Capa da publicação Se Stranger Things fosse em Salvador-BA, qual seria a providência constitucional cabível?
Artigo Destaque dos editores

Se Stranger Things se passasse em Salvador-BA, qual seria a providência constitucional cabível?

07/07/2022 às 12:50
Leia nesta página:

Se a série Stranger Things se passasse em Salvador-BA, quais medidas seriam cabíveis constitucionalmente para restaurar a ordem pública e paz social?

Situada no início dos anos 1980, Stranger Things é uma série que se passa na cidade rural fictícia de Hawkins, em Indiana - EUA. Na ficção, um laboratório realizava experimentos científicos para o Departamento de Energia Americano, quando na realidade, os pesquisadores investiam em experimentos com o paranormal e o sobrenatural, incluindo o uso de cobaias humanas.

Ocorre que, ao realizar tais experimentos, eles criaram um portal para uma dimensão alternativa conhecida como Mundo Invertido, o que iria impactar a vida dos residentes da pequena cidade, em especial do jovem Will Byers (Noah Schnapp), um menino de 12 anos, que desaparece misteriosamente.

Em vista disso, o xerife Jim Hopper (David Harbour) inicia uma operação para encontrá-lo, enquanto os amigos de Will decidem procurá-lo por conta própria. Mas as investigações acabam levando o grupo em direção aos experimentos secretos do governo e ao encontro com uma menina, a Eleven (Millie Bobby Brown).

A partir daí eles tentam compreender a relação entre o desaparecimento de Will e o surgimento da menina, enquanto acabam descobrindo que a cidade esconde segredos bem maiores que desencadeiam várias mortes.

Passada a sinopse, sem spoilers, questiona-se: se a série se passasse em Salvador – BA em vez de Hawkins (Indiana – EUA), quais medidas seriam cabíveis constitucionalmente para combater o Devorador de Mentes, os Demorgogons e Vecna (Henry)?

Para conter e superar fatos que pode desencadear situações de crise, como os que acontecem na série, a Constituição Federal de 1988 prevê um sistema necessário que objetiva preservar os valores democráticos associados à dignidade da pessoa humana, à cidadania, à justiça social, igualdade material e ao pluralismo político.

Esse sistema, denominado por Aricê Moacir Amaral Santos[1] de sistema constitucional das crises, consiste em um conjunto ordenado de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, tem por objeto as situações de crises e por finalidade a mantença ou restabelecimento da normalidade, com a preservação da ordem pública e a paz social, traçando assim os chamados estados de exceção[2], quais sejam: Estado de Defesa (art. 136, da CF) e Estado de Sítio (art. 137, da CF).

Com efeito, o Estado de Defesa se apresenta como uma providência constitucional, de caráter excepcional, que pode ser adotada pelo Presidente da República, depois de ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional com vistas a preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza[3]. Vejamos as peculiaridades desse estado de exceção, segundo a Constituição Federal:

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I - restrições aos direitos de:

a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;

b) sigilo de correspondência;

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;

II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.

§ 2º O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.

§ 3º Na vigência do estado de defesa:

I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;

II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;

III - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;

IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.

§ 4º Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.

§ 5º Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias.

§ 6º O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.

§ 7º Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.

Já no Estado de Sítio, o Presidente da República pode, depois de ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretá-lo nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira[4]. Vejamos o dispositivo constitucional:

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.

  Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.

§ 1º O estado de sítio, no caso do art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior; no do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira.

§ 2º Solicitada autorização para decretar o estado de sítio durante o recesso parlamentar, o Presidente do Senado Federal, de imediato, convocará extraordinariamente o Congresso Nacional para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato.

§ 3º O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas.

  Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

I - obrigação de permanência em localidade determinada;

II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;

III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

IV - suspensão da liberdade de reunião;

V - busca e apreensão em domicílio;

VI - intervenção nas empresas de serviços públicos;

VII - requisição de bens.

Parágrafo único. Não se inclui nas restrições do inciso III a difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa.

Após analisarmos as duas espécies de defesa do Estado, em razão dos pressupostos e da extensão, infere-se de forma muito clara que o Estado de Sítio é seguramente o mais severo dos estados de exceção, não precisando conter no seu Decreto, por exemplo, limitação das áreas a serem atingidas e necessitando de autorização do Congresso Nacional para sua decretação.

Deveras, na série, os fenômenos paranormais e sobrenaturais, inclusive com o uso de cobaias humanas, afetam gravemente a ordem pública e a paz social, na medida em que diversas mortes e violações de direitos humanos acontecem e os mecanismos de segurança pública local não conseguem fazer frente aos acontecimentos. Porém, os fatos se restringem a cidade de Hawkins.

Dessa forma, respondendo à pergunta que deu origem a esse artigo, se a série se passasse em Salvador – BA uma das primeiras medidas a serem adotadas, constitucionalmente, pelo Governo brasileiro seria a decretação do Estado de Defesa, para preservar e prontamente restabelecer a ordem pública e a paz social afetadas pela calamidade de grandes proporções causada pelo Devorador de Mentes, os Demorgogons e Vecna (Henry).

Todavia, nossos jovens heróis sofreriam diversas restrições de direito como o de: reunião, ainda que exercida no seio das associações (fim do Hellfire Club); sigilo de correspondência (Eleven e Mike não se falariam por cartas e o xerife Jim Hopper teria o futuro comprometido); e sigilo de comunicação telegráfica e telefônica (maior talento de Dustin). Restrições essas que certamente comprometeriam o combate às adversidades do Mundo Invertido.

Enfim, felizmente às vezes a arte não imita a vida.


[1] SANTOS, Aricê Moacir Amaral. O estado de emergência, p 32. Conforme José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p 735.

[2] Essa denominação é devido ao fato de a intervenção federal pela União nos Estados e Municípios e Distrito Federal serem a exceção, na forma do art. 34, da CF.

[3] CUNHA JR., Dirley, Curso de Direito Constitucional, Ed 7. Editora JusPodivm, 2013, p 1156.

[4] CUNHA JR., Dirley, Curso de Direito Constitucional, Ed 7. Editora JusPodivm, 2013, p 1158.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Jamil Pereira de Santana

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS - Universidade Salvador | Laureate International Universities. Pós-graduado em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pelo Centro Universitário Estácio. Pós-graduado em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Atualmente, pós-graduando em Direito Societário e Governança Corporativa pela Legale Educacional. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. 1º Tenente R2 do Exército Brasileiro. Membro da Comissão Nacional de Direito Militar da Associação Brasileira de Advogados (ABA). Membro da Comissão Especial de Apoio aos Professores da OAB/BA. Professor Orientador do Grupo de Pesquisa em Direito Militar da ASPRA/BA. Membro do Conselho Editorial da Revista Direitos Humanos Fundamentais e da Editora Mente Aberta. Advogado contratado das Obras Sociais Irmã Dulce, com atuação em Direito Administrativo e Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Jamil Pereira. Se Stranger Things se passasse em Salvador-BA, qual seria a providência constitucional cabível?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6945, 7 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98999. Acesso em: 3 out. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos