1.INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira clama pelo fim da impunidade. Diante do crime bárbaro cometido recentemente contra o garoto João Hélio, no Estado do Rio de Janeiro, vê-se um Brasil mobilizado em torno do tema da redução da maioridade penal. Alguns congressistas defendem a alteração da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, tentando dar uma resposta rápida aos cidadãos, enquanto outros entendem não ser o momento propício para tal medida, por receio de que a emoção vença a razão.
Este trabalho, no entanto, visa à discussão da constitucionalidade ou não da "redução da maioridade penal", evitando-se adentrar na seara da oportunidade e conveniência dessa alteração normativa.
Alguns juristas afirmam que uma possível Emenda que venha a alterar o art. 228 da Constituição da República, "reduzindo a maioridade penal" ali prevista, seria inconstitucional, pois ali se trata de um direito individual, portanto, cláusula pétrea.
2.ESPÉCIES DE NORMAS CONSTITUCIONAIS QUANTO AO CONTEÚDO
Analisando-se o conteúdo da norma constitucional, pode-se classificá-la em material ou formal.
As normas materialmente constitucionais são aquelas essenciais à constituição do Estado em si, imprescindíveis para a concretização do Estado de Direito, quais sejam, as que tratam da estrutura do Estado, da Organização dos seus Poderes e dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. São normas de conteúdo essencialmente constitucional.
Já as normas formalmente constitucionais são aquelas que constam do texto constitucional apenas por opção do constituinte, visto que poderiam estar dispostas na legislação infraconstitucional, isto é, poderiam ser inseridas no ordenamento jurídico por meio de lei ordinária ou complementar. São constitucionais apenas pelo fato de estarem contidas na Constituição.
Vale lembrar que a Constituição da República de 1988 é classificada pela doutrina como formal, justamente por eleger como critério apenas o processo de formação, e não o conteúdo da norma. Mas já há posicionamentos modernos no sentido de considerá-la mista, tendo em vista o §3º do seu art. 5º, acrescentado pela Emenda Constitucional 45/2004, que elege os critérios da matéria direitos humanos e do processo legislativo para considerar a norma como inserida no texto constitucional, portanto, levando-se em conta também o conteúdo da norma, e não mais apenas a sua forma.
Sendo assim, a grande maioria da doutrina defende que a maioridade penal prevista no art. 228 da Constituição Federal seria uma norma apenas formalmente constitucional, que ali se encontra simplesmente por opção do constituinte originário, mas que deveria constar somente nos textos infraconstitucionais.
3.O ART. 228 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
3.1 A Localização no Texto Constitucional
Afirma a clássica doutrina que, por opção do constituinte, a maioridade penal foi inserida no Capítulo VII da Constituição, e não no rol dos direitos e garantias individuais (art. 5º), o que a descaracteriza como garantia de conteúdo (ou aspecto) formal. Assim, entende não ser a maioridade penal uma garantia individual, por duas razões: a uma, como dito acima, porque não é de conteúdo formal, visto que não figura no rol das garantias individuais; a duas, porque não é de conteúdo material, por não tratar de direito supra-estatal.
Apesar disso, sabe-se que hoje em dia é pacífico o entendimento de que há direitos e garantias individuais deslocados do rol do art. 5º da Magna Carta (vide ADIn 939-7/DF), garantias essas surgidas com a evolução social ou até mesmo por questão de melhor localização quanto à matéria relacionada, como é o caso do instituto da maioridade penal, que está localizado no capítulo referente à criança e ao adolescente. Destarte, cai por terra, de plano, o argumento relacionado ao aspecto formal. Quanto ao sentido material, há que se fazer uma distinção entre o termo inicial da maioridade penal e o próprio instituto da maioridade penal, como veremos adiante.
3.2 Adaptação às Novas Exigências Sociais
Modernamente, quanto às técnicas legislativas, já se defende a não utilização de termos relacionados a limites temporais (p. ex., idade) no texto constitucional, exceto quando extremamente imprescindível, objetivando-se evitar o engessamento normativo perante a evolução social.
Percebe-se, hoje, que menores de 18 anos, geralmente maiores de 16, praticam toda sorte de infrações penais, inclusive com os mais variados requintes de crueldade, demonstrando total capacidade de compreenderem o caráter ilícito de suas condutas.
Diante dessa evolução, seria tarefa do legislador infraconstitucional adaptar o termo inicial para a maioridade penal aos dias atuais, sem necessidade de uma alteração constitucional. Sendo assim, fica evidente que o termo inicial para a maioridade penal – 18 anos de idade – não pode engessar o sistema da responsabilização penal no País, pois é tarefa do Direito acompanhar a evolução social, de modo que não é concebível que se empreste a esse termo inicial de 18 anos o manto da cláusula pétrea.
3.3 Instituto da Maioridade Penal x Termo Inicial da Maioridade Penal
Deve-se atentar para a grande distinção entre o instituto da maioridade penal e o seu termo inicial. O art. 228 da Constituição Federal trata de ambos os aspectos, o que parece confundir a doutrina quanto à possibilidade ou não de alteração do texto constitucional.
Inicialmente, mister entender que a maioridade penal é norma formal e materialmente constitucional. Formalmente constitucional pelo simples fato de constar do texto da Constituição. E materialmente constitucional por tratar de direito supra-estatal, visto que assim deve ser caracterizada a responsabilização penal em qualquer Estado de Direito.
Outrossim, é inconcebível que não se dê ao instituto da maioridade penal o caráter de garantia fundamental individual. Isso seria dar chance ao Estado para a responsabilização penal de toda sorte, com grande mitigação da aferição da capacidade de responsabilidade criminal. Portanto, é indiscutível que o instituto da maioridade penal é sim uma garantia constitucional dada em abstrato a todo e qualquer cidadão contra a fúria do poder estatal. Isso é bastante diferente de se emprestar tal caráter protetivo da garantia individual – cláusula pétrea - ao termo inicial para a maioridade penal, porque assim estar-se-ia engessando o nosso ordenamento jurídico frente a nossa própria evolução social.
As cláusulas pétreas traduzem a idéia de perpetuidade, como bem destacou o Min. Gilmar Mendes, na ADPF 33-MC (DJ de 06/08/2004), onde afirmou serem elas "garantias da eternidade". Essa perpetuidade – garantia de eternidade – deve ser estendida ao instituto da maioridade penal, mas não ao seu termo inicial. Portanto, a garantia fundamental individual da maioridade penal, que é sim cláusula pétrea, porém deslocada do art. 5º da Constituição Federal – assim como tantas outras já reconhecidas pelo STF (p. ex.: art. 150, III, "b", da CF, na ADIn 939-7/DF), deve ser eternizada, petrificada, para sempre garantir a aferição da mínima capacidade de responsabilização penal. Distingue-se, contudo, do seu termo inicial (atualmente 18 anos), que não só pode como deve atender à evolução da sociedade e do próprio Direito.
Corrobora tal entendimento o art. 50 do nosso Código Penal Militar, in verbis: O menor de dezoito anos é inimputável, salvo se, já tendo completado dezesseis anos, revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com este entendimento. Neste caso, a pena aplicável é diminuída de um terço até a metade. Vê-se, aqui, que a maioridade penal está sempre garantida, mas não o seu termo inicial, que depende dos outros elementos da culpabilidade.
4. INTANGIBILIDADE DAS CLÁUSULAS PÉTREAS
Identificado o art. 228 da Constituição da República como cláusula pétrea e feita a distinção entre o instituto da maioridade penal e seu termo inicial, resta, ainda, questionar a essência da garantia individual da maioridade penal.
Como visto, o art. 228 da Magna Carta não só traz a garantia como se dispõe a prever o seu termo (final, do ponto de vista da garantia em si; e inicial, para a responsabilização penal). Diante disso, deve o intérprete buscar a essência do instituto, para que possa resolver o problema da constitucionalidade ou não da redução (do termo inicial) da maioridade penal.
O Supremo Tribunal Federal, na ADIn-MC 2024/DF, tendo como relator o Min. Sepúlveda Pertence, foi sensível na correta interpretação em se tratando de cláusula pétrea, quando afirmou que "as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, §4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege".
Pois bem. O art. 228 da Constituição Federal não é intangível. Indaga-se então: e qual é o seu núcleo essencial? A resposta pressupõe a distinção aqui já traçada entre o instituto da maioridade penal e o seu termo inicial.
A essência dessa garantia constitucional reside na preservação ad aeternum de uma aferição razoável da mínima capacidade para o cidadão ser penalmente responsabilizado, ou seja, apenas no instituto da maioridade penal. À margem desse núcleo essencial está o termo inicial para essa responsabilização, pois este deve ser alterado sempre que a evolução social assim o exigir, portanto, não abrangido pelo manto da cláusula pétrea.
5. CONCLUSÃO
Mais uma vez alertando da restrição deste trabalho à questão da constitucionalidade da "redução da maioridade penal", sem adentrar na seara da sua oportunidade ou conveniência, passemos aos pontos conclusivos.
Como exposto, conclui-se que a redução do termo inicial da maioridade penal é constitucional, devendo, para tanto, os congressistas não só modificarem a legislação infraconstitucional, como também a própria Constituição da República.
Não se pode olvidar que a garantia da maioridade penal não pode ser suprimida da Magna Carta, pois é cláusula pétrea, diferentemente do seu termo inicial. Assim, vale destacar que esse termo inicial é que não pode ser engessado, petrificado, devendo variar de acordo com os reclames dos tempos modernos e a evolução do Direito, enquanto que a maioridade penal em si, na sua essência, deve permanecer intacta, sempre presente na ordem jurídica.
Sendo assim, interessante seria prever apenas a garantia individual ao instituto da maioridade penal, deixando a cargo da lei infraconstitucional a razoável aferição do seu termo inicial, a exemplo do que fez, mutatis mutandis, o inciso XXXVIII do art. 5º da Constituição com o instituto do júri.
E, logo advertindo, tal previsão não seria inócua, pois seria inconstitucional qualquer fixação desse termo inicial, pelo legislador, que não respeitasse o princípio da razoabilidade, o que ocorreria também se o novo Código Civil, por exemplo, previsse a capacidade para os atos da vida civil aos cinco anos de idade.
Destarte, oportuna e conveniente ou não, a redução do termo inicial da maioridade penal de 18 para 16 ou 14 anos seria plenamente constitucional.