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Homicídio emocional: incompatibilidade com qualificadoras objetivas e subjetivas

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Doutrina e jurisprudência, ainda que não seja posicionamento unânime (há corrente no sentido de que, pela disposição técnica do Código, e de ser o privilégio mera causa de diminuição da pena, a figura do homicídio privilegiado-qualificado é inadmissível - Cf. RTJ 42/48 e RT 525/336 e 515/367), admitem, relativamente ao homicídio, a combinação de privilegiadoras com qualificadoras objetivas (Nesse sentido: STF-RTJ, 90/61 e 61/20; RT 541/466, 556/349 ,525/350 e 496/263).

Todavia, o homicídio emocional, desde que visualizado como expressão dinâmica de um instinto, emanada de fontes conscientes ou inconscientes, que leva o sujeito a reagir à injusta provocação da vítima, "sem intermezzo" e sob o domínio de emoção repentina e intensa, "estado afetivo que produz momentânea e violenta perturbação ao psiquismo do agente, com alterações somáticas (o organismo considerado como expressão material, em oposição às funções psíquicas; variações somáticas ou modificações das funções da vida orgânica decorrentes da forte e transitória perturbação da afetividade: pulsar precípite do coração, alterações térmicas, aumento da irrigação cerebral, aceleração do rítmico respiratório, alterações vasomotoras, intensa palidez ou intenso rubor, tremores, fenômenos musculares, alterações das secreções, suor, lágrimas etc) e fenômenos neurovegetativos e motores" (Julio Mirabete, Manual, vol. 2, p. 47 - Cf. Aurélio Eletrônico, sistema nervoso vegetativo é a porção do sistema nervoso, tanto aferente quanto eferente, que inerva musculatura cardíaca e lisa, e controla secreções glandulares diversas; não se encontra sob o controle da vontade, e divide-se em dois grandes setores: o simpático e o parassimpático; sistema nervoso vegetativo e sistema nervoso da vida vegetativa), já tendo sido comparado o homem sob o influxo da emoção violenta a um carro tirado por bons cavalos, mas tendo à boléia um cocheiro bêbado (Nelson Hungria, Comentários, vol. 5, p. 135), inadmite combinação com qualquer qualificadora, seja objetiva ou subjetiva.

Aliás, a classificação das qualificadoras, em objetivas e subjetivas, serve apenas para destacar os motivos determinantes dos meios e modos pelos quais o homicídio pode ser cometido. Nas qualificadoras objetivas também há parcela subjetiva.

Por ex., para responder por homicídio qualificado pela traição, emboscada ou dissimulação, clássicas qualificadoras objetivas, é "conditio sine qua non" que o sujeito ativo tenha agido com o propósito de trair, atacando repentina e sorrateiramente a vítima descuidada pela confiança nele depositada, de tocaiar-se, no sentido de fazer-se fisicamente oculto para ter a vítima sob seu domínio, ou de ocultar o elemento moral da conduta, a finalidade homicida, com procedimento falso, que precede à violência, tudo para inibir ou dificultar a defesa.

Para incorrer no homicídio qualificado pelo emprego de meio cruel ou insidioso, igualmente é "conditio" certa dose de sadismo ou fraude da parte do agente.

A qualificadora do meio cruel, embora incluída no inc. III do § 2º do art. 121, do Código Penal, dispositivo este tradicionalmente referido, em sede doutrinária, como hipotizador de qualificadoras objetivas, classifica-se, na verdade, dentre as qualificadoras subjetivas (nesse sentido, Damásio de Jesus, Direito Penal, vol. II).

Subjetiva porque é condição tenha sido o meio cruel previamente escolhido pelo agente, com o fito de infligir padecimento desnecessário ao ofendido. Não é suficiente o dado objetivo da repetição de golpes ou tiros (nesse sentido: Celso Delmanto, CP Comentado, p. 203), exatamente por sua índole subjetiva. Requer deliberação do sujeito ativo, que o elege para impor sofrimento atroz à sua vítima. Revela premeditação e maldade do espírito. Estará configurado se o agente repetir os golpes por sadismo; não, porém, se a repetição decorrer de sua inexperiência ou nervosismo: "Meio cruel. Vinte e uma facadas. Não é contrária à prova decisão que repele qualificadora quando duvidosa a sua existência" (RJTJRGS 135/62). Índole subjetiva porque pressupõe reflexo e cálculo, incompatíveis com a violenta emoção (nesse sentido, Sebastian Soler, referido na RJTJRGS 106/90).

Diga-se o mesmo no tocante à qualificadora do uso de recurso que dificulta ou impossibilita a defesa do ofendido, em que pese sua natureza objetiva.

O Tribunal de Justiça do RGS já decidiu que o privilégio, reconhecido em termos de ação sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, é obviamente incompatível, por incongruência, com a qualificadora que objetivaria essa mesma ação como insidiosa, à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação (RJTJRGS 106/90).

No mesmo sentido preleciona Heleno Fragoso: "Não será possível conceber o crime praticado sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima, com o emprego de meio insidioso ou à traição, de emboscada ou mediante dissimulação" (Comentários ao Código Penal, vol. V, pág. 523).

O fundamento está no próprio inc. IV do § 2º do art. 121 do CP. O dispositivo apresenta hipótese de interpretação analógica, que é a "busca da vontade da norma através da semelhança com fórmulas usadas pelo legislador" (Julio Fabbrini Mirabete, Manual, vol. I, pág. 58). Após o emprego de casuística fórmula, utiliza fórmula genérica. A casuística está na referência à traição, emboscada e dissimulação. A genérica, na referência a outro recurso qualquer que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido, sendo imperioso que o "outro recurso" tenha a mesma natureza insidiosa das qualificadoras especificadas: "Recurso que torne impossível a defesa da vítima. Tal recurso há de estar na linha ontológica em que se encontra a traição, a emboscada e a dissimulação" (RJTJRGS 127/42). A perfídia que lhe subjaz, e que não se encontra no homem sob o domínio de violenta emoção, é a causa de agravação da pena e sem ela a qualificadora não se caracteriza. "Quem mata sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, não pode fazê-lo insidiosamente, à traição, de emboscada ou mediante dissimulação, porque tratar-se-ia de vingança ou desforço tardio" (Euclides Custódio da Silveira, Direito Penal, pág. 72).

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Em igual linha exegética, importante aresto do Supremo Tribunal Federal, inclusive pela autoridade de seu Relator, Min. Evandro Lins: "Não pode coexistir a atenuante do art. 121, § 1º, com as agravantes do art. 44, "d" e "e" do CP. São inconciliáveis o homicídio privilegiado previsto no § 1º e as agravantes do meio cruel e do emprego de recurso que dificulta a defesa da vítima previstos no art. 44, "d" e "e" que qualificam o crime" (RTJ 42/84).

Com a mesma interpretação, do Tribunal de Justiça do Estado, o seguinte julgado:

"O reconhecimento concomitante do homicídio privilegiado pela violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, e o homicídio qualificado pela surpresa. Incompatibilidade manifesta. Doutrina e jurisprudência. Reindividualização da pena" (RJTJRGS 113/179).


Em conclusão, se o agente mata sob o domínio de violenta emoção, de emoção absorvente que ao atingir seu auge reduz quase totalmente a "vis electiva" em face dos motivos e a possibilidade do "self-control"; se mata alguém sob o choque emocional inerente a quem é absorvido por um estado de ânimo ou de consciência caracterizado por uma viva excitação da afetividade; se realiza a ação homicida quando subjugado pelo sistema nervoso da vida vegetativa, em que os motivos inibitórios tornam-se praticamente inócuos freios sem rédea, fazendo-o em um ímpeto quase incontrolável, não reúne, no plano psicológico, a reflexão e cálculo indispensáveis à crueldade e ao emprego de recurso para dificultar ou impedir a defesa.

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Sobre o autor
Carlos Otaviano Brenner de Moraes

Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999. Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG. Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito. Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS. Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos. Possui livros e artigos jurídicos publicados. À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas. Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Carlos Otaviano Brenner. Homicídio emocional: incompatibilidade com qualificadoras objetivas e subjetivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/980. Acesso em: 26 abr. 2024.

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