Capa da publicação Seletividade do ICMS sobre energia e telecomunicação e o critério da essencialidade
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A seletividade do ICMS sobre o fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação a partir do critério da essencialidade e o julgamento pelo STF do tema 745 da repercussão geral

Leia nesta página:

É possível varias as alíquotas de determinado produto essencial conforme seu uso e destinação?

INTRODUÇÃO

Trata-se de estudo que aborda a discussão acerca do alcance do art. 155, §2°, III, da CF/88, que prevê a aplicação do princípio da seletividade ao ICMS, incidente, especificamente no caso, sobre o fornecimento de energia elétrica e os serviços de telecomunicações.

O presente tema é pauta atual de discussão no âmbito doutrinário e, sobretudo, jurisprudencial, tendo em vista recente julgado em sede de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (Tema 745), o qual teve grande impacto socioeconômico, tanto que a Suprema Corte, por maioria, modulou os efeitos da decisão, estipulando que ela valesse a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvando as ações ajuizadas até a data do início do julgamento do mérito (05/02/21).

Impõe-se, assim, reconhecer que o tema é instigante, pelo debate profundo que suscitou no STF, e de inegável relevância prática. Em razão disso, buscar-se-á analisá-lo com a devida atenção, a fim de compreender os argumentos deduzidos pela vertente do Supremo que se sagrou vencedora no julgamento, bem como pela divergência.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA SELETIVIDADE E ESSENCIALIDADE

O princípio da seletividade ou a técnica de tributação da seletividade objetiva, de forma indireta, graduar a carga tributária do imposto de acordo com a capacidade contributiva dos consumidores, tendo em vista que consiste na previsão de alíquotas conforme a natureza ou a finalidade dos bens, produtos ou mercadorias.

Nas palavras de Leandro Paulsen, selecionar é distinguir, separar, escolher. A seletividade implica múltiplos tratamentos tributários, adequados a cada objeto.[1]

A seletividade exsurge expressamente na Constituição Federal para o IPI e para o ICMS nos seguintes termos:

DOS IMPOSTOS DA UNIÃO

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

(...)

IV produtos industrializados;

(...)

§ 3o O imposto previsto no inciso IV:

I será seletivo, em função da essencialidade do produto; (...)

DOS IMPOSTOS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre

(...)

II operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de

transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as

prestações se iniciem no exterior;

(...)

§ 2o O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

(...)

III poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços;

Em ambos os casos, observa-se que a seletividade se encontra vinculada à essencialidade, indicando que os referidos impostos podem ter alíquotas variadas em função dos próprios produtos, e não em função da base de cálculo, como ocorre na progressividade.[2]

A essencialidade do produto realmente constitui critério para diferenciação das alíquotas, que homenageia e concretiza o princípio da capacidade contributiva. Isso porque os produtos essenciais são consumidos por toda a população, enquanto os produtos supérfluos são consumidos apenas por aqueles que, já tendo satisfeito suas necessidades essenciais, dispõem de recursos adicionais para tanto.[3]

Segundo Fábio Canazaro, mercadorias e serviços essenciais, sob o ponto de vista jurídico, são aquelas cujos valores constitucionais denotam ser indispensáveis à promoção da liberdade, da segurança, do bem-estar, do desenvolvimento, da igualdade e da justiça ou seja, das finalidades constitucionalmente prescritas. Nessa toada, são as mercadorias e serviços destinados à proteção e à manutenção da dignidade humana, à erradicação da pobreza e da marginalização, à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados e à defesa do meio ambiente. Dessa forma, infere o referido autor que o legislador não é livre para identificar ou conceituar o que é e o que não é essencial como fator indicativo, visando à promoção da igualdade.[4]

Historicamente, o ICMS nunca foi um tributo seletivo, razão pela qual a Constituição de 1988, ao dispor sobre a competência dos Estados para instituir tal tributo, estabeleceu a facultatividade em instituírem-no de tal forma, diferentemente do previsto quanto ao IPI, o qual a Constituição preconiza que será seletivo. Assim, ao estabelecer que o ICMS poderá ser seletivo em razão da essencialidade, a Constituição Federal determina que os Estados podem, alternativamente: (a) instituir o ICMS com alíquota única, observando o histórico do tributo, ou (b) instituir o ICMS com alíquota variável, de forma seletiva. No entanto, em adotando a segunda opção, faz-se necessário graduar tal imposto com base na essencialidade da mercadoria ou do serviço que se está tributando.[5] 

Dessa forma, tem-se, majoritariamente na doutrina, que a aplicação da seletividade é facultativa aos Estados quando da instituição do ICMS, porém, uma vez adotada tal técnica de tributação, a fixação das alíquotas deve necessariamente observar a essencialidade das mercadorias e dos serviços tributados.

Nesse sentido, posicionou-se o Min. Dias Toffoli, em seu Voto-Vista, proferido no RE 714.139, julgado pela sistemática da repercussão geral (Tema 745), entendo que, uma vez adotada a seletividade no ICMS, o critério dessa seletividade deve ser o da essencialidade da mercadoria ou do serviço. Em poucas palavras, o que é facultativa é a adoção da seletividade no ICMS, e não o critério dessa seletividade. Corroborando o entendimento, vide lições de Leandro Paulsen, de Gustavo Fossati, de Hugo de Brito Machado e de Hugo de Brito Machado Segundo.

2. O PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE APLICADO AO ICMS SOBRE O FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA E OS SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES

De acordo com os marcos acima estabelecidos, no que concerne à caracterização da essencialidade de um determinado produto ou serviço, pode-se concluir, longe de qualquer dúvida, que o fornecimento de energia elétrica e os serviços de telecomunicação são de notória essencialidade para o ser humano, dada a sua imprescindibilidade para uma vida digna e para o desenvolvimento social e econômico da sociedade.

Sem energia elétrica, não é possível à sociedade produzir ou manter o comércio com bens e serviços à população, não é possível conservar grande parte dos alimentos, iluminar os lares e as ruas, garantir o acesso a diversos meios de comunicação, à informação e à instrução educacional.[6]

A seu turno, é notório que os serviços de telecomunicações passaram a integrar a cesta básica de mercadorias e serviços essenciais aos cidadãos, constituindo mecanismo de inclusão social, ativação profissional e integração ao debate público.[7]

Segundo o Min. Gilmar Mendes, em seu Voto-Vista, proferido no RE 714.139 (Tema 745 da Repercussão Geral), não é exagero afirmar que a dificuldade de acesso a determinados serviços de telecomunicações é causa e característica inequívoca do atraso e das desigualdades sociais que grassam grande parte da sociedade brasileira.

Sendo assim, a essencialidade da energia elétrica e dos serviços de telecomunicação é patente e inegável, não se tratando de ponto controvertido dentro da presente temática. O cerne da principal controvérsia, em verdade, reside na utilização da capacidade contributiva como critério para operacionalizar a igualdade nos tributos indiretos sobre o consumo, a partir da progressividade de alíquotas.

Levando em consideração a capacidade contributiva, além da essencialidade do bem em si, alguns Estados da federação estipulam alíquotas diferentes a depender do consumidor, do volume de energia consumido e/ou da destinação do bem.

A discussão reside na legitimidade de utilizar como critério, à luz do princípio da capacidade contributiva, a figura do contribuinte, além da essencialidade da mercadoria ou serviço, para a tributação do ICMS a partir de alíquotas progressivas e diferenciadas.

Próximo ao reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da repercussão geral da questão constitucional acerca da aplicação do princípio da seletividade ao ICMS com os desdobramentos ora comentados, o que se deu em junho de 2014, foi proferido acórdão pela Suprema Corte da relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, em que restou consignado que a capacidade tributária do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, exigindo que, mediante a aferição feita pelo método da comparação, não haja incidência de alíquotas exorbitantes em serviços essenciais.

Por oportuno, eis a ementa do referido julgado:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ICMS. SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA E DE TELECOMUNICAÇÕES. MAJORAÇÃO DE ALÍQUOTA. PRINCÍPIO DE SELETIVIDADE. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PELO ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I Não obstante a possibilidade de instituição de alíquotas diferenciadas, tem-se que a capacidade tributária do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, evitando-se, mediante a aferição feita pelo método da comparação, a incidência de alíquotas exorbitantes em serviços essenciais. II No caso em exame, o órgão especial do Tribunal de origem declarou a inconstitucionalidade da legislação estadual que fixou em 25% a alíquota sobre os serviços de energia elétrica e de telecomunicações serviços essenciais porque o legislador ordinário não teria observado os princípios da essencialidade e da seletividade, haja vista que estipulou alíquotas menores para produtos supérfluos. III Estabelecida essa premissa, somente a partir do reexame do método comparativo adotado e da interpretação da legislação ordinária, poder-se-ia chegar à conclusão em sentido contrário àquela adotada pelo Tribunal a quo. IV Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 634457 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 05/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-157 DIVULG 14-08-2014 PUBLIC 15-08-2014)

A despeito do citado julgamento, o tema estava longe de ser exaurido, havia necessidade de maiores debates e definição do posicionamento do STF acerca do alcance do art. 155, §2°, III, da CF/88, que prevê a aplicação do princípio da seletividade ao ICMS, notadamente no que concerne ao critério conformativo da aplicação desse princípio pelo legislador estadual. Em outras palavras, conforme consignou o Min. Gilmar Mendes em seu Voto-Vista, o cerne da questão é se o legislador está vinculado apenas à essencialidade na diferenciação das alíquotas, de modo que produtos tidos por essenciais em hipótese alguma podem ser onerados em patamares superiores à alíquota geral.[8]

3. ANÁLISE DO JULGAMENTO PELO STF DO TEMA 745 DA REPERCUSSÃO GERAL: ALCANCE DO ART. 155, §2°, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, QUE PREVÊ A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE AO ICMS

De início, faz-se mister tecer algumas considerações acerca do contexto fático que deu ensejo ao processo paradigma, em cujo julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática dos recursos repetitivos, foi fixada a tese referente ao Tema 745 da Repercussão Geral.

A discussão reside no fato de o Estado de Santa Catarina ter fixado alíquotas diferenciadas relativamente ao ICMS incidente sobre energia elétrica. No tocante à alíquota geral, foi estabelecido o percentual de 17%; para o consumo domiciliar de energia elétrica (até 150kW), bem como para a energia elétrica destinada ao produtor rural e cooperativas rurais redistribuidoras (observado o limite de 500kW), incide a alíquota de 12%; enquanto, no que tange às demais situações de consumo de energia elétrica, aplica-se a alíquota de 25%.

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O caso começou quando a empresa recorrente se insurgiu contra a alíquota de 25% do ICMS sobre serviços de energia elétrica e telecomunicações para consumidores de grande porte, sob o argumento de que esse percentual não respeitava os princípios constitucionais da seletividade e da essencialidade. A tese da recorrente era, em apertada síntese, de que seria desproporcional que a tributação de energia e telefonia fosse percentualmente superior à de mercadorias como cosméticos, armas, bebidas alcoólicas e fumo.

Pois bem. A questão controvertida no RE 714.139/SC, com repercussão geral reconhecida (Tema 745), consiste em definir o alcance da regra prevista no inciso III do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal, no que prevê a aplicação do princípio da seletividade ao ICMS, a partir do critério da essencialidade.

No referido recurso, foi fixada a tese, por maioria, no sentido de que, uma vez:

Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.

O Min. relator Marco Aurélio reconheceu a essencialidade dos serviços de telecomunicações e de energia elétrica, nos seguintes termos: 

() A utilidade social dos setores de energia elétrica e telecomunicação é revelada na Constituição Federal, em que foram alçados à condição de serviços públicos de competência da União artigo 21, incisos XI e XII, alínea b.

Na mesma esteira, a Lei nº 7.883/1989, na parte em que versadas as limitações ao exercício do direito de greve, incluiu-os como atividades essenciais. Confiram:

Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:

I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;

[...]

VII - telecomunicações;

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, mediante pesquisa nacional contínua por amostra de domicílios, revelou a presença de energia elétrica em 99,8% das residências. Quanto aos estabelecimentos industriais e comerciais, a importância do bem é auto-evidente, sem o qual inviabilizada a atividade. Na dicção de Hugo de Brito Machado Segundo, "sem energia não há vendas, prestação de serviços ou produção. Não se vive, apenas se sobrevive, e mal."

O relevo das telecomunicações não fica atrás. Levantamento da Agência Nacional de Telecomunicações Anatel sinaliza que 98,2% da população brasileira tem acesso à telefonia e à internet móvel. A pandemia covid-19 veio confirmar a pertinência do serviço, no que viabilizou a prestação de outras atividades essenciais, como saúde, educação e prestação jurisdicional.

Concluiu o Ministro Relator que a majoração das alíquotas de ICMS sobre energia elétrica e serviços de telecomunicações, por meio de lei estadual, em relação aos produtos em geral, implica desvirtuamento da técnica da seletividade, considerada a maior onerosidade sobre bens de primeira necessidade, não se compatibilizando com os fundamentos e objetivos contidos no texto constitucional, a teor dos artigos 1º e 3º, seja sob o ângulo da dignidade da pessoa humana, seja sob a óptica do desenvolvimento nacional.[9]

Ainda segundo o relator:

Levando em conta a calibragem das alíquotas instituídas pela norma local, impõe-se o reenquadramento jurisdicional da imposição tributária sobre a energia elétrica e os serviços de telecomunicação, fazendo incidir a alíquota geral, de 17%. Não se trata de anômala atuação legislativa do Judiciário. Ao contrário, o que se tem é glosa do excesso e, consequentemente, a recondução da carga tributária ao padrão geral, observadas as balizas fixadas pelo legislador comum.

Dessa forma, o STF declarou a inconstitucionalidade das previsões de alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.

O voto do relator foi seguido pelos Ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Rosa Weber e Luiz Fux.

Adentrando nos argumentos que compuseram o repertório da corrente vencedora no STF, cumpre ressaltar que, segundo o Min. Toffoli, em seu Voto-Vista, no qual acompanhou o relator, não se pode olvidar que o dimensionamento do ICMS, ainda que presente seu caráter seletivo, pode levar em conta diversos elementos, como: a qualidade intrínseca da mercadoria ou do serviço; o fim a que se presta um ou outro; seu preço; a capacidade econômica do consumidor final; as características sociais, econômicas e naturais do país e do estado instituidor do imposto; a função extrafiscal da tributação. A despeito disso, explica o Ministro que, mesmo considerando outros elementos, além da qualidade intrínseca da energia elétrica, inexiste razão para se submeter, como regra, a energia elétrica seja qual for seu consumidor ou mesmo o nível de consumo à alíquota de ICMS maior do que aquela incidente sobre as operações em geral, quando adotada a seletividade.

O Min. Toffoli concluiu seu raciocínio, aduzindo que, não obstante a lei catarinense tenha observado a eficácia positiva da seletividade na cobrança do ICMS sobre energia elétrica com aquela alíquota de 12%, nas situações acima especificadas, violou a eficácia negativa do mesmo preceito, ao estabelecer a incidência, como regra, do ICMS sobre energia elétrica com a elevada alíquota de 25%, a qual, aliás, onera os produtos supérfluos, pelo que teria havido ofensa ao conteúdo mínimo da seletividade.

O Min. Alexandre de Moraes abriu divergência, votando pelo parcial provimento do Recurso Extraordinário, apenas para afastar a alíquota de 25% incidente sobre os serviços de comunicação, aplicando-se a alíquota do ICMS prevista pelo Estado de Santa Catarina para as mercadorias e serviços em geral (art. 19, inciso I, da Lei 10.297/1996).

Ele propôs a fixação de uma tese em três partes: "I. Não ofende o princípio da seletividade/essencialidade previsto no artigo 155, parágrafo 2º, III, da Constituição Federal a adoção de alíquotas diferenciadas do ICMS incidente sobre energia elétrica, considerando, além da essencialidade do bem em si, o princípio da capacidade contributiva. II. O ente tributante pode aplicar alíquotas diferenciadas em razão da capacidade contributiva do consumidor, do volume de energia consumido e/ou da destinação do bem. III. A estipulação de alíquota majorada para os serviços de telecomunicação, sem adequada justificativa, ofende o princípio da seletividade do ICMS".

Na esteira do pensamento do Min. Gilmar Mendes, que acompanhou a divergência em seu Voto-Vista, a matéria concernente ao artigo 155, § 2º, inciso III, da Constituição Federal mostra-se intimamente relacionada aos fundamentos de equidade do sistema tributário, introduzindo na sistemática do ICMS a possibilidade de instituição de alíquotas variadas, com base no princípio da seletividade. Com efeito, ao oportunizar a incidência da seletividade no ICMS, vinculando-a à fixação de alíquotas em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços, o Constituinte não instituiu microssistema próprio a esse imposto, apartando-o das diretrizes gerais do sistema tributário.

Em outras palavras, explica o Min. Gilmar Mendes que o critério da essencialidade na aplicação do princípio da seletividade deve ser lido e interpretado à luz das normas gerais que regem o sistema tributário nacional e dos valores constitucionais positivados, especialmente os princípios da capacidade contributiva e da isonomia.

Para a divergência, nas palavras do Min. Gilmar Mendes, seria um contrassenso conferir à essencialidade o caráter restritivo que se pretende, de modo a dela extrair conclusões que eventualmente afastem a incidência do princípio da capacidade contributiva, outro fator potencializador da justiça fiscal. Isso porque a essencialidade, enquanto critério concretizador da isonomia material na tributação, não pode afastar as próprias premissas normativas de sua existência, especialmente o princípio da capacidade contributiva.

Ao interpretar o art. 145, § 1º, da Constituição Federal, segundo o qual sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte (...), argumenta o Min. Gilmar Mendes que o Supremo Tribunal Federal tem consolidado o entendimento de que o princípio da capacidade contributiva deve ser considerado na composição dos elementos de todos os impostos e mesmo de outros tributos.

Portanto, no entendimento do referido Ministro, a incidência do princípio da capacidade contributiva em todos os impostos impõe que, na aplicação do critério da essencialidade, sejam considerados outros fatores além daqueles atinentes à natureza do produto, ainda assim concretizadores da isonomia material e mesmo de outros valores constitucionais, em homenagem à norma básica da hermenêutica constitucional, consubstanciada no princípio da unidade da Constituição.

CONCLUSÃO

A partir de tudo que foi analisado no presente estudo, afigura-se patente que, para a corrente vencedora do STF no julgamento da Repercussão Geral, mesmo considerando outros elementos, além da essencialidade do serviço ou do produto, inexiste razão para se submeter, como regra, a energia elétrica e o serviço de telecomunicação seja qual for seu consumidor ou mesmo o nível de consumo à alíquota de ICMS maior do que aquela incidente sobre as operações em geral, quando adotada a seletividade, sob pena de violar a eficácia negativa do preceito constitucional em questão, ao estabelecer a mesma elevada alíquota que incide sobre produtos supérfluos para serviço e produto de primeira ordem de essencialidade, atentando, assim, contra o conteúdo mínimo da seletividade.

Por outro lado, a divergência se firmou no sentido de que não se extrai da norma constitucional em jogo a impossibilidade de alíquotas de determinado produto essencial variarem conforme seu uso e destinação, desde que a opção do legislador, no caso concreto, efetivamente materialize princípios gerais do sistema tributário nacional, - como a capacidade contributiva e a isonomia ou mesmo outros objetivos extrafiscais com assento constitucional.[10]

No entanto, observa-se que o objeto da divergência do julgamento se restringiu à discussão acerca da constitucionalidade da alíquota do ICMS apenas no que tange ao fornecimento de energia elétrica. Isso porque, como o Estado de Santa Catarina previu alíquota majorada de 25% para os serviços de telecomunicação, sem implementar qualquer gradação ou fundamentar a opção legislativa em outras normas constitucionais, houve unanimidade na Suprema Corte quanto à inconstitucionalidade dessa previsão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 8. ed. São Paulo: Editora Método, 2014.

CANAZARO, Fábio. Essencialidade tributária: igualdade, capacidade contributiva e extrafiscalidade na tributação sobre o consumo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

GOES, Severino. STF favorece estados ao modular decisão que proibiu alíquota elevada de ICMS. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-dez-12/modular-decisao-proibiu-aliquota-elevada-icms-favorece-estado>. Acesso em: 17/03/2022.

GUIMARÃES, Bruno A. François. A seletividade do ICMS sobre o fornecimento de energia elétrica e sua repetição de indébito. Revista Direito Tributário Atual, n° 37 2017. Disponível em: <http:// https://ibdt.org.br/RDTA/a-seletividade-do-icms-sobre-o-fornecimento-de-energia-eletrica-e-sua-repeticao-de-indebito/>. Acesso em: 17/03/2022.

NETO, João de Souza Alho. Seletividade em função da essencialidade: ICM e energia elétrica, n° 39 2018. Disponível em: https://ibdt.org.br/RDTA/seletividade-em-funcao-da-essencialidade-icms-e-energia-eletrica/. Acesso em: 17/03/2022.

PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.


  1. PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 188.
  2. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 777.
  3. PAULSEN, Op. cit., p. 100.
  4. CANAZARO, Fábio. Essencialidade tributária: igualdade, capacidade contributiva e extrafiscalidade na tributação sobre o consumo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p.154.
  5. GUIMARÃES, Bruno A. François. A seletividade do ICMS sobre o fornecimento de energia elétrica e sua repetição de indébito. Revista Direito Tributário Atual, n° 37 2017. Disponível em: <http:// https://ibdt.org.br/RDTA/a-seletividade-do-icms-sobre-o-fornecimento-de-energia-eletrica-e-sua-repeticao-de-indebito/>. Acesso em: 17/03/2022.
  6. GUIMARÃES, Op. cit.
  7. GUIMARÃES, Op. cit.
  8. Voto-Vista do Min. Gilmar Mendes - RE 714.139, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO, Rel. p/ Acórdão Ministro DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-049 DIVULG 14-03-2022 PUBLIC 15-03-2022.
  9. Voto do Min. Marco Aurélio - RE 714.139, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO, Rel. p/ Acórdão Ministro DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-049 DIVULG 14-03-2022 PUBLIC 15-03-2022.
  10. Voto-Vista do Min. Gilmar Mendes, Op. cit.
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Sobre o autor
Jorge Américo Pereira de Lira

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco – TJPE. Presidente da 1ª Câmara de Direito Público do TJPE. Professor da Escola Judicial de Pernambuco (ESMAPE). Ex-Promotor de Justiça do Estado de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIRA, Jorge Américo Pereira. A seletividade do ICMS sobre o fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação a partir do critério da essencialidade e o julgamento pelo STF do tema 745 da repercussão geral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6872, 25 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97265. Acesso em: 26 abr. 2024.

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