quantia já consignada no aludido título.
Por conseguinte, na esfera penal, com base na prescrição, seja ela retroativa punitiva (pena em abstrato) ou em perspectiva (pena em concreto antevista a ser aplicada futuramente ao infrator), adotando-se igual raciocínio, deve-se rejeitar a denúncia ainda não recebida ou extinguir-se o processo em curso, face a perda do direito material de punir, como resultado lógico e inexorável da desnecessidade de utilização das vias processuais (falta de interesse necessidade). Também pela ausência de utilidade de um provimento jurisdicional materialmente eficaz, resultante de uma persecução penal inútil e onerosa (falta de interesse de agir utilidade).
3. SOLUÇÃO LÓGICA
É sabido e consabido que para o réu ser apenado além do quantum previsto no mínimo do tipo penal, deve ser reincidente e ostentar circunstâncias judiciais totalmente desfavoráveis.
Então, se é primário e não possui antecedentes criminais, nada impede que o magistrado, antevendo a pena que ao final irá aplicar no caso concreto, em regra no mínimo legal, atento a todas as disposições referentes ao instituto da prescrição previstas no artigo 109 e seguintes do CP, declare desde já, seja em qual fase for, inclusive de ofício, pois que o artigo 61 do CPP assim o permite, a extinção da punibilidade estatal.
Ora, repiso, se a ação penal para existir precisa preencher o requisito do interesse de agir, desencadeando assim um processo e uma sanção àquele que cometeu um ilícito penal; se este fim não poderá mais ser materialmente realizado porque ao sentenciar e aplicar concretamente a reprimenda, o direito de punir pulverizou-se no tempo, qual a finalidade de desencadear ou até mesmo dar prosseguimento a um processo natimorto!
Principalmente, se o Estado encontra-se abarrotado de processos cujas penas, pelo decurso do tempo, se tornaram utópicas, qual o fundamento lógico de se movimentar toda a máquina judiciária para se concluir ao término que a nada levou?
Por outro giro, se o ente estatal encontra-se literalmente quebrado, logicamente deveria se restringir aos casos cuja prestação jurisdicional encontrasse ressonância na efetividade, mas, ao contrário, permanece cuidando dos feitos imprestáveis, onde, para impulcioná-los paga-se salários aos magistrados, servidores, promotores etc., gasta-se energia elétrica, fita de impressora, papel, gasolina, diárias de oficiais de justiças, telefone etc., e ao final nada penaliza, fato este que denigre a imagem da justiça, pois cria, a princípio, uma falsa perspectiva de punibilidade que jamais é obtida, gerando a partir de então, sentimento de impunidade, o que incentiva a prática de novas infrações.
Como uma bola de neve que vai aumentando gradativamente, enquanto os processos prescritos lotam as pautas, os recentes permanecem no aguardo de novas datas para serem instruídos e julgados, e quando assim o forem, já serão velhos e certamente as penas estarão prescritas, é o conhecido cachorro correndo atrás de seu rabo!
Pior, além de atravancar a vara criminal do juízo de origem, atrapalham também a outros que se vêem obrigados a dar cumprimento aos atos deprecados expedidos em ações penais cujas pretensões de a muito já se encontram prescritas.
Ademais, qualquer pessoa que lida com a justiça criminal, tem conhecimento de que o processo nessa área não resiste ao decurso de tempo, já que o fato delituoso tem a tendência natural de cair no esquecimento, as testemunhas costumeiramente mudam de endereço e, quando são encontradas, não se recordam mais dos fatos, o que prejudica sobremaneira a obtenção da verdade real e a conseqüente punição.
Na atualidade, não há como se fazer proselitismo, face ao grande número de processos que se amontoam nas prateleiras e que nunca são julgados. Esse fato, insisto, denigre a imagem da justiça fazendo com que os jurisdicionados cada vez mais fiquem desacreditados em buscar guarida de seus direitos.
Humberto T. Júnior, processualista de prol, entende que "... o processo, hoje, não pode ser visto como mero rito ou procedimento. Mas igualmente, não pode reduzir-se a palco de elucubrações dogmáticas, para recreio de pensadores isotéricos. O processo de nosso final de século, é sobretudo um instrumento de realização efetiva dos direitos subjetivos violados ou ameaçados de realização pronta, célere e pouco onerosa. Enfim, um processo a serviço de metas não apenas legais, mas também sociais e políticas. Um processo que, além de legal, seja sobretudo um instrumento de justiça" (Revista Jurídica, Síntese, Ano XLVI - n.º 251 - setembro de 1.998, p. 7).
Nos estados mais desenvolvidos da federação, começam a surgir julgados inovadores os quais adotam esse entendimento, dentre eles, destaco os dos Egrégios Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul e Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo litteris:
"PRESCRIÇÃO ANTECIPADA - Validade do raciocínio judicial que
antecipa o cálculo prescricional para rejeitar a denúncia.
Ementa Oficial: Princípio do direito administrativo, voltado para a boa aplicação do
dinheiro público, também recomenda que não seja instaurada a ação penal por falta de
interesse, quando, em razão da provável pena, que é uma realidade objetivamente
identificável pelo Ministério Público e pelo juiz, a partir das considerações
inerentes ao artigo 59 do CP, for possível perceber que a sentença condenatória não se
revestirá de força executória, em face das regras que regulam a prescrição..."
(Ap. 295.059.257 - 3º Câm. - j. 12.03.1.996 - Rel. Juiz José Antônio Paganella
Boschi).
"De nenhum efeito a persecução penal com dispêndio de tempo e
desgaste do prestígio da Justiça Pública, se, considerando-se a pena em perspectiva,
diante das circunstâncias do caso concreto, se antevê o reconhecimento da prescrição
retroativa na eventualidade de futura condenação. Falta, na hipótese, o interesse
teleológico de agir, a justificar a concessão ex officio de habeas corpus para
trancar a ação penal"
(TACRIM/SP - HC - Rel. Sérgio Carvalhosa - RT 669/315).
Não é porque a lei não prevê expressamente a figura da prescrição antecipada, que a mesma não possa ser alcançada por meio de uma interpretação sistemática ou finalista.
Poder-se-ia contra argumentar que diante do princípio da presunção de inocência, o réu tem o direito de ter um provimento jurisdicional que lhe reconheça a inculpabilidade lhe oferecendo um título neste sentido (sentença penal absolutória).
Francamente, com certeza, com fulcro em tais argumentações, já extingui inúmeros processos na comarca em que trabalho, e até hoje nenhum dos réus recorreram das sentenças que reconheceram a seu favor a prescrição da pretensão punitiva antecipada, dando-se, diga-se de passagem, por muito satisfeitos, já que mais de 80% dos casos criminais levados ao conhecimento da justiça geram sentenças condenatórias.
Certo é que, os delitos cometidos na comarca a qual jurisdiciono, são processados e recebem sentença final em média em 4 meses, o que me proporciona tempo para escrever sobre esta matéria.
Fica aqui minha sugestão que entendo ser perfeitamente viável, desde que haja um desapego ao formalismo, para colaborar com o término da morosidade na justiça criminal.