5. Segregação Institucionalizada no Código Criminal de 1830
O Código Criminal de 1830 representou uma adequação no direito penal pátrio à realidade política, social e institucional que vigorava no Brasil após a independência.
Malgrado os reconhecidos avanços humanistas em seu texto, o Código Criminal Imperial refletia o interesse das classes sociais mais abastadas e dominantes na manutenção de seus privilégios e status quo, em detrimento dos setores mais marginalizados da sociedade.
Nesse contexto, não se pode descurar que o direito penal representa a última ratio do poder estatal de permanência da ordem estabelecida. Usa-se a ameaça e efetividade das penas, como retribuição estatal pelo descumprimento da lei, como forma de continuidade da estrutura social vigente.
O Brasil do pós-independência era um país cuja maioria da população era negra escravizada, analfabeta, rural e desprovida das mínimas condições de acesso a bens materiais e ascensão social.
Na época, mais de 85% da população era analfabeta, com a imensa maioria constituída de pessoas submetidas a regime servil, tendo a Constituição de 1824 ignorado, por pressão de fazendeiros e latifundiários, os reclamos de igualdade efetiva, mantendo a escravidão e tornando-a persistente durante quase todo o século XIX.
Na verdade, a Constituição de 1824, outorgada por um poder imperial absoluto, instituiu um liberalismo formal típico e próprio das revoluções burguesas, afastando-se de discussões de temas como a inclusão das camadas mais humildes da sociedade (políticas públicas efetivas) e abolição da escravatura e da pena de morte.
As classes dominantes viam essa grande massa de pessoas desvalidas como potenciais insurgentes, capazes de realizar revoltas e quebrar a ordem constituída.
Como diploma repressor, o Código Criminal Imperial, secundando a Constituição de 1824, que manteve institucionalizada essa segregação contra escravos e pobres em geral, pretendia reprimir, por meio de previsão de crimes e penas, os levantes da malta urbana, pondo fim às insurreições de escravos e a existência de quilombos, além de vigiar e prender pessoas apontadas como vadias e desordeiras.
Percebe-se o propósito de contenção do caldeirão social nesses objetivos do Código Criminal de 1830, que manteve a lógica escravocrata e segregadora vigente desde as Ordenações do Reino, embora com verniz humanista aplicável aos cidadãos livres e de boa condição social.
Gizlene Neder, assim se expressa:
O Código Criminal de 1830, que viabilizava esse sistema, teoricamente articulava de um lado as ideias liberais de Beccaria e, de outro, as tentativas de controle penal absoluto e punição privada sobre os escravos, que pode ser explicado, segundo Neder, pelas concepções encadeadas pelas reformas pombalinas durante o século XVIII, na qual instaurou-se um processo de modernização conservadora em Portugal, em que é possível destacar a presença de uma retórica formalmente ilustrada, mas em defasagem com a prática efetiva
(NADER, Gizlane. Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2007, p. 106).
O mesmo entendimento de Nilo Batista:
O aspecto que aqui se sublinha, é que o iluminismo jurídico penal luso-brasileiro tinha uma nítida contradição entre o rol de direitos e garantias fundamentais, elencados nos incisos do artigo 179 da Constituição de 1824, dentre os quais estavam elencados a garantia da isonomia, da legalidade; e os privilégios da nobreza e o regime de escravidão que sequer eram mencionados naquela Carta. Não pode ser esquecido que, embora não fizesse menção expressa a escravidão, a citada Carta se curvava a mesma sob a fórmula circunloquial de garantir o direito de propriedade em sua plenitude
(BATISTA, Nilo. Apontamentos para uma história da legislação brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 103).
Exemplo evidente desse caráter segregador do Código Criminal de 1830, tem-se a regulação jurídica da situação do escravo.
A Constituição Imperial de 1824 dividia os homens, levando-se em conta o direito de liberdade, em ingênuos e libertos. Os primeiros seriam os nascidos livres; os segundos, os que foram escravos desde o nascimento, porém obtiveram a liberdade posteriormente.
Em seu artigo 94, o diploma constitucional imperial reduz os libertos à condição de cidadão de segunda classe, impedindo-os de serem eleitores e ocupar cargos públicos.
Embora sem explicitar, a Carta Fundamental de 1824, ao prever pessoas livre e libertas, admitia implicitamente a existência jurídica de outras desprovidas de liberdade, ou seja, escravas.
A respeito da natureza jurídica dos escravos, tem-se que eles eram considerados ao mesmo tempo pessoa e coisa, portanto, com aspecto híbrido, podendo seu senhor agir como dominus, possuindo potestas sobre eles.
Elucidativas as palavras do grande jurista do império, o Conselheiro Joaquim Ribas:
A dominica potestas dos Romanos, constando de dous elementos o dominum e a potestas, impunha ao escravo dupla sujeição ao senhor, e o considerava ao mesmo tempo como cousa e como pessoa. Esta instituição não despessoalizava pois inteiramente o escravo, nem poderia ele sel-o, pois que a sua incapacidade era subjeita a restrições. À proporção, porém, que o direito stricto se foi aproximando do racional, foi-se restringindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como oposta à natureza e a liberdade como faculdade natural. Entre nós também os direitos do senhor sobre o escravo constituem domínio e poder, em relação ao domínio o escravo é cousa, em relação ao poder é pessoa
(RIBAS, Joaquim. Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Rio, 1982, p. 281-282).
Essa natureza híbrida do escravizado, personae e res, fazia com que ele fosse a um tempo objeto material de crime (inclusive contra o patrimônio), mas, por outro lado, sujeito ativo de crime, não se enquadrando em nenhum caso de inimputabilidade, nos termos do artigo 10 do Código Criminal de 1824.
Portanto, aceita pela Carta Magna Imperial a escravidão, forma mais odiosa de segregação, ao Estatuto Repressor de 1830 foi atribuído estabelecer o regramento penal incidente sobre essa situação do escravizado, que obviamente seria diferenciado dos demais integrantes do tecido social.
O Código Criminal de 1830 não possuía um livro, título ou capítulo específico tratando do regramento penal dos escravos.
A distinção do escravizado e dos demais componentes da textura social era estabelecida pelo tratamento dispare das penas aplicadas.
Para os cidadãos livres, o Código Criminal de 1830 estabelecia, em seus preceitos sancionadores do tipo penal, uma dezena de punições possíveis, quais sejam, morte na forca, galés, prisão com ou sem trabalho, banimento, degredo, desterro, suspensão ou demissão de emprego público e pagamento de multa. Era um plexo de possibilidades que o juiz sentenciante poderia aplicar, dependendo do crime e da condição do infrator.
Contudo, em relação aos escravos, dessa extensa lista de punições, somente era prevista a possibilidade de aplicação das duas mais severas, quais sejam, morte e galés. Nos casos de crimes menos graves, os escravos teriam convertidas as reprimendas em açoites, pena de aplicação proibida para os cidadãos livres.
Os açoites eram aplicados em local público e no máximo de 50 chibatadas. Caso excedessem a esse número, as chibatadas seriam aplicadas em outros dias, de forma a não exceder a 50 delas por dia. Após, o escravo infrator era entregue ao seu senhor, onde poderiam permanecer acorrentados.
O artigo 60 assim dispunha:
Se o réo for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar. O número de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta.
Deve ser ressaltado que a própria Constituição de 1824 vedava expressamente os açoites, tortura, marca de ferro quente e todas as penas cruéis, o que, na prática, não se aplicava ao escravizado, que ficava à míngua dos direitos constitucionais e submetidos ao regime repressor estatal à serviço do sistema escravocrata.
Uma preocupação constante no Código Criminal de 1830 era com as revoltas de escravos, sendo certo que se procurou penalizar especialmente a organização desses movimentos libertários.
Foi estabelecida a distinção entre a revolta de um ou poucos cativos das que se apresentassem como uma rebelião coletiva, visando escapar à escravidão.
O artigo 113 do Código Criminal de 1824 estabelecia o crime de insurreição:
Julgar-se-á cometido este crime reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força.
Eram previstas gradações de penas para os líderes (cabeças) e para aqueles que não o fossem. Aos primeiros, penas mais severas (galés, galés perpétuas ou mesmo morte); aos segundos, açoites.
Prevendo a possibilidade de participação de cidadãos livres em movimentos libertários de escravos, o artigo 114 prescrevia:
Se os cabeças forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas penas impostas no artigo antecedente aos cabeças quando são escravos.
Já o artigo 115 previa pena de prisão com trabalhos a quem ajudasse escravos rebeldes fornecendo-lhes armas, munições ou outros recursos propícios a fugas.
Além disso, era permitido ao senhor castigar seu escravo, diante de sua condição de dono, desde que o fizesse sem excessos. O castigo físico imposto pelo senhor ao escravo possuía um caráter repressivo e preventivo para a manutenção do sistema servil e senhorial.
Portanto, o Estado permitia, por lei, a aplicação de penas privadas pelo senhor, ainda que com um certo grau de moderação.
Contudo, não era apenas a manutenção do sistema escravocrata e as possíveis rebeliões de escravos que preocupavam a elite dominante no nascente império.
Conforme dito, a sociedade da época, além de escravagista, era desigual ainda com os libertos e homens livres desvalidos e sem fortuna, criando sempre o risco de contestações da ordem estabelecida.
Como diploma legal que funcionava como freio ao cometimento de atos violadores da ordem, o Código Criminal de 1830 levou sua preocupação a extremos com os escravos e pessoas pobres livres em seus cotidianos, estabelecendo uma série de restrições a sua liberdade.
Criou-se um sistema policial reprimindo a vadiagem, mendicância e os ajuntamentos (artigo 285). A pena de prisão era aplicada de forma bastante comum nesses casos.
Os comandos normativos do Código eram reforçados pelos vários Códigos de Posturas Municipais, que estabeleciam restrições públicas segregadoras e discriminatórias aos escravos e pobres de todas as raças.
Elementos religiosos, culturais e sociais da maioria carente e desvalida também eram reprimidos fortemente, com o objetivo de evitar uma organização social mais intensa e questionadora.
À guisa de exemplos vê-se o Código de Postura Municipal da Província do Pará, de 29 de novembro de 1848:
Artigo 33 Toda pessoa que se intitular pajé, ou que a pretexto de tirar feitiço, se introduzir em qualquer casa, ou receber na sua casa alguém para simular cura, ou para fazer adivinhações e outros embustes incorrerá na multa de vinte mil réis, ou oito dias de prisão em qualquer dos casos. (...).
Artigo 82 Os donos, ou administradores de qualquer casa de venda não consentirão aí ajuntamento de mais de dois escravos, nem batuques, ou vozeira deles dentro de casa, ou em frente dela. O infrator incorrerá na multa de dez mil réis ou quatro dias de prisão. (...).
Artigo 105 Ninguém poderá alugar casas para nelas morarem escravos, sem que obtenha licença por escrito dos seus senhores, sob pena de incorrer o infrator na multa de dez mil réis, ou quatro dias de prisão. (...).
Artigo 107 Toda pessoa que for convencida a ter notícia ou mesmo conhecimento da existência de algum mocambo de pretos fugidos e o não tiver comunicado à autoridade competente mais próxima e aos senhores incorrerá na multa de dois mil réis, ou oito dias de prisão.
Agora, o Código de Postura Municipal de Serra Negra, de 15 de abril de 1863:
Artigo 26 É proibido dentro da vila a dança do batuque, e em geral todo ajuntamento ou algazarra e vozerias. Se, porém, este for escravo, serão recolhidos à cadeia. (...)
Artigo 70 Todo o senhor que abandonar escravos doentes de moléstia morfética, e que consenti-los mendigar, pagará 30$000 de multa, além disto será obrigado a recolhê-los em casa separada, a sustentá-los e vesti-los..
Eram crimes tachados de policiais, atingindo a civilidade e os bons costumes. Aqui se tem os casos das capoeiras, organizações secretas e prostituição, pois eram vistos como violadores dos princípios básicos de uma sociedade conservadora, patriarcal, estamental e racista, desejosa de afastar possibilidade de quebras ou perturbações de seu regime de despotismo esclarecido em um iluminismo tipicamente tropical.
Conclusão
Sob inspiração das ideias e filosofias iluministas e humanistas do final do século XVIII, escorado no rol de direitos e garantias individuais previstos no artigo 179 da Constituição de 1824, não resta dúvida que o Código Criminal de 1830 representou um grande avanço técnico-jurídico e de evolução na cominação de crimes e aplicação de sanções, adotando as mais modernas teorias de direito penal existentes à época.
Revelou-se grande monumento da cultura penal brasileira, rompendo dogmas e tradições inseridas no direito reinol, sendo paradigma para outros diplomas criminais, não só na América Latina, mas, inclusive, no Velho Continente.
Porém, nenhuma legislação pode prescindir de sua inserção no contexto social a que será aplicado.
Ao tempo da promulgação e durante a vigência do Código Criminal de 1830, nossa sociedade era indiscutivelmente segregadora e escravocrata, representando um corpo social extremamente deletério e desigual, trazendo em seu interior a doença da separação e discriminação entre classes e pessoas.
Como estatuto penal, o Código de 1830 não poderia deixar de sofrer influências dessa situação social racista e segregacionista, apresentando aspectos desiguais e em certos casos até desumanos, especialmente levando-se em conta a evolução civilizatória já existente no mundo naquela época.
Essa contradição moderno e humanista de um lado, porém segregador e repressor com os escravos e pobres livres, em contraste com a elite branca, afastando-se do primado da igualdade de todos perante a lei - faz com que o estudo do Código Criminal de 1830 se apresente interessante e fundamental para a evolução do direito penal e das ciências sociais como um todo em nosso país.
Assim, depreende-se do estudo do Código Criminal do Império do Brazil que, por mais que se tente instituir um corpo de leis tecnicamente moderno e evoluído, nunca se pode fugir das idiossincrasias e contradições reinantes em uma sociedade com interesses políticos, econômicos, sociais e culturais contrapostos e complexos.
Referências
BATISTA, Nilo. Apontamentos para uma história da legislação brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016
FAUSTO, Boris. História do Brasil. Edusp. São Paulo, 1996. Disponível em: https://www.conisul.com.br/wpcontent/uploads/2014/02/historiadobrasil.pdf. Acesso em 16 de fevereiro de 2022
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Curso de Direito Penal, 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, Volume 1º, Tomo 1º, São Paulo: Editora Max Limonad, 1983
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. 1º ed. Campinas: Bookseller, 1997
NADER, Gizlane. Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2007
PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica. 2ºed. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2004
RIBAS, Joaquim. Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Rio, 1982
TINÔCO, Antônio Luiz Ferreira. O Código Criminal do Império do Brasil Annotado. 1. ed. de 1886. Edição fac-similar, com prefácio do Ministro Hamilton Carvalhido. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003