A questão do lançamento do IPTU em imóvel de uso misto, ou seja, de uso residencial e uso comercial ao mesmo tempo não é objeto de estudos pela doutrina especializada.
Nem há normatização na maioria dos Municípios.
Alguns municípios prescrevem que em caso de imóvel misto — comercial/residencial — prevalece a alíquota que for maior, ou seja, a alíquota pertinente a prédio não residencial.
Trata-se, sem dúvida de um critério arbitrário que desatende ao princípio da neutralidade da lei tributária: nem pró fisco, e nem pró contribuinte. Ademais, semelhante critério ofende o princípio da razoabilidade.
Aludido critério, timbrado pela parcialidade, representa uma doença legislativa transplantada da antiga legislação do ITBI do Município de São Paulo que prescrevia a base de cálculo desse imposto como sendo o valor venal do IPTU, ou o valor da transmissão prevalecendo o que for maior.
Essa esdrúxula legislação foi revogada antes da decisão do STJ que em sede de recurso repetitivo adotou a tese de que a base de cálculo do ITBI é o valor da transmissão, gozando da presunção de veracidade esse valor declarado pelo contribuinte, ressalvado ao fisco o arbitramento mediante instauração do respectivo processo administrativo regular, vedado o arbitramento prévio (REsp nº 1.837.821).
Em se tratando de prédio de uso misto o certo e o lógico seria a adoção de lançamentos separados, ainda que constantes de um único documento, tributando a parte residencial com a alíquota de 1% e a parte não residencial, com a alíquota de 2%. Esse critério é adotado no lançamento de imóvel contendo edificação e porção de terreno não edificado.
No Município de São Paulo adotou-se para o lançamento do IPTU em prédio residencial/comercial o critério da preponderância do uso, conforme se verifica do art. 7º da Lei nº 6.989, de 29-12-1966:
“Art. 7º. O imposto calcula-se sobre o valor venal do imóvel à razão de:
1 - tratando-se de imóvel utilizado exclusivamente ou preponderantemente como residência:”
O que significa a expressão “preponderantemente como residência”?
Essa preponderância a que alude o texto normativo só pode se dar em função da área do imóvel utilizado como residência.
De fato é comum em um sobrado parte do prédio situado no térreo ser destinado a uso comercial. Outras vezes, um prédio térreo é destinado ao uso residencial na parte dos fundos e a parte frontal para desenvolvimento de atividade comercial ou de serviços.
Segundo a legislação do Município de São Paulo se a área ocupada como residência for maior que a área ocupada para outro fim, o IPTU deverá ser lançado como prédio residencial, ou seja, pela alíquota de 1%. Na hipótese inversa, deverá ser lançado pela alíquota pertinente a prédio não residencial, isto é, pela alíquota de 1,5%.
Poderia lei ter optado pelo lançamento em separado da área de uso comercial e da área de uso residencial, hipótese em que caberia ao proprietário do prédio no ato de cadastramento do imóvel perante o Departamento de Rendas Imobiliárias proceder à descrição em separado das duas áreas, para fins de lançamento do IPTU.
Tendo a Prefeitura paulistana adotado o critério da preponderância de uso não havia razão para o contribuinte efetuar o cadastramento do imóvel de forma desmembrada separando a área residencial da área não residencial.
Outrossim, na matriculo do imóvel perante o registro imobiliário competente não há lugar para proceder a essa separação.
Ocorre que abandonando a postura tradicional de lançar o IPTU de prédio misto segundo o critério da preponderância previsto no art. 7º da Lei nº 6.989/1966, o fisco municipal de São Paulo, a partir do exercício de 2022, passou a proceder ao lançamento do IPTU com a adoção da alíquota mais vantajosa para o fisco, ou seja, 1,5% pertinente a imóvel não residencial em contraste com imóvel residencial em que a alíquota e de 1%, desobedecendo ao princípio da vinculação da administração a seus próprios atos.
A Prefeitura de São Paulo, talvez, para compensar as despesas extraordinárias decorrentes da pandemia, promoveu brutal elevação de impostos em geral pela Lei nº 17.719/2021, sem observância dos princípios tributários e da própria lei.
Só para citar, o artigo 13 da Lei 17.719/2022 alterou a base de cálculo do ISS das Sociedades Uniprofissionais tributadas pela alíquota fixa, como prescrevem o art. 9º, §§ 1º e 3º do Decreto-lei nº 406/68, lei de aplicação em âmbito nacional, substituindo-a pela receita bruta apurada de forma progressiva fundada no número de profissionais integrantes da SUP, fazendo incidir sobre ela a alíquota de 5%.
Em outra passagem, essa Lei previu a aplicação extraordinária da trava no lançamento do IPTU nos exercícios de 202, 2023 e 2024 representada pela variação do índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA do exercício anterior.
Pois bem, a variação do IPCA no exercício de 2021 foi de 10,06%, porém, a Prefeitura de São Paulo efetuou o lançamento de 2022 com aumentos que variam de 750% até 800% ou mais, desobedecendo a própria legislação que editou.
No caso objeto deste artigo sequer houve alteração legislativa, continuando valer o critério da preponderância previsto no art. 7º da Lei nº 6.989/1966 que passou a ser inobservado pelo fisco municipal a partir do exercício de 2022.
O que é pior, o fisco vem procedendo ao lançamento retroativo obedecido o prazo decadencial, para cobrar o IPTU por inteiro com a aplicação da alíquota de prédio não residencial, ou seja, alíquota de 1,5%, sem que tivesse havido alteração fática ou jurídica.
Não há que se falar em revisão de lançamento com fundamento no art. 149, VIII do CTN, pois a situação fática (ocupação da posição maior do prédio como residência) sempre existiu procedendo-se ao lançamento do IPTU segundo o critério da preponderância.
Assim o fisco municipal alterou o critério jurídico adotado no exercício do lançamento promovendo a aplicação retroativa desse novo critério que implica inverter o critério da preponderância, ou seja, aplica-se a alíquota de área não residencial (1,5%) relativamente à maior porção do imóvel utilizado como residência.
Patente a violação do art. 146 do CTN que impede a aplicação do novo critério de lançamento no mesmo exercício de sua alteração.
É o caso de ação ordinária de anulação do lançamento por desobedecer a prescrição da sua própria lei e ofender escancaradamente o disposto no art. 146 do CTN.