É conhecida a resposta do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973) ao oficial da SS do III Reich quando o indagou a respeito do quadro Guernica exposto no pavilhão da Espanha na Exposição Internacional de Paris em junho de 1937: "Você fez isso?", no que Picasso, respondeu: "Eu não, vocês!". Em Guernica, Picasso ecoou o grito dos vencidos, que naquele momento estavam sofrendo sob os ataques da ditadura do general Franco sob o apoio dos nazistas. Guernica é a metáfora para a governamentalidade necrófila brasileira.
O fetiche da necropolítica vigente é nos fazer crer que tudo está em constante mudança para permanecer como sempre foi: um culto a moloque (deus cananeu), a mamon (deus-mercado), em sacrifício dos vencidos. E, para que assim seja, o que fazem os governos senão dispender milhões com verbas publicitárias à mídia para chancelar a vulgata econômica neocolonialista em curso?
O conhecido conceito de definição de soberania na obra smithiana, que, para nós, embora seja um instrumental importante, é insuficiente para identificar os pressupostos que alicerçam a governamentalidade necroética a essa altura da quadra da modernidade que vivenciamos. Resgato a sacada do estrategista James Carville, do presidenciável Bill Clinton durante os embates eleitorais com George Bush (pai), candidato à reeleição. É a economia, estúpido!, esse foi o bordão sacado por Carville que culminou na guinada estratégica de ação do candidato Bill Clinton levando-o a impedir a reeleição de George Bush.
O estado de exceção vigente funciona a partir da reprodução do modelo econômico da necropolítica em curso. Não apenas um modelo, e sim um sistema de pecado estrutural, de pecado social, como dizem os teólogos. É uma construção fetichizada sob um mito[1]-estruturante.
Pensar o mito a partir da construção de um arquétipo sagrado. A força dynamis[2] é que que sustenta o mito - edifício em ruínas.
A ação do tempo não faz apenas novas vítimas, ela imprime suas ruínas. É essa a estética da revolução que jaz à porta na película O leopardo, de Luchino Visconti (1963), de onde subtraímos a frase central na voz de Tancredi Falconeri (ator, Alain Delon): Algo deve mudar para que continue como está. Em O leopardo a opulência da aristocracia representada pela família de Fabrizio (Burt Lancaster) está em ruínas; a aliança com o pároco Pirrone (Romolo Valli) visa garantir a salvação da família e de sua classe social; novas alianças precisam ser forjadas, até que do enlace da aristocracia com a burguesia o diretor italiano sintetiza esse pacto político na voz de Tancredi Facolneri, sobrinho de Fabrizio.
A sociologia política que subjaz da análise de O leopardo de Visconti é o retrato do pacto do atraso aristocracia e burguesia para impedir o devir de acontecer. É um pacto sustentado pelo dynamis com a função de beatificar a ação necroética sobre os escombros dos vencidos.
Vivemos num limbo entre uma distopia limiar dos fatos e da aparente ficção que se mostra como realidade sucumbindo sob nossos olhos. Estamos presos em uma ficção kafkiana e, nesse particular, convém anotar que Jacques Rancière inicia as margens da ficção, dizendo: O que distingue a ficção da experiência corriqueira não é um déficit de realidade, mas um acréscimo de racionalidade (Rancière, 2021, p. 7).
Antes fosse apenas um enredo de ficção, infelizmente não. Realidade: nua e crua. Ficção e realidade se cruzam. É tradução do não estou conseguindo respirar de George Floyd (norte-americano morto em uma abordagem policial violenta) de forma implacável sob a ação e as omissões do Estado brasileiro. Não por acaso o STF teve de agir por meio da APDPF n. 709 (rel. min. Luis Roberto Barroso) para garantir medidas in concrecto para enfrentamento da COVID-19 em favor dos povos indígenas.
Pensando nisso, indago-vos se não seria o caso de tratar do desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, no vale do javari, na densa floresta amazônica, militantes da causa ambiental, como corpus vítimas de uma política de desaparecimento estatal, como leciona o filósofo Jonfefer Barbosa: produzir desaparecimento não é apenas aniquilar vidas humanas, mas gerir o apagamento de seus rastros. Sociedades do desaparecimento designam, simultaneamente, rede de múltiplas modalidades de poder e diagramas expressivo do novo padrão governamental em tempos de capitalismo cibernético-financeiro neocolonial (Política de desaparecimento e niilismo de Estado, p. 159/163.)?
O caso Dom Phillips e de Bruno Ribeirão não se trata apenas do desaparecimento dos ativistas em defesa da floresta e de grupos indígenas, são os corpus da democracia brasileira cambaleando; são os mártires do presente em que a democracia liberal sob as vestes do agrocapital brasileiro exportam a morte como comoditie made in Brasil; os desaparecidos assim como os vencidos que soçobraram pelo caminho no curso da pandemia Covid-19, são o retrato da ficção de Guernica lutando contra as hostes da governamentalidade necropolítica do agrocapital; e isso tudo, sob a benção de líderes religiosos que avalizam as políticas de inimizade tripudiando sobre os vencidos.
As vítimas dessa política de desaparecimento; as vítimas da Covid-19; a morte do indígena, Paulo Paulino Guajajara, muito bem lembrado em publicação recente no instagram da antropóloga, Lilia Schwarcs. Esses e outros tantos, são marcas da grife made in Brasil de liquidação de vidas para satisfazer o lucro acima de tudo, a despeito de todos. Não são fatalidades, são frutos de um consciente projeto de barbárie. São vítimas dessa governamentalidade necroética.
O estado de exceção se mostrou na gestão política da pandemia de forma gritante, muito bem anotado por Ciro Gomes, pré-candidato à presidência pelo PDT: "O Brasil tem 3% da população do mundo; e aqui morreram 11% das pessoas que morreram no mundo" (Ciro Gomes, em entrevista à jornalista Renata Lo Prete, dia 13.06.2022). Esses dados é a face visível do cumprimento do princípio da eficiência necroética (art. 37, CRFB/88).
É preciso sepultar a crença nessa política econômica do agrocapital programada para produzir novas vítimas sob o incenso de adoração à mamon (deus-mercado).
Essa crença não é um estado mental, mas um efeito das relações entre povos. (...) Em todos os lugares onde lançam âncora os modernos criam fetiches, isto é, veem em todos os povos que descobrem adoradores de objetos que não são nada. (...) à medida que a frente de colonização avança, o mundo de povoa de crentes (Latour, 2021, p. 20/21).
Diante do clamor dos vencidos, trago à baila as observações do frei Leonardo Boff; segundo o religioso, há quatro sombras que pesam sobre o Brasil: a) nosso passado colonial violento; b) o genocídio indígena; c) a escravidão e a Lei de Terras (Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850) que excluiu os pobres e negros do acesso à terra. (Nepomuceno, 2019, p. 18).
No passado recente foi a vez do seringalista Chico Mendes e da ferira Dorothy Stang, agora foi a vez do jornalista Dom Phillips, do antropólogo Bruno Pereira e do indígena, Paulo Paulino Guajajara, entre tantos outros ceifados por essa política de apagamento que tem perpassado governos. Para Walter Benjamin, esses são os vencidos que caíram no caminho; ele ensina que o Estado de Exceção não é a exceção, é a anormalidade (em um verbete atual, o novo normal pós-covid-19.); a exceção não é a suspensão da democracia via decisão do Soberano; não, pelo contrário, o atual estágio é preciso pensar o estado de exceção a partir da mutação dos meios de controle do poder político pela predação da necropolítica econômica e da necroética administrativa. A suspensão da soberania se dá por meio de controles eufemísticos que visam subtrair, não subtraindo a soberania do voto popular e, ao não subtrair, é que ela esvazia o centro de comando da política em favor do fetiche econômico reproduzido. Esse é o paradoxo!
Nesse sentido, trago o pensamento de Walter Benjamin: A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, percebemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência.
O grito da terra. O grito dos vencidos. O grito dos sem-terra. O grito dos ambientalistas. O grito do povo negro. São muitos e muitos gritos. Sobre isso, acorro-me novamente à pena de Nepomuceno (op. cit., 39/40) para anotar o registro feito acerca do modus operandi do governo brasileiro após grandes crimes que ecoam no cenário nacional e internacional; vejamos:
Quando ocorre algum crime mais sonoro e, de novo, cabe recordar o assassinato da freira norte-americana Dorothy Stang ou do seringalista Chico Mendes -, providência parecem ser tomadas. Parecem: os entraves burocráticos, a lentidão da justiça, os desvios de corrupção, tudo contribui para que as coisas voltem a seu leito natural, ao seu ritmo de sempre.
A obra de Nepomuceno constituiu um excelente trabalho descritivo e investigativo acerca dos constantes conflitos agrários, em especial, naquele que culminou no massacre de Eldorado dos Carajás, estado do Pará, com a morte de 19 pessoas em plena luz do dia; mais 03 pessoas que não resistiram e quedaram depois. Ao todo, morreram 21 pessoas naquela tarde de abril de 1996, todos alvos da Polícia Militar.
Não é de hoje que o Estado tem ciência de como agem os fora da lei na região amazônica, ao não agir em tempo e a contento, termina por institucionalizar o Estado de Exceção por meio de eufemismos perpetuando essa cultura de desaparecimento de vidas ante a destruição da Mãe-Terra (Gaia). Maiores informações acerca dos conflitos em terras indígenas, recomendamos leitura do censo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ano 2020.[3]
Em atenção aos números de mortes vítimas de conflito agrário, entre 1985 e 2016, ano que terminou na cassação do mandato da presidente Dilma Rousseff, 1.834 pessoas tiveram suas vidas ceifadas por conta desses conflitos. Esses números (do Cimi) retratam que o conflito agrário tem perpassado governos.
Segundo dados de homologação de terras indígenas levantados pelo Cimi, vemos que: entre 1985/1990, sob José Sarney, foram 67 homologações; Fernando Collor (1991-1992/setembro, 121; Itamar Franco (1992/outubro-1994), 18; Fernando Henrique Cardoso (1995/2002), 145; Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010), 79; Dilma Roussef (2011-2016/agosto), 21; Michel Temer (2016/setembro-2016/dezembro), 0 (zero) homologações.
Esses dados evidenciam a força dynamus que sustenta o estado de exceção. A governamentalidade suicida do governo de Jair Messias difere-se de seus antecessores, considerando que a violência é potencializada por não encontrar freios sob a retórica do mandatário atual. Dito isso, a violência simbólica (Pierre Bordieu) é parte-estruturante do dynamus vertido na necropolítica econômica e necroética administrativa.
Olhar apenas para as digitais do agrocapital vigente é como olhar essa ou aquela árvore e não olhar para a floresta toda, para ficarmos com uma metáfora de Domenico Losurdo. É preciso centrar a crítica para o edifício no seu todo, e atacá-lo no alicerce em memória dos vencidos. Do contrário, não haverá redenção para a geração presente se ela fizer pouco caso da reivindicação (Anspruch) das vítimas da história (Benjamin, 2005, p. 52 tese II sobre o conceito de história).
Ao invés de condenarmos apenas os gestores dessa política de desaparecimento/apagamento, é preciso condenar a política necroética que perpetua esse estado de exceção nosso de cada dia. Amém!
Há uma força tanática que transforma a ética, o agir, em um assunto acidental, colateral a uma pretensa solidez primeva, ontológica, totalizante, completa, com a última palavra; em outros termos, esse medo ancestral que toma a forma sinuosa das infinitas maneiras de expressão de idolatria que se vem desenrolando ao longo da história, no eterno e obsessivo métier de impedir a eclosão imagético-alternativa da simples verdade em toda a sua pluralidade e em todas as suas formas de expressão (Souza, 2020, p. 276).
Em memória dos vencidos, constitui-se imperativo ético-existencial resistir a esse estado de exceção, que, numa semana, buscam legitimar a ação dos algozes da democracia quando entram nas comunidades para promover sacrifícios à moloque (vide chacina na Vila do Cruzeiro, RJ, em maio, p.p.), enquanto noutra semana, promovem o desaparecimento de ativistas do meio ambiente no Vale do Javari, na Amazônia, em homenagem a mamon, para garantia do lucro pela devastação ambiental e quejandos.
Referências bibliográficas
Eliade, Mircea. Mito e realidade. 6ª Ed., São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 2004.
Rancière, Jacques. As margens da ficção. 1ª ed., São Paulo: Editora 34, 2021.
Silva, Ludovico. A mais-valia ideológica. 1ª ed., Florianópolis: Editora Insular, 2017.
Nepomuceno, Eric. O massacre Eldorado dos Carajás: uma história de impunidade. 1ª., Ed., Rio de Janeiro, 2019.
Pandêmia Crítica outono 2020. Vários autores. Coordenado por Peter Pál Perbart, Ricardo Muniz Fernandez. São Paulo: edições SESC: n-1º edições, 2021.
Latour, Bruno. Sobre o culto moderno dos deuses fatiches: seguido de Iconoclash. 1ª E., São Paulo: Editora Unesp, 2021.
Losurdo, Domenico. Coloniasmo e luta anti-colonial: desafios da revolução no século XXI. 1ª Ed., São Paulo: Boitempo, 2020.
Benjamin, Walter. Aviso de incêndio: uma leitura das teses Sobre o conceito de história. , 1ª Ed., São Paulo: Boitempo, 2005.
Souza, Ricardo Timm de. Crítica da razão idolátrica: tentação de thanatos, necroética e sobrevivência. 1ª Ed., Porto Alegre: Zouk, 2020.
- Compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa da história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos (Eliade, Mircea, 2004, p. 8).
- Para os gregos, dynamis (ou dunamis) difere-se de exousia. Enquanto a primeira refere-se à autoridade, a segunda é traduzida como poder ou força. Exousia é poder conferido, poder delegado para atuar sob jurisdição limitada; e, dynamis, como energia ininterrupta; dinamite, dinamizar.
- https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-violencia-povos-indigenas-2020-cimi.pdf