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O Supremo deve declarar inconstitucional o decreto que concedeu graça ao deputado Daniel Silveira?

11/05/2022 às 14:55
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Querendo, o Parlamento poderá impor a perda do mandato do deputado Daniel Silveira, ainda que mediante a declaração de comportamento incompatível com o decoro parlamentar, sanção que poderá se somar à inafastável inelegibilidade do condenado, não expurgável pela concessão da graça pelo Presidente.

Escrevo este texto na manhã do dia 22.04.2022. Cumpre registrar que as últimas horas, desde a noite passada, têm sido marcadas por visível efervescência política. O mais expressivo dos motivos: a concessão da graça constitucional em favor do deputado Daniel Silveira, em decreto assinado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, no dia imediatamente posterior à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que condenou o parlamentar a oito anos e nove meses de prisão, em regime inicial fechado, pelo cometimento dos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito (art. 18 da Lei n.º 7.170, de 14 de dezembro de 1983) e coação no curso do processo (art. 344 do Código Penal).

Embora o decreto presidencial já tenha sido publicado no Diário Oficial da União, impõe-se a seguinte indagação: é juridicamente admissível o controle de constitucionalidade ao decreto que concedeu graça ao deputado Daniel Silveira? A seguir, apresento breves reflexões que tentam contribuir com a construção de raciocínios capazes de responder a essa questão.

Demarco, desde logo, que o Código Penal reputa a natureza jurídica da graça enquanto causa de extinção da punibilidade (CP, art. 107, II). Na doutrina nacional, é lugar comum encontrar lições de que a graça é individual e solicitada, enquanto o indulto é coletivo e espontâneo, como regra (LIMA, 2020, p. 404). Em sua obra, nossos ilustres professores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar parecem concordar com a premissa de que a graça seria equivalente a "indulto individual" (2017, p. 1.750). Por sua vez, a graça ou indulto individual, como prefiram , é prerrogativa do chefe de Poder Executivo, delegável a seus ministros (CFRB/88, art. 84, XII, parágrafo único). Embora não signifique arbítrio estatal, por óbvio, uma vez que o Estado Democrático de Direito não acoberta absolutismos, cuida-se de ato marcado por ampla discricionaridade, para se dizer o mínimo.

A possibilidade jurídica de concessão ao benefício da graça é restringida pelo enunciado normativo do art. 5º, XLIII, da Constituição Federal 1988, no qual se elenca hipóteses delitivas que lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, quais sejam, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Lado outro, o inciso vizinho estabelece que constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (CFRB/88, art. 5º, XLIV), fazendo-se depreender que, para o legislador constituinte originário, prima facie, atentados dessa natureza são suscetíveis de graça, eis que, deliberadamente, excluiu-se a restrição anteriormente mencionada para outras hipóteses delitivas.

Assim como no corpus constitucional, no sistema infraconstitucional, não se encontra norma jurídica capaz de inviabilizar a concessão da graça no presente caso. A título de exemplo, a Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, ao dispor sobre os crimes hediondos, não elenca nenhum dos dois crimes pelos quais o deputado Daniel Silveira foi condenado. Pessoas condenadas pelo cometimento do crime de ameaça ao Estado Democrático de Direito (art. 18 da Lei n.º 7.170, de 14 de dezembro de 1983) e/ou pelo crime de coação no curso do processo (art. 344 do Código Penal) podem, evidentemente, serem beneficiadas pela graça.

No julgamento da ADI 5874, restou firmado o entendimento quanto à possibilidade de se analisar somente a constitucionalidade da concessão do indulto e não a questão meritória (conveniência e oportunidade da sua concessão). Afirma-se que o presidente da República poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal. Reafirmo, pois, a compreensão de que a concessão do indulto individual foi levada a efeito por autoridade constitucionalmente competente e não encontra impedimento legal.

Quanto aos efeitos do indulto, estabelece a súmula n.º 631 do STJ que "O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais". Citado no julgamento da própria ADI 5874, Pontes de Miranda também ensinou que o indultado é um delinquente perdoado, mas continua sendo delinquente para todos os outros efeitos da condenação (PONTES DE MIRANDA, 1970, p. 118-119). Depreende-se que o indulto, coletivo ou individual, extingue a possibilidade de punir (a punibilidade), mas não é hábil a inviabilizar efeitos outros (cíveis e eleitorais, por exemplo) que decorram da decisão penal condenatória.

Aplicável, por analogia (permitida para a legislação processual penal), a primeira parte do art. 192 da Lei de Execuções Penais (LEP): "concedido o indulto e anexada aos autos cópia do decreto, o Juiz declarará extinta a pena". Inaplicável, lado outro, argumento que faz interpretação extensiva em prejuízo do réu para obstaculizar a aplicação de causa extintiva da punibilidade prevista no art. 107, II, do Código Penal brasileiro pelo fato exclusivo de não ter se aguardado o trânsito em julgado da decisão penal condenatória.

Por fim, deve ser enfrentado o enquadramento do decreto enquanto ato administrativo, a sustentar um vício quanto aos motivos determinantes. Ocorre que, a considerar o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 379), o decreto que concede indulto espelha o exercício de função puramente política, classificando-se enquanto ato político ou de governo. Não há exercício de função administrativa. Nesse aspecto, embora possa ser suscitada divergência sobre a classificação indicada, enquadrando-se o ato da concessão da graça enquanto ato administrativo, no caminho de se reconhecer desvio de finalidade do decreto que beneficiou Daniel Silveira, acredita-se que a Corte Constitucional brasileira, ao adotar essa compreensão, estaria a enveredar por uma linha muito tênue entre o jurídico e o político, capaz de tumultuar, ainda mais, o ambiente político nacional, o que, à vista do contexto histórico que testemunhamos, não seria a decisão pragmaticamente mais adequada.

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É, sim, possível, o controle jurisdicional sobre o decreto presidencial. Entretanto, entregar ao STF o papel de avalizar ou de expurgar o conteúdo de ato político do presidente da República é, antes de tudo, o aprofundamento de uma crise institucional sem termo final definido. Entendo, pois, que o exercício da autocontenção judicial se torna imperioso neste momento.

Fica, por óbvio, a lição civilizatória. O poder constituinte derivado reformador, isto é, o Parlamento, poderá atuar de modo a reformar a Constituição, estabelecendo hipóteses outras de não cabimento de indulto (individual ou coletivo). Querendo, também poderá impor a perda do mandato do deputado Daniel Silveira, ainda que mediante a declaração de comportamento incompatível com o decoro parlamentar (CRFB, art. 55, II), sanção que poderá se somar à inafastável inelegibilidade do condenado, não expurgável pela concessão da graça (art. 1º, I, "e", da Lei Complementar n.º 64, de 1990).

Deve-se ponderar que o Supremo Tribunal Federal cumpriu com o seu papel ao condenar o parlamentar, deixando-se claro que as imunidades parlamentares não fornecem autorizativo para delinquir e/ou para atacar as instituições democráticas. Ocorre que, com a pressa que não teve para vacinar o seu povo e salvar milhares vidas em meio à pandemia ainda em curso, Jair Messias Bolsonaro praticou ato político no exercício das suas prerrogativas igualmente políticas, e, para se fazer justiça, deverá ser julgado politicamente.

Inexoravelmente, enquanto sociedade organizada, devemos aprender com este episódio e compreender que, no que concerne aos desafios da vida humana, inclusive àqueles da nossa sofrida experiência de consolidação da democracia, nem todos os imbróglios poderão ser equacionados por juízes. Participação social efetiva e permanente e a noção de uma cabeça, um voto se farão, sempre, as mais hábeis ferramentas para a transformação social.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 10 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 5874. Relator: Alexandre de Moraes. Acórdão. Julgado em: 09.05.2019, DJ 04.11.2020, Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/obterInteiroTeor.asp?idDocumento=754291421 >. Acesso em: 22 Abr. 2022.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8 ed. Salvador: JusPodivm, 2020.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967, Tomo III (arts. 73-128), 3ª ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970, p. 118-119.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 12 ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

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Sobre o autor
José Erick Gomes da Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (FDA/Ufal). Aprovado no XXXI Exame de Ordem. Pós-graduando em Direito Constitucional. Assessor de Juiz no TJ/AL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Erick Gomes. O Supremo deve declarar inconstitucional o decreto que concedeu graça ao deputado Daniel Silveira?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6888, 11 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97455. Acesso em: 9 nov. 2024.

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