"Às vezes, você tem de decidir entre o certo e o certo; em outras, entre o certo aparente e o certo aparente."
Carlos Ayres Britto [01]
Na sexta-feira, dia 20 de abril, foi realizada uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal, em que pesquisadores, religiosos e membros da sociedade civil debateram a questão acima colocada "Quando começa a vida?", para fundamentar e legitimar a decisão futura acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo então Procurador-Geral da República Cláudio Fontelles em face da Lei de Biossegurança [02], Lei 11.105/05.
A propositura da ADI, de nº 3510, fundamentou-se no direito fundamental à vida, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, mas a questão é tormentosa e está longe de um consenso doutrinário, destacando o relator da ação, o Ministro Carlos Ayres Britto ao fim da audiência que deverá decidir entre o aparentemente certo e o aparentemente certo.
A proposta do presente artigo é abordar não propriamente o aspecto científico do que é a vida, mas sim seu aspecto jurídico, partindo de uma análise de porquê o Estado deve preservar a vida e que vida é essa que deve ser preservada.
O filósofo italiano Giorgio Agambem [03] destaca recorrendo à obra de Platão e Aristóteles, que os gregos, na Antiguidade, não possuíam uma única palavra para definir vida, mas duas com semântica e morfologia distintas: "zoé" e "bios". "Zoé" seria o simples fato de viver, comum a todos os seres vivos, dentre os quais os animais, ao passo que "bios" seria a maneira de viver própria de um indivíduo ou grupo.
Assevera Agambem [04] "A simples vida natural é, porém, excluída, no mundo clássico, da polis propriamente dita e resta firmemente confinada, como mera vida reprodutiva(...)".
O fato é que a democracia ateniense, que atingiu seu apogeu entre 460 e 430 a.C., demonstrava muito bem essa divisão entre a pessoa e o cidadão, pois governada por uma Assembléia Popular qualificada, da qual não faziam parte mulheres, escravos, estrangeiros.
A vida nua, simples, reprodutiva, era destino único daqueles que não possuíam os direitos de cidadania que permitiam viver como "bios" ao invés de simples "zoé", a vida era conceituada de duas formas distintas por um importante critério qualitativo.
Interessante destacar que Platão por vezes atribuía o termo "zoé" à vida dos deuses como forma de humanizá-los, ao mesmo tempo em que destacava a importância da vida desqualificada pelo simples fato de ser vida, ser pessoa.
Com o advento do império romano, as relações entre o Estado e a Igreja se estreitaram, quando em 438, o Codex Theodosianum impôs a todos os povos do império a observância da fé do apóstolo Pedro, prevendo como objetivo do Estado a defesa da religião cristã, utilizando-se do conceito de ser humano proposto pelo concílio de Nicéia, em 325, que após uma discussão sobre a natureza divina ou humana de Jesus Cristo, definiu que o mesmo apresentava natureza humana e divina.
Destaca Fábio Konder Comparato [05], que a próxima fase na história da elaboração do conceito de pessoa inaugurou-se com Boécio, no início do século VI, influenciando toda a Idade Média "Em definição que se tornou clássica, entendeu Boécio que persona proprie dicitur naturae rationalis individua substantia ("diz-se propriamente pessoa a especificação individual da substância racional"). Aqui, como se vê, a pessoa não é uma exterioridade, como a máscara de teatro, mas a própria substância do homem, no sentido aristotélico; ou seja, a forma (ou fôrma) que molda a matéria e que dá ao ser determinado ente individual as características de permanência e invariabilidade".
Com a relação entre a Igreja e o Estado, acontece verdadeira jurisdicialização do pecado, trazendo-se para o direito a proibição do pecar, num movimento de utilização da linguagem jurídica para proteger preceitos emergentes da religião. Nesse ponto é importante destacar a obra de Santo Agostinho, que efetuou um estudo acerca do pecado, do crime e do delito.
O direito canônico serve de base ao desenvolvimento do direito romano-germânico, como observa o italiano Paolo Prodi [06] "Contrariamente ao que se costuma crer, não há sobreposição de um direito sacro-eclesiástico a um direito secular, mas o flanqueamento de um direito de Deus, fundado na Escritura, ao novo direito romano bárbaro que emerge".
Nesse momento de construção do direito, a Igreja é utilizada como fonte de legitimação do Estado, aproximando-se o soberano da figura de um representante de Deus na Terra.
Essa doutrina viria a ser consagrada alguns séculos depois na obra do francês Jean Bodin que colocava o príncipe acima das leis dos homens, mas limitado por uma lei superior, moral, divina, que servia de norte legitimador às leis editadas por esse monarca [07].
A divisão da sociedade em estamentos, trazia para a idade média a vida humana como "zoé", simples viver, uma vida em que a qualidade essencial era ter fé, acreditar em um paraíso que redimiria a pessoa dos pecados e acalentaria o sofrimento experimentado na terra. Somava-se à fé, a obediência à ordem superior advinda verticalmente do soberano, obediência ao imperium entendido como a faculdade de comandar outros, que podia ser pública ou privada, remontando, em último fato à condição da liberdade natural na qual "ninguém é sujeito a outro homem vivente, exceto a Deus, e não se reconhece outra autoridade senão a própria, ou seja, a autoridade da razão, que é sempre conforme à vontade de Deus" [08]
Ao mesmo tempo em que a vida humana era uma "zoé", ganhava contorno de "bios", ainda que sua maior qualidade característica fosse o simples viver sob a ordem da Igreja e os desmandos do soberano, que segundo Bodin tinha o poder de decisão. Ao retirar o poder de decisão das pessoas, da "bios", ele acabava desqualificando-a e cindindo-a à "zoé".
Nesse sentido, a união entre "zoé" e "bios" verificada na doutrina teológica da soberania contrapõe-se ao ideal jusnaturalista desenvolvido no século XVII por autores com Pufendorff, para quem num estado natural, possuía o homem uma gama de direitos que se aproximaria da moral, razão pela qual a "zoé" era incorporada pela "bios", e não o contrário.
Não foi, contudo, esse o ser humano descrito por Thomas Hobbes em Leviatã, em que mencionava um homem em seu estado natural animalesco como uma ameaça à existência da sociedade, propondo uma união, um pacto social em que cada um cederia parte de sua liberdade em prol do soberano, como condição de sobrevivência da espécie, trazendo a "zoé" de um estado natural para dentro do Estado de Direito, pois continuava vivendo à mercê de um poder soberano absoluto, para quem havia delegado seu poder.
A importância da "zoé" deu-se com a sua transformação em "bios" no surgimento do Iluminismo, quando autores como Rousseau e Locke pregaram a importância da liberdade e da igualdade [09], da aquisição da cidadania, dos direitos políticos, razão pela qual, ao atribuir valores e direitos à vida nua, transformaram súditos em homens.
A grande mudança paradigmática verificada após a Revolução Francesa, com o advento do Estado Liberal, refere-se à própria relação entre o Estado e o povo. Se no antigo regime absolutista, essa relação era meramente fiscal ou religiosa, atendo-se à cobrança de impostos e taxas para a manutenção da família real, da Igreja e de toda classe aristocrática, sob um aparato jurídico teológico-moral, na Idade Moderna essa relação esteve mais voltada para a chamada biopolítica.
O conceito de biopolítica foi analisado inicialmente por Foucault, na sua obra sobre a genealogia do poder [10], em 1974, sendo posteriormente aprofundado pelos pensamentos do italiano Giorgio Agamben [11], e trata da relação entre o Estado e o corpo nu, a interferência estatal na vida do ser humano.
O liberalismo do Estado Moderno ligava-se exatamente à perda de parte da soberania estatal no campo econômico, arrefecendo-se, num primeiro momento, a voracidade fiscal governamental, contudo o poder estatal voltou-se ao controle da vida do povo, surgindo aí o grande paradoxo da liberdade.
A liberdade referia-se principalmente à regulamentação do poder estatal, estabelecendo-se, por lei, as limitações e hipóteses legais de seu exercício, contudo, à medida que o Parlamento redigiu as leis que regulamentavam essa liberdade, legitimaram-se as hipóteses de controle do Estado à vida privada, com o desenvolvimento do aparato policial, algo inédito no regime feudal.
Como assevera Martin van Creveld [12] "Tendo assim conquistado a aquiescência, não raro até o apoio entusiástico, das classes proprietárias, o Estado do século XIX empenhou-se em estender sua lei e sua ordem àquelas partes da população que, até então, em geral eram tidas como aquém de sua consideração. Anteriormente, na maioria dos países, o crime nas classes sociais mais baixas era entendido como ‘depravação’ dos indivíduos".
Mas as deficiências do liberalismo e o advento da "questão social", trouxeram a necessidade da intervenção estatal não como mero aparelho policial, mas sim como promotor do combate à desigualdade e do bem-estar social.
O Estado do Bem-Estar Social foi consagrado na Constituição de Weimar, em 1919 [13], ao prever no texto constitucional direitos sociais como educação, saúde, direitos trabalhistas, elevando o conceito de vida humana a uma nova etapa: a busca pela dignidade humana.
Ao estabelecer-se a dignidade humana como um fim do Estado, abandona-se o conceito de "zoé", vida nua perseguida pelo aparato policial, e parte-se definitivamente para a "bios" contemporânea, emancipativa e cidadã, como propõe a Constituição Federal de 1988.
O texto constitucional consagra o direito à vida como um direito fundamental, assim como estabelece ser a dignidade humana um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito Pátrio.
Para entender o conceito do direito à vida tutelado pela constituição, devemos nos valer da lição do alemão Konrad Hesse [14], para quem a interpretação do significado dos preceitos constitucionais deve ser ampliativo e otimizador dos direitos fundamentais. Assim, a constituição contemplaria não apenas a tutela da "bios" encontrada na alusão à dignidade, mas também a "zoé", a vida nua, ao passo que é dificílima a diferenciação atual entre ambas, uma vez que conforme a definição kantiana, o ser humano possui direitos inalienáveis e irrenunciáveis pelo simples fato de ser humano, o que, a grosso modo, tornaria todo "zoé" em "bios".
Mas no caso do tratamento de pessoas portadoras de doenças degenerativas por meio de estudos formulados com o emprego de células-tronco embrionárias, indicadas, segundo cientistas, pela sua peculiaridade capaz de diferenciá-la em qualquer tecido do corpo, a problemática ganha novos contornos, contornos de embate de direitos fundamentais.
Nesse ponto, deve-se utilizar o método de ponderação e valoração de princípios proposto por Alexy, mas não apenas de forma abstrata [15] e sim visando a concretização do preceito constitucional por meio da proporcionalidade.
"Los principios son normas que ordenan que algo sea realizado em la mayor medida posible, de acuerdo com las posibilidades fácticas y jurídicas. Una de las tesis fundamentales expuestas en la Teoria de los derechos fundamentales, es que esa definición implica el principio de proporcionalidad com sus tres subprincipios: idoneidad, necesidad y proporcionalidad en sentido estricto, y viceversa: que el carácter de principios de los derechos fundamentales se sigue lógicamente del principio de personalidad." [16]
Daí porque com razão o Ministro Carlos Ayres Britto quando afirma ter que decidir entre o certo e o certo, pois haverá a ponderação entre dois direitos à vida, o direito potencial do embrião, e o direito de preservar sua vida, dos pacientes em tratamento.
A única forma de legitimar uma ofensa ao direito à vida, como no caso, seria em um confronto com o próprio direito à vida, como estabeleceu o legislador ordinário no caso da legítima defesa, razão pela qual a ponderação do direito à vida deve respeitar suas peculiaridades.
Ainda que potencialmente possa vir a se constituir em vida, não parece legítima a impossibilidade do uso de células-tronco de embriões com remotíssimas chances de sobrevivência, se colocada a serviço do tratamento de doenças degenerativas. A questão parece não se tratar de quando começa a vida, se na fecundação, até certo ponto banalizada pela indústria da fecundação in vitro, ou se no nascimento, ao respirar, mas sim até que ponto vale preservar a simples "zoé" embrionária, que provavelmente nem se converterá em "zoé" no futuro, sacrificando "bios" que assistem à morte das células concomitante ao esvaziamento do seu direito à vida.
Não existem respostas certas, talvez nem mesmo perguntas, mas apenas incertezas quando o assunto é o bem mais precioso do ser humano, a vida, mas ao mesmo tempo deve-se buscar romper a indagação do velho filósofo "Passei a vida inteira procurando respostas, e quando finalmente as descobri, mudaram as perguntas" [17].
A complexidade da questão do confronto entre duas visões e formas de vida remete às entranhas da finalidade da ciência do direito, ao mesmo tempo em que se relaciona com a moral e outras áreas da ciências humanas. Como destaca Couture "(...)o direito atua sempre buscando equilíbrio da conduta humana. Junto a uma possibilidade, coloca uma limitação; junto à liberdade, que é um poder, aparece responsabilidade, que é uma forma de dever. Poder e dever buscam, dessa forma, seu equilíbrio necessário. Como tantas outras coisas, isso foi melhor expresso pelos poetas do que pelos juristas." [18]
Valendo-me da lição do jurista uruguaio, fico com as palavras do poeta João Cabral de Melo Neto, que no final da obra "Morte e Vida Severina" faz uma reflexão sobre a vida por meio de seu personagem Severino, que no fim de sua jornada rumo à Zona da Mata decide se suicidar ao ser indagado sobre o porquê de sua vida ao constar seu infinito sofrimento, momento em que houve o choro de um bebê nascendo em uma casa de família extremamente pobre, recupera a consciência e afirma para o indagante "é difícil defender só com palavras a vida, ainda mais quando é esta que se vê, severina. Mas se responder não pude à pergunta que fazias, ela a vida a respondeu(...)".
Notas
01 Trecho extraído do artigo STF assiste disputa ideológica pela ‘vida’, da jornalista Laura Capriglione, publicado no jornal Folha de São Paulo em 21/04/07, pg. A19/20.
02 A Lei de Biossegurança permite a utilização de células-tronco embrionárias, obtidas por meio da destruição de embriões inviáveis para a gestação ou que estejam congelados a mais de três anos, em pesquisas científicas visando a regeneração de células mortas.
03 Giorgio Agambem. Homo sacer – O poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p. 9.
04Op. Cit., p. 10.
05 Fábio Konder Comparato. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. IV ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2005, p.19.
06 Paolo Prodi. Uma história da justiça. Trad. Karina Jannini, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
07 Citando Bodin, o alemão Carl Schmitt destaca "Se somente Deus é soberano, aquele que, na realidade terrena, age de modo incontestável como seu representante, imperador, o soberano ou o povo, isto é, aquele que pode, indubitavelmente, identificar-se com o povo, também é soberano." In Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk, Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.11.
08 Jean Bodin, apud Giuseppe Duso (org). O Poder – História da Filosofia Política Moderna. Petrópolis: Ed. Vozes, 2005, p. 67.
09 Ainda que de forma simbólica, pois continuou-se admitindo a divisão de classes, a escravidão, o que buscou-se realmente foi dar poder político à classe burguesa emergente.
10 Michel Foucalt. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado, 22ª ed., São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2006.
11Op. Cit.
12 Martin Van Creveld. Ascensão e declínio do Estado. Trad. Jussara Simões, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 295.
13 Não farei menção, aqui, ao declínio da República de Weimar e a ascenção ao poder do nacional-socialismo de Hitler, sobre o tema vide Giorgio Agambem. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, Gilberto Bercovici. Constituição e Estado de Exceção Permanente, Rio de Janeiro: Azougue, 2004, ou meuartigo Frederico Poles Borgonovi. Lei Habilitante: Hugo Chávez e o Estado de exceção bolivariano. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1311, 2 fev. 2007. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/9455.
14A Força Normativa da Constituição, do original Die Normative Kraft der Verfassung, escrito em 1954. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
15 Nesse ponto, deve-se invocar a lição de Lênio Luiz Streck quando reivindica com razão o exercício da atividade hermenêutica concretizadora do direito no Estado Democrático Brasileiro, afirmando que "(...) princípios não colidem no ar; não há como ponderar acerca dos princípios de forma abstrata, através da construção de procedimentos."
16 Robert Alexy. Epílogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios - Colegio de Registradores de la Propriedad, Mercantiles y Bienes Muebles de España, 2004, p. 38.
17In Carlos Ayres Britto. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
18 Eduardo J. Couture. Introdução ao Estudo do Processo Civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira, Belo Horizonte: Ed. Líder, 2003, p. 25.