"Nós dizemos não. Nós nos negamos a aceitar essa mediocridade como destino"
Eduardo Galeano
INTRODUÇÃO
Todo fumante inveterado sabe que um dia poderá encontrar-se com seu câncer. Todo bebedor desregrado está sujeito à sua cirrose. Todo que planta, alguma colheita aguarda.
Por isso é que se, como advertiu ORTEGA Y GASSET [01], todo homem é produto da sua circunstância, nenhum país escapará de ser condicionado por sua história. Perceber as origens das muitas mazelas da atual crise brasileira é fundamental para a melhor terapêutica, que não diz respeito apenas à ciência jurídica ou à política criminal, mas à vida, vista da forma mais ampla e integral, com seus saberes e práticas.
Em busca de solução fácil, rotineiramente, confunde-se conseqüência e causa. O fato é que a sociedade brasileira não está doente porque os adolescentes delinqüem. Porque a sociedade está doente é que crianças e adolescentes, com freqüência – patologias à parte - se tornam infratores. Adolescentes infratores são apenas um dos vários sintomas, da mesma forma que tremores não são a doença de Parkinson, em si, mas uma das suas formas de exteriorização.
Neste trabalho falaremos de um assunto momentoso que constrange as consciências onde ainda sobra a centelha humanitária de autonomia não abafada pela enxurrada de dados e factóides da indústria de manipuladores da caverna de Platão.
O BRASIL NU EM SUA VERDADE CRUA
Somos produto da nossa história acidentada e de ética tormentosa. De um país inaugurado a partir de um acidente de comércio internacional, e depois paradisíaco abrigo de ‘náufragos, traficantes e degredados’ no título bem sacado por EDUARDO BUENO [02], devemos a Napoleão Bonaparte – quando, invadindo Portugal, obriga o deslocamento da família real – a efetiva fundação do país. E seguimos, com os muitos artificialismos que marcaram nossa biografia. Independência como acordo de família. Golpe da maioridade entregando o país ao comando de um nobre menor abandonado. Abolição da escravatura sem libertação efetiva e sem reparação devida. República de quartelada e ‘café com leite’. Federação de cima pra baixo, com estados sempre em beija-mão na sala do trono nunca desativada. Entrada no século XX por força da ditadura do Estado Novo. Redemocratização sob comando militar. Golpe militar que se traveste em Revolução Redentora. ‘Democracia relativa’ tanto quanto a mulher ligeiramente grávida. ‘Nova República’ com os velhos republicanos de sempre. ‘Constituição cidadã’ boicotada pelo Centrão prorrogado e favorecido pela emergência do neoliberalismo exterminador de direitos e solidariedade. E, last but not least, a chance de efetiva virada perdida na ascensão do presidente operário que optou por pragmatismo conformista e assistencialista em vez da ruptura conseqüente, ainda que tópica, que coroaria décadas de construção das lutas sociais numa refundação do país sobre bases mais fraternas.
Em paralelo, determinadas mitologias cheias de auto-estima ufanista como as do "brasileiro cordial", "democracia racial", "país sem terremotos", "patropi", "país do jeitinho", onde além de tudo, agora "operário chega ao poder", e, mesmo, a carnavalização da cultura brasileira, facilitando o amortecimento consentido pelo oprimido ao verdadeiro apartheid social em que se organiza, com grades invisíveis, a nossa sociedade campeã – ou vice, como queiram – em desigualdade [03].
As ‘casas-grandes’ dos luxuosos condomínios da Barra da Tijuca e Zona Sul cariocas ou dos Jardins paulistanos aprenderam a conviver com os negros e pobres das senzalas somente transferidas à distância segura das periferias insalubres ou aos morros tão próximos quanto precários. Durante o ano, os miseráveis, sem saúde ou assistência, seres invisíveis e sem biografia, carpindo na solidão seus anônimos ‘joão-hélio’, descem para limpar-lhes os banheiros. No Carnaval, os poucos que conseguem desfilar nas agremiações de suas comunidades, nobreza coberta de dourado e lantejoula, dividem o mesmo samba-enredo com os senhores de engenho. Tudo entre cerveja, tamborins e suor igualitário terminando numa apoteose de ilusão.
É por isso que o Brasil parece uma eterna quarta-feira de cinzas. Ou seja, o lusco-fusco entre a realidade que se pretende adiar e o sonho que se espera eternizar. No dia seguinte, volta a circular a 2ª maior frota de helicópteros particulares do mundo, as socialites vão às Daslus adquirir por 10 ou 15 mil reais não um produto, mas os dois centímetros quadrados de etiqueta que ele carrega. No caminho, de seus carros blindados, aromatizados e climatizados, contemplarão, com um sorriso de quem faz um safári, os malabaristas de sinal bisando seu show famélico. Talvez amanhã participem de uma ONG para distribuir sopas e camisetas aos desempregados e descamisados pela lógica perversa do sistema que seus maridos administram.
Que país é este? É a pergunta que não pára de ecoar da garganta aberta do poeta morto. O contrato social de Rousseau se pretende um acordo entre iguais para estabelecimento da vontade geral que guiará a todos no gozo das suas liberdades. Entretanto, nas bases excludentes em que a coisa está posta no Brasil, onde desde sempre alguns são mais iguais que outros, e não pactuam com todos mas contra todos, uma sociedade como esta, não tem como dar certo, posto que não pode ser verdadeiramente livre.
Por isso é que a discussão sobre a redução da maioridade penal embora passe por dentro de um cipoal vasto de questões como política criminal, interpretações constitucionais e legais, dados psicológicos, dentre outros, não poderá fugir – preliminarmente - do encontro que o país precisa fazer com sua própria verdade.
QUESTÕES JURÍDICAS E QUESTÕES PRÁTICAS
Sou dos que partilha o entendimento de ser a maioridade aos dezoito anos, estabelecida no Art. 228, um direito constitucional que têm os adolescentes frente ao Estado repressor, que se afina com o direito fundamental à liberdade, eis que pode ser tido como condição de seu exercício, exigindo abstenção punitiva penal por parte do poder estatal. Logo, recebe status de cláusula pétrea. É que, como já é bem conhecido de todos os que se preocuparam com o tema, não se limitam os direitos garantidos pela Carta Constitucional ao elenco do art. 5º, conforme clarifica seu parágrafo 2º, sendo que o parágrafo 4º, IV do artigo 60 veda a possibilidade de proposta tendente a abolir ou restringir direito ou garantia, a não ser por Constituinte originária. Posição esta já manifestada pelo Supremo Tribunal Federal em julgado em que tratou-se de construção técnica similar [04].
Data venia, não parece valer nem mesmo o recente raciocínio [05], de que se petrificou a garantia sem que o mesmo se dê com seu marco de contagem. Em nossa formulação constitucional, a maioridade penal confunde-se com a demarcação temporal que a expressa. No caso, o adjetivo é inerente ao substantivo e o determina.
Fico em boa companhia ao entender também impossível o rebaixamento da maioridade penal em função de ditame constitucional que incorpora ao nosso ordenamento os tratados internacionais firmados pelo Brasil. Aí se inscreve a Convenção dos Direitos da Criança, onde 180 países signatários definiram ‘criança’, genericamente, como sendo todo aquele com menos de 18 anos de idade. O art. 41 desta Convenção, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1989, veda o agravamento de suas legislações internas em desfavor do menor de 18 anos.
Somo igualmente na visão de se estar atirando em alvo errado, ao buscar-se, em sanha persecutória, atingir-se o adolescente, artificialmente erigido a origem de todas as mazelas da nossa dura realidade. Os números estão dados. Não é justo que se trate como bode expiatório segmento de população estimado em 15% de adolescentes, se responde por apenas 1% do total de crimes violentos praticados no país [06]. Ou o equívoco é sincero e aí, cumpre acordar o incauto, ou é mera manobra diversionista. Até porque, ao contrário, o Brasil é campeão em mortalidade infanto-juvenil por meios violentos. Em texto constante do sítio da Sociedade Brasileira de Pediatria se firma: "Não existe Nação, entre as 65 comparadas, onde os jovens morram mais vitimados por armas de fogo do que no Brasil".
Os números gritam. Em São Paulo, em 1940, a cada 100 jovens com idade entre 15 e 24 anos, apenas 1,2 morria de homicídio doloso. Em 1989 esta taxa alcança 35 em 100, sendo que o maior coeficiente está compreendido entre adolescentes de 15 a 19 anos [07]. O IBGE informa que entre 1980 e 2000 as taxas masculinas de mortalidade por homicídios saltaram de 21,2 para 49,7 [08]. Na cidade do Rio de Janeiro, em 2005, ocorreu o recorde de óbitos violentos de jovens à surpreendente taxa de 227,4 por 100 mil habitantes. Aliás, a relação adolescente vítima de violência x adolescente autor de violência é de 10 para 1 [09]. A pesquisadora MIRIAM MESQUITA PUGLIESE DE CASTRO, citada por Sylvia Leser de Mello sugere duas teses: "que se pode configurar no Brasil, uma situação próxima do extermínio, no que tange às mortes de jovens; que se pode configurar, também, a quase absoluta impunidade dos matadores" [10].
Entendo também – como vem insistentemente aclarando autoridades no tema, como o Promotor de Justiça paranaense MURILO JOSÉ DIGIÁCOMO e o destacado magistrado gaúcho, Dr. JOÃO BATISTA SARAIVA [11] - que há muita confusão na exposição dos números e dados de outros países. Não é verdade que a maioria adote responsabilização penal plena em idade inferior à da lei brasileira. Há confusão de terminologia e interpretação dos critérios para qualificação de alguém como adulto, bem como para responsabilização criminal efetiva, que difere da responsabilização penal juvenil. Esta, por mais discordâncias filosóficas ou terminológicas que ainda prevaleçam – talvez mais entre operadores do que entre estudiosos - adotou-se no Brasil, sob a expressão do que se tem denominado de ‘responsabilização estatutária’.
Acho que a saída por baixo, tentando modificar-se o ECA, como forma de implantar por lei ordinária algum subterfúgio que drible a vedação constitucional, também é desairosa e mascara com remédio errado diagnóstico conhecido mas não revelado. O antitérmico que mitiga a febre pode matar, se impede a descoberta da causa. Não resolve aumentar o tempo das medidas. Mudanças no ECA? Não existe construção humana perfeita, logo, é possível que o ECA precise de escoras e reparos [12]. Mas, neste clima, rascunhando sobre a perna, com os apressados fuzis da opinião pública manipulada, com seus canos em nossos ouvidos, como pensar em mudar lei à qual sequer se deu chance de ação ampla e aplicação efetiva? Até porque se o ECA precisar, precisa de apertos de parafuso, e não de que lhe derrubem as paredes.
Acho que o problema da criminalidade pode se agravar com o acesso precoce de secundaristas do crime à pós-graduação dos presídios adultos, inscrevendo-nos numa cápsula do tempo de retorno às trevas da penalização indiferenciada, igualando desiguais. Com os cárceres desumanos, odiosos e superlotados que viraram depósitos de gente-lixo (que é como os tratamos), com déficit de 140.000 vagas, não se recupera ninguém. São ‘navios negreiros’ no arguto dizer de CLÁUDIO BALDINO MACIEL, quando Presidente da Associação de Magistrados Brasileiros [13]. Navios negreiros, não esqueçamos, que atiravam ao mar, na mesma vassourada, cadáveres infectos e excrementos.
Os jovens que sobreviverem a tamanha prova de doutorado do mal, apenas voltarão, como oficiais, desta feita para assumir o comando de tropas de infantes recrutas cada vez mais jovens. É evidente que disso pode-se ter agravamento da crise e, a seguir-se o raciocínio atual, a prisão de recém-nascidos. Basta que sejam pretos. Basta que sejam pobres. Basta que nasçam. Ou então, como já se acinzenta no horizonte, que venha o aborto, não o supostamente progressista, mas sim o eugênico, que ‘mata o mal na raiz’. Como povos remotos, ou como gregos e romanos puristas, atiremos os defeituosos, que maculam a paisagem e a raça, do alto dos abismos ao fundo dos rios, já que o banho-maria dos nossos Auschwitz ou bantustões não tem sido o bastante para isolá-los.
Ponto relevante a verificar é, também, a ineficácia do agravamento da legislação penal. O Marquês de BECCARIA já alertara para o fato de que o que intimida o criminoso não é a dureza da pena prescrita, mas a certeza da punição. RICHARD D. SCHWARTZ e SONYA ORLEANS em ensaio denominado "Sobre Sanções Legais", afirmam que a história, a análise de casos e a experimentação não autorizam afirmar que penas mais graves inibem o comportamento ilícito. Citam experimentos psicológicos:
"Em geral, psicólogos estudando a aprendizagem animal concordam em que a punição somente reduz a probabilidade da ocorrência do comportamento punido quando contribui para a aprendizagem de respostas alternativas. Se o indivíduo punido por alguma razão repete a resposta punida após a punição (R>Pun>R), aquela resposta pode, subseqüentemente, tornar-se mais provável como resultado. Sob outras condições, a punição pode temporariamente inibir a resposta que se segue, mas a resposta aumenta em freqüência em seguida à cessação da punição. Quanto mais severa a punição sob tais circunstâncias, maior a motivação para a resposta punida. Mesmo quando uma alternativa socialmente aprovada está disponível, a ameaça severa pode não ser o meio mais eficiente de promover sua adoção. Isto foi sugerido por Janis e Feshbach em um experimento que mostra que a mudança comportamental pode ser maior sob ameaça moderada do que sob ameaça extrema. Experimentos subseqüentes modificam esta descoberta, mas não eliminam a possibilidade tomada como hipótese na pesquisa original [14]".
Como exemplo da ineficácia apontada, temos a Lei de Crimes Hediondos, de 1990, que não fez baixar os índices de criminalidade, ao contrário.
Outro componente que não pode ser esquecido é o que se refere ao nítido patrimonialismo que regeu a edição de leis no Brasil de orientação positivista. No Brasil que se construiu para poucos, é evidente que o direito penal serviu a propósitos classistas. Virou máxima popular que "cadeia é para preto, pobre e prostituta".
Exemplo dos pesos e medidas diferenciados é a questão do uso de algemas pelas forças de segurança. O art. 199 (– "o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal") da Lei de Execução Penal (7.210/84) ainda está pendente de regulamentação. As algemas foram usadas, inclusive em crianças e adolescentes, sem grandes reclamos. Bastou que começassem a algemar políticos e empresários para que a regulamentação fosse requerida em caráter de urgência.
Logo, sob pena de aprofundar o fosso da disparidade social brasileira é bom estarmos alertas para o real significado do Direito Penal. Segundo FOUCAULT:
"... seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um dos seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem. (...) A lei e a justiça não hesitam proclamar sua necessária dissimetria de classe" [15].
A FALÁCIA DA MATURIDADE ADOLESCENTE
Nessa discussão não se pode deixar de pensar sobre as peculiaridades da fase bio-psicológica vivida pelo jovem. Sabe-se que em muitas sociedades primitivas a transição da infância à idade adulta é brusca, passando pelo rito de iniciação guerreira, pelas marcas de sangue e pelo confinamento na cabana dos adultos até a primeira caçada. Tão logo o infante alcance a puberdade, com a iniciação, mágica e simbólica, tem-se por pronto o adulto.
Logo, se a infância demorou até o pós-Iluminismo para ser percebida como período especial, merecedor de tratamento diferenciado, muito mais recente é a conceituação da adolescência como fase de transição entre a infância e a idade adulta. Produto da evolução dos estudos da psiquiatria e da pedagogia, bem como, do acúmulo material das sociedades ocidentais, estudiosos datam a emergência do ‘adolescente’ como ente autônomo, objeto de estudo e cuidados, no entre-guerras, com culminância e protagonismo exacerbando-se gradativamente depois da Segunda Grande Guerra. Não por acaso, período que conheceu Elvis, chicletes, beats e beatles.
Tal percepção foi um avanço científico e humanitário. Por isso é que será retrocesso, nesta fase em que os hormônios estão à flor da pele, em que o cérebro elabora suas sinapses, em que o córtex pré-frontal está super-ativado, com áreas de refreamento crítico ainda em formação, em que a identidade é um canteiro de obras [16], e o espelho um companheiro de mutações, pretender-se possível que o adolescente compreenda como um adulto. Não compreende! A maturidade juvenil é uma falácia que faz lembrar a resposta mordaz de NELSON RODRIGUES referindo-se a si próprio aos 18 anos: "Eu era um perfeito idiota", para emendar, quando solicitado a dar um conselho aos jovens: "Envelheçam, meus filhos, envelheçam...".
Adolescentes não são efetivamente ‘maduros’. Não podem sê-lo. É até saudável que não sejam, já que, nesta fase, certas ousadias que um dia a maturidade amortecerá são como o essencial 1º módulo de foguete espacial, ou seja, necessário ao ‘start’ da construção do ser que decola. Adolescentes alternam, como é típico de qualquer troca de penugem, períodos de beleza e lago dos cisnes, com períodos de patinho-feio, peixe fora d’água, não raro, estabano e desconcerto. São ‘hulks’, ‘wolverines’, ‘homens-aranha’, belos e esplêndidos mutantes, revezando poesia e avidez, vivenciando profunda melancolia e extrema euforia. Ousadia e medo. Não há jovem "maduro" que resista aos apelos dos hormônios e de um cérebro em convulsão, precisando desesperadamente de uma identidade. Uma espinha na ponta do nariz, num sábado à noite, desaba todas as filosofias de qualquer jovem precoce e segura.
Não esqueçamos que imputabilidade decorre de uma construção técnica composta de dois segmentos discursivos: - compreender a natureza do ilícito e determinar-se de acordo com este entendimento [17]. E aí é que digo que o jovem é capaz, sim de compreender ilícitos. Mas nem sempre é capaz, vulcão em erupção, química e emocional, de determinar-se conforme tal entendimento. A psiquiatria e a neurociência [18] tem se ocupado de tais estudos e vem demonstrando tal realidade. ARISTÓTELES, na Ética a Nicômaco, ao falar da questão da continência e da limitação dos apetites, menciona:
(...) nada impede que uma pessoa haja contrariando o seu próprio conhecimento (...) esta a condição dos que agem sob a influência de paixões, pois é evidente que as explosões de cólera, de apetite sexual e outras paixões semelhantes alteram efetivamente a condição do corpo, e em alguns casos chegam até a produzir acessos de loucura. É claro, então, que podemos considerar que os incontinentes se encontram em um estado semelhante ao dos homens adormecidos, loucos ou embriagados. O fato de estes homens usarem a linguagem própria do conhecimento não prova que eles o têm, já que até os homens que estão sob a influência dessas paixões podem repetir demonstrações científicas e declamar versos de Empédocles, e as pessoas que apenas estão começando a aprender uma ciência podem recitar suas proposições sem contudo conhecê-la, pois para isso, é preciso que o conhecimento se torne uma parte delas, e isso demanda tempo. (...) [19]
Em outro trecho da mesma obra o sábio estagirita refere-se a características da juventude, típicas da incontinência antes citada em geral:
"Por outro lado, a amizade dos jovens parece visar ao prazer, pois eles são guiados pela emoção e buscam acima de tudo o que lhes é agradável e as coisas imediatas (...) Eis porque fazem e desfazem amizades rapidamente; sua amizade muda de acordo com o objeto que lhes parece agradável, e tal prazer se altera bem depressa. (...) por isso se apaixonam tão rapidamente quanto esquecem sua paixão, mudando, com frequência, no espaço de um só dia." [20]
Não nos esqueçamos que toda essa discussão também já se travou em torno da questão da possibilidade de adolescentes dirigirem automóveis. E, na ocasião, assim disse a psicóloga especialista em Trânsito, IARA THIELEN:
"Os adolescentes dos 16 aos 18 anos encontram-se numa fase caracterizada pelo desafio, pela necessidade de testar seus próprios limites, suas capacidades, de se autoafirmar. E o trânsito não é lugar de autoafirmação. Quando isso acontece inevitavelmente teremos um conflito que pode resultar em mutilações." [21]
Também MARCELO ARAÚJO opina sobre a maturidade adolescente para direção no trânsito:
"‘É inegável que ele tem habilidade para tal. Hoje, uma criança de 12, 14 anos já manipula muito bem um computador, destaca-se em competições de kart, dirige motocicletas, mas maturidade para assumir as conseqüências de seus atos no trânsito ele não tem"’ [22]
Achando ainda, aquele especialista que, mesmo a idade mínima de 18 anos para a habilitação já é questionável, visto que muitos jovens desta faixa etária ainda são imaturos.
Por isso faz bem a lei em dizer que adolescente não comete crime, mas ato infracional. Faltar-lhe-á um segmento da construção lógico-técnica que define ‘crime’, ou seja, a capacidade de determinar-se conforme o entendimento que eventualmente possua.
Informação não significa conhecimento. E conhecimento não é sabedoria. E mesmo esta, não é automaticamente maturidade. Por isso é que pouco importa o grau de informação que recebem nossas crianças e adolescentes, massacrados por Internet, TV e todo tido de mídia. Não nos esqueçamos, ainda, de que o excesso de informação é, na verdade, desinformação. Principalmente pela ausência do espírito crítico indispensável à seleção e processamento.
Por isso também é que pouco importa, na verdade, o voto facultativo ao jovem, a partir dos 16 anos; ou a possibilidade de ocupação profissional a partir dos 14; casamento (CC art. 1.517), emancipação (CC art. 5º par. único, I), capacidade para testemunhar em Juízo (CC art. 228) e de testar (CC 1. 860), aos dezesseis anos. A leitura dessas idades tem de ser feita de maneira harmônica ao todo do ordenamento. A Constituição Federal consigna (art. 14, § 3º) que qualquer jovem pode se candidatar a vereador aos 18 anos, o que, por si, já significa falta de plenitude de direitos políticos ao jovem que opte por votar aos 16. Mas estabelece que só pode ser deputado ou prefeito quem tiver 21 anos, governador o adulto de 30 anos, e presidente ou senador o de 35 anos.
É que, claramente, se pretende instituir liberdades conforme se admita o incremento na capacidade de cumprir responsabilidades. Tal gradação ajuda a construção de maturidade efetiva, conforme bem sabe qualquer pai que responsavelmente exercite boa pedagogia familiar. É o efeito escada, que se observa, inclusive em legislações de outros países. Em vários estados dos Estados Unidos da América, há idades diferenciadas para dirigir (16 anos), outra diferente para comprar cigarros (18) e outra ainda para adquirir e consumir bebidas alcoólicas (21).
Portanto, se a idade de 18 anos, ou de 16, ou de 14 operasse magicamente um pleno adquirir de maturidade e consciência, não haveria porque ocorrer tal gradação. Logo, não é só o ECA ou o art. 228 da Constituição Federal que trabalham com a consciência de graus diferentes de amadurecimento no desenvolvimento do ser. A legislação não desconhece a realidade psicológica. E não o faz porque - devemos sempre recordar – o Brasil se organiza em República e Estado Democrático de Direito não por mero prazer arquitetônico. Há uma finalidade a alcançar. O Estado não é edifício, é ponte. Todo o aparato do ordenamento visa a chegar à fraternidade. Assim deixa claro o preâmbulo da Carta Maior:
"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL". (grifei)
Para que tais objetivos sejam alcançados, necessário que cada um seja tratado conforme suas capacidades e respeitado em suas peculiaridades.
Muito se tem falado, também sobre a ressurreição da teoria do discernimento. Ou seja, o juiz, assessorado tecnicamente, avaliaria a possibilidade de que o adolescente infrator tivesse pleno conhecimento do caráter ilícito da sua conduta e estivesse em condições de assim determinar-se. Lembremos que a legislação brasileira já passou por esse caminho.
O Código Penal de 1830 só considerava como "não criminosos" os menores de 14 anos. Inimputabilidade apenas relativa, já que abria a possibilidade de que destes fosse aferido o discernimento. No ensaio "Menores e Loucos" TOBIAS BARRETO tratou criticamente da matéria. Questionou a palavra "discernimento" e seu uso como critério capaz de separar os menores impuníveis dos puníveis. Na sua avaliação, isto poderia "abrir caminho a muito abuso e dar lugar a mais de um espetáculo doloroso", afinal o conceito de "discernimento, de dificílima apreciação", tornaria "possível, na falta de qualquer restrição legal, ser descoberto pelo juiz até em uma criança de 5 anos..." [23].
O Código de 1890, já Republicano, editado após a Abolição da Escravatura, com todos os problemas sociais decorrentes da sua implementação equivocada, volta à tese, admitindo a inimputabilidade absoluta apenas aos 09 anos, e a aferição do discernimento entre os 09 e os 14 anos de idade. Além da questão da escravatura, não se deve esquecer, como bem lembra CARLOS ALBERTO MENEZES em seu trabalho "Os limites da idade penal", o dado contextual em que:
"no jurídico, o realismo, ligado à escola positiva, rasgou as fantasias da escola clássica do Direito Penal (isso criou o ambiente intelectual que permitiu, por exemplo, a Lombroso desenvolver a teoria segundo a qual toda criança já trazia embutido o germe da loucura moral e da delinqüência) A conjunção desses fatores repercutiu na nova legalidade referida aos menores infratores."
Não será difícil deduzir que, com tais condicionantes políticas, sociais e doutrinárias, a teoria do discernimento terá sido mais um instrumento de opressão sócio-racial.
A adoção da teoria biológica simples, ou teoria da atividade, foi um avanço na legislação pátria, quando se incorpora ao ordenamento a partir do Código Penal de 1940. E aí, a doutrina da delinqüência juvenil muda de fundamentos:
‘(...) É o que deixa claro Nelson Hungria (principal autor do projeto de que resultou o Código de 40) nos comentários que faz acerca do tema. Para ele, em torno da menoridade nada mais deve subsistir que lembre Lombroso e sua teoria de que "todas as tendências para o crime têm o seu começo na primeira infância"; nada mais ainda com a idéia de "condenação penal" que pode arruinar uma "existência inteira". É preciso renunciar à crença "no fatalismo da delinqüência" e assumir o ponto de vista de que a criança "é corrigível por métodos pedagógicos" (...)’. [24]
Pois bem, tal visão humanitária do grande jurista, vem se consolidar no ordenamento com a Constituição Federal de 1988, e na Lei 8.069/90.
É, portanto, uma conquista. Rebaixar a idade é retrocesso. Querer, pelas exceções que representam os casos patológicos multiplicados pela mídia, adotar a teoria do discernimento é retrocesso. Até pela impossibilidade de que, no atual estado de precariedade do Estado brasileiro, no que concerne ao aparato sócio-educativo, haja equipes técnicas suficientes e habilitadas a tais exames. Portanto, abrir-se-á novamente a comporta da discrição e do arbítrio.