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Usucapião de imóvel hipotecado sob a ótica do novo Código Civil

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25/04/2007 às 00:00
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5 Situações especiais

Adotando o princípio da retroatividade da declaração da usucapião, faz-se pertinente analisar algumas situações comumente verificadas na prática, envolvendo usucapião e contratos habitacionais, de modo a verificar as suas implicações.

5.1 O cessionário de contrato de mútuo com pacto adjeto de hipoteca

Em boa parte dos casos que tratam de usucapião de imóvel hipotecado, vêem-se possuidores que, ao requerer a sua declaração de domínio, o fazem na qualidade de cessionários de contratos de mútuo garantidos por hipoteca sobre o imóvel a ser usucapido. No mais das vezes, trata-se de cessão feita por instrumento particular, sem a anuência do agente financeiro, através dos chamados contratos "de gaveta".

Sobre esse aspecto, é de se ressaltar que a Jurisprudência tem reconhecido a legitimidade desses cessionários no tocante à quitação do imóvel, não lhes sendo, contudo, permitido discutir cláusulas contratuais, vez que não foram partes da avença original [10]. No mesmo sentido, algumas leis têm possibilitado em alguns casos a regularização dessas transferências, de modo a não deixar desamparado o cessionário de contrato habitacional, como, por exemplo, a Lei 10.150, de 21/12/2000.

No entanto, o fato mais relevante em relação à usucapião é destacar que a posse do cessionário terá, via de regra, as mesmas características da posse do cedente. O disposto nos arts. 1.206 e 1.207 do CCB/02 permite, por analogia, chegar-se a tal conclusão:

Art. 1.206. A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres.

Art. 1.207. O sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor; e ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais.

Assim, ainda que a cessão contratual propriamente dita não tenha validade, vale a cessão da posse, que se mantém, de fato, com a mesma natureza. Como ressaltado supra, a posse é fato, e, como tal, não se descaracteriza por eventual nulidade do título que a fundamenta. Refira-se, ainda, que a posse do cedente se dá como uma emanação da propriedade, visto que ele é o dono do imóvel, não obstante o gravame.

Assim, o adquirente adquire a posse cum animo domini, com a consciência de que está adquirindo a coisa como proprietário, ainda que o seu título não seja hábil a transferir-lhe o domínio, vez que lhe falta requisito essencial de validade e eficácia. No entanto, no momento em que é cessionário do contrato de mútuo garantido pela hipoteca, passa à condição de devedor da obrigação principal, igualmente ciente do gravame que pende sobre a coisa.

Dessa forma, não haverá qualquer óbice à declaração de usucapião, vez que a posse cum animo domini é decorrente da própria natureza da alienação operada. No entanto, ainda que se altere a titularidade do bem, permanecerá a hipoteca, visto que inscrita anteriormente à posse do adquirente, podendo o credor hipotecário excutir a coisa das mãos do usucapiente/cessionário.

No caso de reconhecimento da usucapião, poderá inclusive haver o vencimento antecipado da obrigação garantida, desde que convencionada, por analogia ao disposto no Art. 1.475, § único do CCB/02, que prevê a possibilidade de convencionar o vencimento antecipado da dívida hipotecária em caso de alienação do bem com ela gravado, conforme já referido.

5.2 Cessionário de promessa de compra e venda

Diversa, contudo, será a situação do possuidor que tenha obtido a posse mediante cessão de contrato de promessa de compra e venda, visto que a posse lhe foi transmitida não com base no domínio, mas com base em expectativa de sê-lo, mediante o adimplemento total do preço do imóvel. O promitente comprador jamais foi dono da coisa, sendo titular, apenas, de direito real à aquisição da coisa na hipótese do art. 1.417 do CCB/02, desde que registrada a avença. É de se ressaltar que o novo CCB inovou nessa matéria, criando verdadeira nova espécie de direito real (Art. 1225, VII).

Dessa forma, ao ser cessionário da posse do promitente comprador, o possuidor tem plena consciência de que não é dono da coisa, podendo sê-lo, contudo, caso totalize o pagamento da obrigação pendente ou se implemente outra qualquer condição ou termo. Nesse caso, terá ele direito a exigir do promitente vendedor a outorga de escritura definitiva, ou requerer judicialmente a adjudicação da coisa (art. 1418).

Por essa razão, enquanto exercer a posse na qualidade de cessionário de contrato de promessa de compra e venda, falta ao possuidor o animus domini, não podendo pretender a usucapião do bem possuído. Desse modo, em havendo eventual inadimplemento de obrigação pactuada, poderá o promitente vendedor pleitear a resolução do contrato, bem como a reintegração na posse do imóvel, descabendo por completo a alegação de usucapião por meio de exceção.

Ressalte-se, contudo, que se o promitente comprador aliena o bem como se seu fosse, opera-se uma típica venda a non domino, não havendo razão para desconsiderar eventual animus domini do terceiro aquirente, vez que sua posse, ainda que por dolo do alienante, é adquirida com a crença de que emana da propriedade adquirida. Neste caso, poderá haver por parte desse possuidor a usucapião, preenchidas as hipóteses legais, mas não lhe assistirão quaisquer das prerrogativas que assistem ao promitente comprador.

5.3 Usucapião em relação à arrematação e à adjudicação

Como visto, a hipoteca é um gravame que pende sobre o imóvel, via de regra, até que desapareça a obrigação principal ou até que ocorra a sua perempção no prazo legal, sem renovação. Nesse aspecto, é de se repisar que não cabe ao devedor usucapir a própria hipoteca, vez que é direito real imprescritível para essa finalidade, não lhe cabendo, igualmente, pretender usucapir a própria coisa como forma de livrar-se do ônus, porque ela, no mais das vezes, já é sua.

No entanto, no momento em que a hipoteca é levada a cabo, tendo como última conseqüência a arrematação ou a adjudicação do bem, transmuda-se a situação. Antes, o titular do imóvel hipotecado exercia a posse como uma decorrência do domínio; agora, não sendo mais o dono, detém-na na qualidade de esbulhador, nascendo para o novo proprietário a rei vindicatio, o poder de imitir-se na posse da coisa arrematada ou adjudicada, mediante ação reivindicatória.

Dessa forma, um outro efeito correlato da arrematação ou adjudicação é a possibilidade de, transferida a titularidade da coisa, dar início ao prazo da prescrição aquisitiva em favor do antigo proprietário expropriado. Em realidade, o antigo proprietário expropriado, ou seu sucessor na posse, passam à qualidade de meros ocupantes do imóvel, faltando-lhes, em princípio, requisito para a usucapião.

No entanto, ainda que tenha ele sofrido a desapropriação forçada pela execução, poderá, em determinadas circunstâncias, manter o animus domini, operando-se a usucapião em desfavor do arrematante/adjudicante. É claro que não poderá alegar em seu favor justo título ou boa-fé, podendo-se valer exclusivamente das hipóteses legais de usucapião que não contiverem tais requisitos, incluídas aí as modalidades de usucapião especial e extraordinário.

No caso em questão, é de se frisar que não penderá sobre o bem nenhum resquício da hipoteca anteriormente gravada, visto que, com a arrematação ou adjudicação, operou-se a sua extinção. Caso o possuidor da coisa no momento da execução hipotecária não seja o original prestador da garantia, tal situação não se altera, uma vez que, caso ele venha a usucapir a coisa, não subsistirá o ônus, visto que extinto.

Por essa razão, é altamente relevante que o credor busque, quando do procedimento de execução hipotecária, a intimação de eventual possuidor do imóvel, mesmo que já se tenha consumado a usucapião. Isso porque, em sendo o imóvel arrematado ou adjudicado sem qualquer intimação, poderá esse possuidor requerer, no dia seguinte, o reconhecimento de domínio, caso preencha os requisitos, tornando-se proprietário do bem livre de qualquer ônus.

Se o Art. 698 do CPC impõe a necessidade de intimação do credor hipotecário no caso de praça do imóvel por terceiros, pelos mesmos fundamentos se mostra salutar a intimação do possuidor da coisa. Isso permitirá que este possa manejar eventuais embargos de terceiro no prazo do art. 1.048 do CPC, caso entenda que se tenha consumado a usucapião, sendo plenamente legitimado para tanto, conforme vem reconhecendo a Jurisprudência do STJ [11]. Se o possuidor não tiver ainda consumado o prazo para a usucapião, a sua intimação em sede de execução cumprirá a finalidade de interromper tal prazo, dando-lhe ciência inequívoca da titularidade do bem e desqualificando a sua posse.

Na hipótese se serem manejados embargos de terceiro sob a alegação de usucapião, neles haverá a discussão a respeito da prevalência da usucapião ou da arrematação, observando-se a data de início da posse ad usucapionem, a data de inscrição do gravame e o princípio da retroatividade, conforme já referido. Caso não sejam eles manejados tempestivamente, não obstante a intimação, ter-se-á como perfeita a arrematação, sem qualquer óbice ao seu registro e às medidas tendentes à imissão na posse do novo proprietário. Ressalve-se que poderá o possuidor discutir a questão em ação ordinária [12], mas essa, via de regra, não suspenderá o curso da execução hipotecária.

Quanto à questão da imissão de posse do arrematante/adjudicante, a Lei 5.741/71, que trata de execução hipotecária de dívidas vinculadas ao Sistema Financeiro da Habitação, prevê, no art. 4º, § 1º, a expedição de mandado de desocupação caso o imóvel hipotecado esteja ocupado por terceiros. Tal procedimento, diga-se, é amplamente reconhecido pela Jurisprudência do STJ, que não vislumbra afronta a garantias processuais dos terceiros [13]. No entanto, como referido, tal prerrogativa não afasta a conveniência da intimação prévia do possuidor do imóvel.


6 Conclusões

A partir do que foi exposto, podem ser consolidadas as seguintes conclusões:

(a) A hipoteca, uma vez registrada, é direito real de garantia que se reveste de todas as características inerentes a tal categoria, especialmente a oponibilidade erga omnes e o direito de seqüela, que permite excutir a coisa gravada, inclusive nas mãos de terceiros adquirentes.

(b) Em razão da modificação dos prazos prescricionais no novo Código Civil, tornou-se inócuo elencar a prescrição como causa de extinção da hipoteca, vez que as ações que tutelam as pretensões reais jamais terão prazos prescricionais menores do que as pessoais.

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(c) A usucapião é meio originário de aquisição da propriedade com efeito duplo: de um lado, a prescrição age como forma geradora de direitos em favor do usucapiente; de outro, como conseqüência, tem-se a extinção do direito do antigo proprietário em face de sua inércia.

(d) A usucapião, em concretizando seu suporte fático, é fato jurídico que se consuma ipso iure, independente de declaração judicial. Esta, quando for requerida, tem apenas o efeito de dar-lhe publicidade e permitir o registro da propriedade adquirida, facilitando sua disposição. Por isso, a sentença que a declara tem efeitos preponderantemente declaratórios e ex tunc, retroagindo para o momento inicial da posse ad usucapionem.

(e) A existência de hipoteca sobre determinado bem imóvel não tem o efeito de impedir eventual incidência de usucapião, desde que preenchidos os requisitos legais, visto que qualquer gravame que conste do registro do imóvel não altera, por si só, a qualidade da posse do usucapiente.

(f) Pelo princípio da retroatividade, se no momento de inscrição da hipoteca já estava em curso o lapso temporal para a usucapião, a sua consumação tornará extinta a garantia. Caso a hipoteca tenha sido inscrita anteriormente ao início da posse, manter-se-á o gravame, não obstante a declaração de usucapião.

(g) É possível ao cessionário de contrato de mútuo usucapir o bem sobre o qual pende hipoteca, mantendo-se, contudo, o gravame, podendo inclusive haver o vencimento antecipado da obrigação garantida, desde que convencionada, por analogia ao disposto no Art. 1.475, § único do CCB/02.

(h) O promitente comprador ou eventual cessionário de promessa de compra e venda não possuem animus domini capaz de ensejar a declaração de usucapião, detendo, apenas, direito real à aquisição da coisa, desde que adimplida a obrigação constante da avença (condição) ou ocorrido eventual termo nela previsto.

(i) Impõe-se, na execução hipotecária, a intimação de eventual terceiro possuidor do imóvel, como forma de evitar posterior declaração de usucapião em seu favor que venha a se sobrepor à arrematação ou à adjudicação, visto que estas são causas de extinção da hipoteca.


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Notas

01 É possível, no entanto, a sua estipulação por instrumento particular, nos casos de contratos vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação, na forma do art. 61, § 5º, da Lei nº 4.380/64, com as alterações da Lei 5.049/66.

02

"Em sendo o contrato de hipoteca um pacto acessório extingue-se quando prescreve a obrigação principal." (Apelação Cível Nº 70003263993, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 23/06/2005, Publ. 01/07/2005)

03 Na redação original do CCB/02 constavam 20 anos, tendo sido alterado para 30 por força da lei 10.931/2004. Dessa forma, buscando harmonizar os artigos em questão, por "renovada", deve-se entender "prorrogada" a hipoteca até o prazo de 30 anos. A efetiva "renovação" só será necessária após esse prazo.

04 Embora o Novo Código tenha vedado a instituição de novas enfiteuses, não há qualquer óbice à usucapião sobre as ainda existentes.

05 Para Pontes de Miranda o título nulo não pode ser considerado como justo título, mas apenas o anulável (1956, v. XI p. 140).

06 Cf. NASCIMENTO ( 1984, p. 102). No mesmo sentido: "A prescrição ordinária requer a posse titulada e a boa fé, não só ao se iniciar a prescrição, mas em todo o decurso do tempo". (STF, RF 119, 117, j. em 2/01/1948)

07 Art 156 - A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras pública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados. (...) § 3º - Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.

08 Consigne-se, contudo, o pensamento de Wagner Inacio Freitas Dias, que defende, com base na função social da propriedade, a possibilidade de usucapião de bens públicos que não estejam sendo destinado a uma finalidade pública (Da possibilidade (constitucional) de usucapiao sobre bens publicos. A revisao de um pensamento em face do Codigo Civil de 2002. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 101 , n.377,p. 223-234, jan./fev. 2005.)

09 TRF da 2ª Região, Apel 9802083704, Rel. SERGIO FELTRIN CORREA, DJU 22/12/2004, p. 103.

10 REsp 229417/RS, DJ DATA:07/08/2000, p. 00112 Relator Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, j. em 09/05/2000, 4ª Turma.

11 REsp 73458/SP, DJ 20.05.1996 p. 16715, Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, j. em 25/03/1996, 4ª Turma.

12 REsp 150893/SC, DJ 25.03.2002 p. 269, Rel. Min. ARI PARGENDLER, j. em 11/12/2001, 3ª. Tuma.

13 REsp 266.062, Rel. Min. Castro Meira, j. em 10/08/04, DJU 20/09/04, p. 220

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Sobre o autor
Éder Maurício Pezzi López

especialista em Direito Civil e Processo Civil, Advogado da União em Rio Grande-RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÓPEZ, Éder Maurício Pezzi. Usucapião de imóvel hipotecado sob a ótica do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1393, 25 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9792. Acesso em: 5 nov. 2024.

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