FALTA DE PERSPECTIVAS
E, além de tudo, castramos destes jovens a possibilidade utópica. Se historicamente os jovens cerraram fileiras nas principais mobilizações sociais e revoluções que resultaram em progresso humano, assim bem direcionando seus ímpetos de rebeldia juvenil, hoje falta-lhes a liderança, a bandeira e a esperança. O pertencimento que se fazia nos coletivos de organizações de luta política e social, de grupamentos religiosos ou comunitários, hoje se faz pela participação em tribos de consumo ou delinqüência. Aos pobres, a mera luta pela sobrevivência. Aos ricos, o vazio do consumo. Nada de utopias. Só competição. Só que o potencial de energia juvenil é o mesmo, apenas aguardando comando. Na falta de opção meritória, por que não portar uma fálica e imponente AK47, poder puro, metálico e fascinante, como um cetro que dá poderes de vida e morte sobre o outro? Por que não tornar-se um incendiador de mendigos, um pitboy espancador de homossexuais, distribuindo queimaduras, ossos quebrados e hematomas, marcando o desprezível outro com as insígnias de tal raso poder? Num caso, tamanho poder de delinqüência visa alcançar possibilidades de consumo. No outro, o consumo supérfluo leva à delinqüência. Ao fim da viagem, ambos os jovens se encontram na encruzilhada do vazio. E, muitas vezes, temos presenciado, nas salas de espera de audiência dos Juízos da Infância e da Juventude.
Como perigosa válvula de escape, as drogas, as raves, o prazer miúdo e rápido, por isso insatisfatório e avidamente repetido. Tudo temperado pela erotização precoce que incentivamos, via tolerância e publicidade, abreviando o tempo de maturação da pulsão sexual, e provocando, além do habitat propício à difusão da exploração sexual infanto-juvenil, o triste universo de crianças-mãe cuidando de crianças-filho [33]. Depois distribuímos camisinhas como se pudéssemos com elas conter a explosão da falta de consciência e perspectivas que faz do sexo precoce seu escape. Daí, além da difusão de doenças sexualmente transmissíveis, os elevados índices de gravidez adolescente. O IBGE informa na "Síntese dos indicadores sociais de 2003" que 20% das crianças nascidas em 2002 eram de mães de 15 a 19 anos de idade.
Mas não é só. Pior, a este jovem já assim massacrado, falta também o emprego, o trabalho, fonte de dignidade e direito social inscrito no Art. 6º da Constituição Federal. Outro contra-senso. Abreviar a maioridade penal, quando estamos tornando mais distante a maioridade laboral, a autonomia do adulto, que consiste na capacidade de se manter, ganhar seu dinheiro, ter profissão e constituir família. O mercado de trabalho cada vez mais encolhido não cabe todos os jovens que precisam de emprego, submetendo-os a viver de expedientes e ilicitudes dominados pelo medo do futuro e pela baixa-auto-estima.
Portanto, é assim. Damos a todos os jovens um presente vazio e vadio e um horizonte sem amanhãs. Se ele é bem nascido, entregaremos a ele máquinas de extermínio como as gerências empresariais ou as feitorias multinacionais. Se dormiu em caixote ou chão de barro, uma arma que dispare 300 tiros por minuto. E dizemos: matem-se. Suicidem-se.
Dura cena foi, no documentário ‘Falcão – Meninos do Tráfico’ do rapper MV-Bill e de Celso Athayde, em transmissão histórica num domingo à noite pela Rede Globo, assistir a um menino de uns 10 anos, morando num buraco numa favela, acompanhado apenas por um toco de vela e uma arma de grosso calibre, quando perguntado se aquela vida não o levaria à morte dizer não como desafio, mas com pungente tristeza e resignação: "-Se morrer, descanso." Sendo que não falava ali um ancião centenário e doente terminal. Falava uma criança de seus 10 anos, um abortado pela sociedade.
Claramente, temos sido uma sociedade violentamente herodiana, ou das primitivas que sacrificavam suas virgens e mancebos à fúria de divindades egoístas e irascíveis. Em tempos de inédita exacerbação do conceito marxista de ‘reificação’ da mercadoria, coisificação do humano, ‘endeusamento’ do mercado, a ele sacrificamos nossos filhos e nossas filhas.
Há uma batalha ética a ser travada por trás das manchetes de jornais.
A NOSSA CRISE PAGA O BEM ESTAR DOS OUTROS
Um elemento que não pode ser esquecido nesta discussão é aquele que nos faz identificar claramente o aumento da nossa crise social e, por conseqüência, da crise de violência, como sub-produto da divisão internacional do trabalho que nos coloca na periferia do capitalismo desde sempre.
Financiamos o bem estar do primeiro mundo desde que os vários ciclos produtivos do Brasil Colônia encheram de ouro as burras de Portugal para dali rapidamente partirem a entupir os cofres ingleses e financiarem, a um só tempo, tanto suas belas instituições democráticas e os vapores que moveram a Revolução Industrial, quanto a opressão internacionalizada via Companhia das Índias Orientais. Assim, o poderio europeu serviu-se do que, sob nossa escravatura, nos foi extorquido.
Todos os que admiram a civilização européia, seus bons modos e belos castelos, desdenhando de nosso povo e de nossa arte e costumes, deviam recordar-se sempre de tal verdade. Toda aquela finesse é, em muito, fruto da violência contra nós praticada. A Inglaterra chega a guerrear contra a China para garantir que os chineses permanecessem viciados no ópio que lhes vendiam a partir de plantações indianas. [34] Claro que a ‘carne de canhão’ nessa guerra, pelo lado inglês, eram indianos sob a bandeira da Rainha!
E assim continua. Os países periféricos recebem as tarefas que o primeiro mundo desdenha. A China chega a comprar o lixo americano, para reciclá-lo. Há países miseráveis que se oferecem para receber dejetos radioativos. Plantas industriais poluentes são transferidas para regiões de mão de obra abundante, cordata e famélica. O "exército de reserva" previsto pelo marxismo hoje é o mundo inteiro.
Tudo isso se agravou com a atual predominância do capital financeiro sobre o capital produtivo. O grande cassino internacional decide quem ganha e quem perde no jogo dos mercados de câmbio, ações e títulos das dividas dos países reféns dos fartos empréstimos imprudentemente contraídos nos anos 70 e 80.
Crítico ferrenho de tal sistema, o professor NOAM CHOMSKY, em livro de entrevistas intitulado "A Minoria Próspera e a Multidão Inquieta" (UNB, 1999), assim afirma:
"Até você chegar à fonte do poder – que, em última análise, são as decisões de investimento – qualquer outra mudança seria cosmética e iria ocorrer apenas de forma limitada. Se forem longe demais, os investidores simplesmente farão outras escolhas e não há muito a fazer quanto a isso.
Desafiar o direito dos investidores de determinar quem vive e quem morre, e como vivem ou morrem – esse seria um avanço significativo rumo aos ideais do Iluminismo (na verdade, o ideal liberal clássico). Seria algo revolucionário" [35].
Este raciocínio deixa evidente que é subproduto das decisões dos investidores internacionais "quem vive e quem morre". Não é difícil concluir que da forma como interfere nos assuntos econômicos, jurídicos e legais dos países – inclusive com o Banco Mundial financiando nossa Reforma do Judiciário -, buscando sempre ambientes mais dóceis a seus capitais, está dado ao mercado financeiro internacional decidir também quem terá ou não emprego, quem ficará confinado à opção do crime ou da miséria, e, por óbvio, ainda que indiretamente, com que idade infratores podem ser punidos.
VIVIANE FORRESTER, escritora francesa, produziu um trabalho sobre os efeitos do neoliberalismo e da globalização sobre a população mundial. Não por acaso, intitulou-o "O Horror Econômico" (UNESP, 1997). Estudando especialmente o impacto da nova realidade de predominância do capital financeiro e de ausência de empregos sobre a juventude das periferias francesas afirmou sobre o seu comportamento:
"Nesse contexto, que se chamaria mais propriamente de ‘inqualificável’, suas brutalidades, suas violências são inegáveis. Mas e as devastações de que eles são vítimas? Destinos anulados, juventude deteriorada. Futuro abolido.
Eles são criticados por reagir, por atacar. Na verdade, apesar da delinqüência – mas por causa dela também -, eles estão em posição de fraqueza absoluta, isolados, obrigados à aceitação total, se não ao consentimento. Seus sobressaltos são iguais aos de animais caçados, antecipadamente vencidos e que sabem disso, às vezes por experiência. Não possuem qualquer ‘meio’, pressionados dentro de um sistema todo-poderoso onde não há lugar para eles, mas do qual também não têm a capacidade de afastar-se, mais arraigados do que todos os outros no meio daqueles que queriam vê-los no inferno e que não escondem isso. Eles sabem por si próprios que estão sem trabalho, sem dinheiro, sem futuro. Tanta energia perdida. Vítimas, por essa razão, de uma dor subterrânea, efervescente, que provoca raiva e abatimento ao mesmo tempo [36]".
Anos depois da publicação deste texto, em 2006, a França foi sacudida pelas revoltas violentas e incendiárias da juventude de suas periferias. Não por acaso surgiram propostas de redução da maioridade penal, agravamento das penas criminais e, até, com Nicolai Sarkozy, a proposta de cadastramento de crianças desde a pré-escola, com relatórios de acompanhamento comportamental – ‘diários de saúde mental’ -, de forma a identificar no infante o criminoso do futuro.
Qualquer semelhança com o Brasil de hoje, não é mera coincidência.
Por isso, repito, há uma escolha ética a ser feita.
O ECA É NOSSA ARMA DO BEM
Fruto de grandes mobilizações internas, resultado do acúmulo de lutas. o ECA é tributário dos mais avançados movimentos internacionais em prol dos direitos infanto-juvenis. Nasce sob o signo da fraternidade, do igualitarismo, do garantismo, da participação e da democracia. Assim, também, grande parte da Constituição que se quis cidadã.
Mas, não nos percamos na História. A Constituição é de 1988. O ECA, de 1990. Entre um e outro, cai o Muro de Berlim, o neoliberalismo se consolida com a ferramenta da globalização. E, daí, Estado Mínimo, individualismo, redução do nível de emprego, etc. Ou seja, quando o ECA chega à cena, já nasce sob boicote e má vontade da nova realidade. Fica ali, como uma ‘Bíblia’ incômoda, a apontar pecados.
Pois bem, é hora de brandir essa ‘bíblia incômoda’ e apontar os pecados da construção sócio-estatal que produzimos. Ou assumimos logo que queremos o extermínio dos negros que pensamos ter libertado em 1888 – registrando-se que a grande maioria dos adolescentes em cumprimento de medidas de internação são negros ou mestiços [37] -, ou produzimos uma sociedade que recupere o tempo perdido. E aí, cota racial sim. E aí, refreamento do capital selvagem. E aí, outra política econômica. E aí, recuperação de valores espirituais e éticos. E aí, revalorização da autoridade familiar. E aí, ECA!
Tratamos longamente de todas as vicissitudes que envolvem nossa população infanto-juvenil. Mas ainda cabe uma última constatação. FREUD ensina que dos mamíferos, o homem é o que nasce mais despreparado para os enfrentamentos da vida, carecendo por mais largo tempo de um útero externo representado pelo seio e pelo colo materno. Este útero se alarga com a interferência do pai, que, auxiliando na construção da identidade, faz a criança perceber este tertius que, amorosamente demonstra não ser o corpo da mãe mero prolongamento do seu corpo de criança. E este útero amoroso ainda será necessário e enlarguecido na família, na escola e na comunidade solidária como a da taba indígena já mencionada. Pois bem, crianças que, por suas condições de miséria, não contam com o seio materno, nem com o pai amoroso, e ainda por cima convivem com as mazelas do desemprego, como alcoolismo e maus tratos, são como seres abortados, em incompletude, que chegam à vida em grande desvantagem, com sinapses desatentas, muitas vezes com seqüelas neurais de espancamentos e distúrbios de aprendizagem. Foram abortadas pela sociedade que não lhes proveu e às suas famílias adequadas condições de subsistência.
O problema é que está demonstrada na história que a criança abandonada precocemente recebe como pai e mãe quem lhe adota como filho. São muitos os episódios das crianças-fera. Crianças-lobo, crianças-urso. Crianças que, como as irmãs Amala e Kamala [38], na Índia, no século passado, foram achadas como pequenos quadrúpedes de uma matilha, comendo carne crua, caçando e se portando como lobos, e não sobrevivendo à tentativa de readaptação civilizatória. Achadas por lobos ainda bebês, por eles cuidadas, lobas se tornaram.
Pois, bem, crianças podem ser monstros. Sim, podem. Basta que sejam adotadas por um. Daí teremos as crianças militarizadas à força pelo Khmer Vermelho de Pol Pot que se tornavam refinadas assassinas, como ocorre hoje em Uganda, na Birmânia, como ocorreu com o Japão de adolescentes kamikaze, com os exércitos do nazismo terminal, no massacre de Ruanda. E, portanto, as nossas crianças soldados do tráfico, apenas, abortadas socialmente, se tornam as feras espelho das feras que os criaram.
É por isso, repito, que toda essa discussão trata, antes de política criminal ou debate jurídico, de uma escolha ética. É uma escolha urgente. Pode ser a escolha principal. Pode ser a última trincheira.
CONCLUSÃO
Há um grande livro de JARED DIAMOND, sobre a questão ambiental, chamado "Colapso" (Record, 2005). Estudando casos de fracassos históricos (Haiti, Ruanda, etc), ele demonstra o peso da opção ecológica equivocada ou irrefletida no futuro de vários países. Por isso, a obra tem o seguinte e pertinente subtítulo "Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso". Lembrando que, tal como na questão ambiental, na questão infanto-juvenil há uma escolha nítida entre solidariedade e egoísmo, devemos ter claro que o país está prestes a fazer sua própria opção entre fracasso e sucesso.
BETINHO falava ao Brasil, em suas Campanhas contra a Fome, da solidariedade necessária nem tanto por bondade, mas por inteligência. Ao menos, sejamos inteligentes.
Crianças e adolescentes são o lado mais fraco da sociedade. As primeiras vítimas de suas guerras, fomes, endemias, tsunamis e violência. E, como ensina o ditado: ‘nenhuma sociedade é mais forte que seu elo mais fraco’. Sejamos fortes.
Sejamos éticos.
Nesta encruzilhada do drama brasileiro, sendo o próprio Brasil um país adolescente, temos no centro dos debates uma Lei que, ela mesma não atingiu maioridade (O ECA vai completar ainda 17 anos), mas que nos fornece a possibilidade da escolha virtuosa, dos valores que nos guiarão à conduta correta, à existência feliz, ao bem comum. A escolha da esperança. A escolha que nos faça entender, com ARISTÓTELES que "ética é felicidade" [39], e que "o melhor governo é aquele em que cada um encontra aquilo de que necessita para ser feliz" [40]. Isso significa sociedade fraterna e comunitária. Como prescreve a Constituição Brasileira.
Isso implica em dizer com firmeza o ‘não’ de Galeano. Isso implica em perceber que este momento dramático pode até vir a ser uma boa lembrança, quando se cumprirem as palavras de Darcy Ribeiro, grande visionário e educador:
Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra. [41]
Que estas sejam somente as dores do parto.
Que venham belos os nascimentos.