O presente artigo não visa esgotar o assunto sobre a forma de constituição e atuação da Sociedade de Garantia Solidária, mas sim trazer à tona a antinomia entre a Lei nº 9.841/1999 e a Lei Complementar nº 123/2006 e sua repercussão jurídica para este tipo societário.
Mas antes de adentrarmos no escopo do presente trabalho, trazemos um breve histórico legislativo para posicionar o leitor acerca do assunto, senão vejamos.
1. Breve histórico legislativo da Sociedade de Garantia Solidária
A Lei nº 9.841 de 05 de outubro de 1999 instituiu em seu artigo 25 um novo tipo societário diverso do previsto em nossa legislação, a Sociedade de Garantia Solidária (SGS), a qual deve ser constituída sob a forma de sociedade anônima, visando a concessão de garantia a seus sócios participantes.
Tem por característica ser constituída por sócios participantes, que serão exclusivamente microempresas e empresas de pequeno porte, com no mínimo, 10 (dez) participantes e participação individual máxima de 10% (dez por cento) do capital social, e, por sócios investidores, os quais podem ser pessoas físicas ou jurídicas, que efetuarão aporte de capital na sociedade com o intuito de auferir rendimentos, não devendo sua participação, em conjunto, exceder a 49% (quarenta e nove por cento) do capital social da Sociedade de Garantia Solidária (SGS).
Por se tratar de uma sociedade constituída sob a forma de uma sociedade anônima, evidentemente deverá seguir as regras da Lei nº 6.404/1976, quanto à sua constituição e forma do estatuto social, bem como este deverá estabelecer o seguinte:
"a) finalidade social, condições e critérios para admissão de novos sócios participantes e para sua saída e exclusão;
b) privilégio sobre as ações detidas pelo sócio excluído por inadimplência;
c) proibição de que as ações dos sócios participantes sejam oferecidas como garantia de qualquer espécie; e
d) estrutura, compreendendo a Assembléia-Geral, órgão máximo da sociedade, que elegerá o Conselho Fiscal e o Conselho de Administração, que, por sua vez, indicará a Diretoria Executiva."(1)
Além disso, há ainda certas condições que a Sociedade de Garantia Solidária (SGS) deve seguir, como a proibição de concessão a um mesmo sócio participante de garantia maior a 10% (dez por cento) do capital social ou do total garantido pela sociedade, o que for maior; a proibição de concessão de crédito a seus sócios ou a terceiros e que dos resultados líquidos, seja alocado 5% (cinco por cento), para reserva legal, até o limite de 20% (vinte por cento) do capital social; e de 50% (cinqüenta por cento) da parte correspondente aos sócios participantes para o fundo de risco, que será constituído também por aporte dos sócios investidores e de outras receitas aprovadas pela Assembléia-Geral da sociedade.(2)
2. Características do Contrato de Garantia da Sociedade de Garantia Solidária
A finalidade principal do contrato de garantia é regular sua forma de concessão ao sócio participante mediante o recebimento de uma taxa de remuneração pelo serviço prestado, com especificação das condições para o cumprimento da obrigação por parte do sócio beneficiário em relação à Sociedade.
Cumpre destacar que a figura da Sociedade de Garantia Solidária não se confunde com a Sociedade de Crédito ao Microempreendedor, originária da conversão da Medida Provisória nº 2.082-40, de 25 de janeiro de 2001 na Lei nº 10.194 de 14 de fevereiro de 2001, a qual tem por finalidade a "concessão de financiamentos a pessoas físicas e microempresas, com vistas na viabilização de empreendimentos de natureza profissional, comercial ou industrial, de pequeno porte, equiparando-se às instituições financeiras para os efeitos da legislação em vigor, podendo exercer outras atividades definidas pelo Conselho Monetário Nacional"(3), ou seja, a primeira concede garantia e esta última concede financiamento.
Demais disso, a Sociedade de Crédito ao Microempreendedor, por se equiparar à instituição financeira, está sujeita à organização, fiscalização e disciplina do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil, o qual regulamentou sua atividade por meio da Resolução nº 2.627/99, atualmente regida pela Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 2.874/2004 (DOU 08/08/2001 – pág. 123).
3. A antinomia das Leis
Com o advento da Lei Complementar nº 123 de 14 de dezembro de 2006, criou-se uma confusão legislativa, já que seu artigo 89 é claro no sentido da revogação total e expressa da Lei nº 9.841/1999 a partir de 01 de julho de 2007:
"Art. 89. Ficam revogadas, a partir de 1º de julho de 2007, a Lei nº 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e a Lei nº 9.841, de 5 de outubro de 1999."
Mas, curiosamente, o artigo 3º, §5º, ainda prevê que as disposições do §4º, incisos IV e VII do mesmo artigo não se aplicam às sociedades de garantia solidária e outros tipos de sociedade, que tenham como objetivo social a defesa exclusiva dos interesses econômicos das microempresas e empresas de pequeno porte, ou seja, apesar de haver previsão da não aplicação de algumas disposições da Lei Complementar nº 123/2006 às Sociedades de Garantia Solidária, a mesma legislação revoga expressamente a Lei nº 9.841/1999, a qual institui a referida forma societária.
Portanto, a princípio, a partir de 1º de Julho de 2007 não teremos mais a previsão legal para constituir uma Sociedade de Garantia Solidária, já que segundo a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/1942) a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare:
"Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942 - Lei de Introdução ao Código Civil:
(...)
Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."
E como foi isto que ocorreu, a Lei Complementar nº 123/2006 revogou expressamente a Lei nº 9.841/1999, não temos como constituir uma Sociedade de Garantia Solidária a partir de julho de 2007, em que pese o tema comportar discussões, ao passo que esta figura societária não foi tratada pela lei complementar e sendo este um assunto específico podemos encontrar amparo para sua utilização no §2º do artigo 2º da LICC que assim dispõe:
"Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942 - Lei de Introdução ao Código Civil:
(...)
Art. 2º - Omissis
(...)
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior."
Este entendimento também pode ser embasado na finalidade da criação da figura da Sociedade de Garantia Solidária pela Lei nº 9.841/1999, que era permitir às micro e pequenas empresas a possibilidade de obterem garantias para promoção de suas atividades sociais de modo eficaz e competitivo, devendo o intérprete da lei ater-se a esta finalidade.
E neste sentido o Poder Judiciário já se manifestou:
"A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. (...) Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando ‘contra legem’, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum.(Min. Sálvio de Figueiredo, em RSTJ 26/378; a citação é da p. 384)"(4)
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgado relativamente recente, pronunciou-se a respeito de antinomia em um caso concreto, guardadas as devidas proporções, entre a norma do artigo 12 da Lei nº 1.533/1951 e a Lei nº 10.352/2001, que modificou o artigo 475 do Código de Processo Civil, onde podemos notar a tendência desta Corte Superior em casos que envolvam conflitos de normas, conforme se verifica:
"A despeito das alterações introduzidas pela Lei nº 10.352⁄01, que modificou o art. 475 do CPC, dando nova disciplina ao reexame necessário, há de ser aplicada a norma especial prevista no art. 12 da Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 1.533⁄51). A alteração de uma norma genérica não enseja a revogação ou a modificação de regras especiais preexistentes relativas ao mesmo instituto (art. 2º, § 2º, da LICC). Havendo conflito entre normas jurídicas de mesma hierarquia, ocorrendo a antinomia de segundo grau, ou seja, a discrepância entre as soluções preconizadas pelos critérios cronológico e o da especialidade, deve prevalecer, em regra, a resposta que resultar da aplicação deste último critério. Esta é a lição da Profª Maria Helena Diniz, quando trata das antinomias de 2º grau, senão vejamos:
"Ter-se-á antinomia de segundo grau, quando houver conflito entre os critérios:
1) hierárquico e cronológico, hipótese em que sendo uma norma anterior superior antinômica a uma posterior-inferior, pelo critério hierárquico deve-se optar pela primeira e pelo cronológico, pela segunda;
2) de especialidade e cronológico, se houver uma norma anterior-especial conflitante a uma posterior-geral, seria a primeira preferida pelo critério de especialidade e a segunda, pelo critério cronológico;
3) hierárquico e de especialidade, no caso de uma norma superior geral ser antinômica a uma inferior-especial, em que prevalece a primeira aplicando-se o critério hierárquico e a segunda, utilizando-se o da especialidade.
Realmente, os critérios de solução de conflitos não são consistentes, daí a necessidade de a doutrina apresentar metacritérios para resolver antinomias de segundo grau que, apesar de terem aplicação restrita à experiência concreta e serem de difícil generalização, são de grande utilidade.
Na hipótese de haver conflito entre o critério hierárquico e o cronológico, a meta-regra lex posterior inferiori non derogat priori superiori, resolveria o problema, isto é, o critério cronológico não seria aplicável quando a lei nova for inferior à que lhe veio antes. Prevalecerá, portanto, o critério hierárquico, por ser mais forte que o cronológico, visto que a competência se apresenta mais sólida do que a sucessão no tempo.
Em caso da antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generallis non derrogat priori specciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica. A meta-regra lex posterior generallis non derrogat priori specciali não tem valor absoluto, tendo em vista certas circunstâncias presentes" (Teoria Geral do Direito Civil. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. págs. 90 e 91. grifou-se).
Embora a regra "lex posterior generallis non derrogat priori specciali" não seja de valor absoluto, não vislumbro motivos para afastar sua aplicabilidade ao caso sub judice, visto que a jurisprudência desta Corte, no tocante ao mandado de segurança, tem sistematicamente reconhecido a prevalência das normas especiais que disciplinam este ''remédio heróico'' sobre as regra gerais do CPC. Assim, revelam-se inaplicáveis ao mandamus os §§ 2º e 3º do art. 475 do CPC, inseridos pela Lei nº 10.352⁄01."(STJ –RESP 655958 ⁄ SP – DJU 14/02/2005)
Na questão da antinomia entre a Lei Complementar nº 126/2006 e a Lei nº 9.841/1999, encontramos a hierarquia da primeira com a segunda, bem como o fato da Lei Complementar ser posterior à Lei Ordinária e prever a revogação expressa desta última.
Entretanto, temos que a matéria relativa à Sociedade de Garantia Solidária não foi tratada pela norma complementar e diante da especificidade da norma ordinária e a possibilidade de uma interpretação que atenda os princípios da Justiça e do bem comum, podemos esperar uma solução favorável do Poder Judiciário para manter o tipo societário acima mencionado.
4. Conclusão
Sendo assim, em função da questão da antinomia da Lei Complementar nº 123/2006 com a Lei nº 9.841/1999, no tocante à figura da Sociedade de Garantia Solidária, ser algo recente e não termos ainda um posicionamento dos órgãos oficiais, tais como as Juntas Comerciais e o Departamento Nacional de Registro do Comércio-DNRC, sobre a possibilidade de utilização desta figura societária mesmo sob a égide da Lei Complementar nº 123/2006, será necessário aguardar até sua vigência para que os órgãos públicos manifestem-se sobre o assunto, respeitados, evidentemente, os direitos das sociedades já constituídas durante a vigência da Lei nº 9.841/1999, nos termos do artigo 6º da LICC.
Destarte, as micro e pequenas empresas que pretenderem buscar garantias ou financiamentos para suas atividades poderão utilizar-se de outros meios, tais como a sociedade de crédito ao microempreendedor, cooperativas de crédito, microcréditos, entre outros como alternativas às Sociedades de Garantia Solidária.(5)
Notas do Texto:
(1) – "Artigo 26 da Lei 9.841/99:
(...)
Art. 26. O estatuto social da sociedade de garantia solidária deve estabelecer:
I - finalidade social, condições e critérios para admissão de novos sócios participantes e para sua saída e exclusão;
II - privilégio sobre as ações detidas pelo sócio excluído por inadimplência;
III - proibição de que as ações dos sócios participantes sejam oferecidas como garantia de qualquer espécie; e
IV - estrutura, compreendendo a Assembléia-Geral, órgão máximo da sociedade, que elegerá o Conselho Fiscal e o Conselho de Administração, que, por sua vez, indicará a Diretoria Executiva."
(2) – "Artigo 27 da Lei 9.841/99:
(...)
Art. 27. A sociedade de garantia solidária é sujeita ainda às seguintes condições:
I - proibição de concessão a um mesmo sócio participante de garantia superior a dez por cento do capital social ou do total garantido pela sociedade, o que for maior;
II - proibição de concessão de crédito a seus sócios ou a terceiros; e
III - dos resultados líquidos, alocação de cinco por cento, para reserva legal, até o limite de vinte por cento do capital social; e de cinqüenta por cento da parte correspondente aos sócios participantes para o fundo de risco, que será constituído também por aporte dos sócios investidores e de outras receitas aprovadas pela Assembléia-Geral da sociedade."
(3) – "Lei nº 10.194 de 14 de fevereiro de 2001
Dispõe sobre a instituição de sociedades de crédito ao microempreendedor, altera dispositivos das Leis nos 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 8.029, de 12 de abril de 1990, e 8.934, de 18 de novembro de 1994, e dá outras providências.
Faço saber que o PRESIDENTE DA REPÚBLICA adotou a Medida Provisória nº 2.082-40, de 2001, que o Congresso Nacional aprovou, e eu, Antonio Carlos Magalhães, Presidente, para os efeitos do disposto no parágrafo único do art. 62 da Constituição Federal, promulgo a seguinte Lei:
Art. 1o Fica autorizada a instituição de sociedades de crédito ao microempreendedor, as quais:
I - terão por objeto social a concessão de financiamentos a pessoas físicas e microempresas, com vistas na viabilização de empreendimentos de natureza profissional, comercial ou industrial, de pequeno porte, equiparando-se às instituições financeiras para os efeitos da legislação em vigor, podendo exercer outras atividades definidas pelo Conselho Monetário Nacional; (Redação dada pela Lei nº 11.110, de 2005)
II - terão sua constituição, organização e funcionamento disciplinados pelo Conselho Monetário Nacional;
III - sujeitar-se-ão à fiscalização do Banco Central do Brasil;
IV - poderão utilizar o instituto da alienação fiduciária em suas operações de crédito;
V - estarão impedidas de captar, sob qualquer forma, recursos junto ao público, bem como emitir títulos e valores mobiliários destinados à colocação e oferta públicas
(...)
Art. 5o Ficam convalidados os atos praticados com base na Medida Provisória no 2.082-39, de 27 de dezembro de 2000.
Art. 6o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."
(4) – Theotonio Negrão. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, 35ª Edição, Editora Saraiva, pág. 226, comentário ao artigo 126, item "1a".
(5) – Maiores informações às micro e pequenas empresas sobre crédito, capacitação e estudos no site oficial do SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS - SEBRAE: www.sebrae.com.br