As redes sociais são uma daquelas coisas dotadas de uma ambiguidade ou ambivalência constitutiva. Podem ser um instrumento para o bem ou para o mal em idêntica proporção.
O ex – Ministro do STF, Carlos Ayres de Britto na semana passada “brinda” o público com a seguinte publicação no Twitter:
Fundamental para ordenar o pensamento é entender que, na Constituição de 1988, não há um Supremo Congresso Nacional, menos ainda um Supremo Presidente da República, porém um Supremo Tribunal Federal. Fora dessa ordem que a própria Nação ditou, o que se tem é constituicídio. [1]
É bem verdade, que recebeu respostas certeiras de muitos usuários, destacando-se a manifestação irretocável da magistrada Ludmila Lins Grilo, nos seguintes termos:
“Supremo tribunal” significa apenas que a corte é a mais alta dentro da estrutura do JUDICIÁRIO. Constituicídio é considerar que um mero nome significa supremacia do judiciário sobre os outros poderes, quando a própria CF diz que eles são independentes e harmônicos entre si. [2]
Sob o ponto de vista técnico – jurídico não há mais o que dizer e, na verdade, se trata daquela situação vaticinada por Chesterton de que chegaria o dia em que teríamos que explicar e provar às pessoas que a grama é verde. [3] É incontestável o apontamento da magistrada quanto ao fato de que “um mero nome” não concede “supremacia” alguma ao “judiciário sobre os outros poderes”. Esse “nominalismo mágico” não passa da negação do “ser” das coisas que se pretende substituir pelos “nomes” carregados da subjetividade do nomeador e afastados da objetividade do real.
Acontece que há afirmações ou manifestações que apenas merecem o respeito geral quanto à liberdade de serem proferidas (liberdade de expressão, pensamento e consciência), mas não podem e não devem ser discutidas ou respondidas na clave de respeitabilidade intelectual, acadêmica ou mesmo moral. Certas manifestações, afirmações e ideias não merecem ser discutidas ou debatidas, mas tão somente denunciadas quanto à sua desonestidade intelectual e aos truques erísticos de que se valem.
Fatidicamente este é exatamente o caso da manifestação do ex – Ministro Ayres de Britto. E a necessidade de desmascaramento torna-se ainda mais urgente na medida em que é levada a efeito numa rede social e atinge muitas pessoas absolutamente leigas no campo jurídico, as quais podem facilmente ser induzidas a erro e manipuladas intelectualmente.
Lembremos ao público a advertência de Li Liweng, citada por Lin Yutang:
“Os que são sábios raramente sabem falar, e os que falam raramente são sábios”. [4]
Por isso o público precisa ficar atento aos discursos em geral e especialmente nas redes sociais, procurando sempre joeirar aquilo que é construtivo e produtivo daquilo que só enseja confusão e desordem de ideias. E mais, é preciso ter ciência de que nem sempre, mesmo as mais desbragadas insanidades, são destituídas de um fim insidioso. Como diz o personagem Polônio, em Hamlet: “Loucura embora, tem lá seu método”. [5]
Nesse contexto intelectual e moralmente sombrio, me veio à mente a expressão “Conto do Vigário”. Em uma das mais credíveis versões apresentadas para a origem da expressão encontra-se a seguinte narração:
Segundo consta, em Portugal, no século XIX, estelionatários chegavam a pequenos lugarejos e se diziam representantes do vigário. Afirmavam que tinha uma grande quantia em dinheiro dentro de uma mala muito pesada e que precisavam guardá-la para prosseguir viagem. A quem se dispusesse a ficar com a mala, pediam um valor em garantia e, de posse dele, se evadiam, ficando os ludibriados com uma mala cheia de papel e pedras. Daí a origem também da palavra “vigarista” para indicar indivíduos dedicados a enganar pessoas e causar-lhes prejuízos. [6]
E já que se está tratando de origem de expressões e palavras, é oportuno esclarecer e denunciar que o recurso erístico utilizado por Ayres de Britto em sua manifestação configura uma falácia conhecida como “Falácia Genética ou Falácia Etimológica”. O falso argumento consiste em inferir significados, não do contexto em que uma palavra ou expressão é empregada, mas, isoladamente, pela origem etimológica.
Como aduzem Nolt e Rohatyn:
O estudo das falácias (...) aguça a intuição ao elucidar os erros mais comuns do raciocínio usual.
Falácias (num sentido amplo) são erros que ocorrem nos argumentos e que afetam sua irrefutabilidade. (...). Argumentos falaciosos são enganosos, pois parecem ser, superficialmente, bons argumentos. (...). Sempre que raciocinamos inválida ou irrelevantemente, ou seja, aceitamos premissas que não deveríamos, ou não fazemos uso adequado dos fatos relevantes à nossa disposição, cometemos uma falácia. [7]
Como bem aponta Reboul, o emprego da falácia etimológica como argumento, muitas vezes “cai no ridículo”. [8] O problema é que o fato de que um argumento se apresente como ridículo não significa a neutralização de sua capacidade de convencimento, especialmente das pessoas menos preparadas e mais desavisadas. Por isso o esclarecimento pela via da denúncia da desonestidade intelectual e da má – fé é imprescindível e é o caminho mais acertado, se não o único efetivo e adequado, para desvelar o erro que se pretende impor de forma astuciosa.
Realmente “supremo” etimologicamente apresenta o sentido daquilo que é “o mais alto, o mais elevado”, mas é preciso lembrar que quando a palavra é empregada para denominar um tribunal sua natureza é necessariamente relativa. Aliás, o termo “Supremo” somente é utilizado para o Tribunal porque ele não é o único Tribunal ou órgão do Poder Judiciário, existe em relação funcional, jurisdicional e hierárquica com outros juízos e tribunais. Não faz sentido afirmar, como Britto, a inexistência de um “Supremo Congresso Nacional” e de um “Supremo Presidente da República”, como se isso pudesse levar a uma supremacia do STF. Simplesmente porque essas figuras são únicas e não estão relacionadas com outras da mesma natureza. Só há um “Congresso Nacional” e um “Presidente da República”. Ainda que haja legislativos estaduais e municipais e executivos estaduais e municipais, inexiste vinculação hierárquica e nem mesmo funcional entre tais órgãos. A argumentação de Ayres, neste passo, para além de falaciosa, é vazia de qualquer sentido, afastada da mais mínima noção de coerência. A palavra “Supremo” não é empregada isoladamente ou de forma absoluta, mas sim em relação com a palavra “Tribunal”. Trata-se do “Supremo Tribunal”, ou seja, o mais alto ou mais elevado, de acordo com a etimologia sim, mas o mais alto ou mais elevado “Tribunal”. Não o mais alto ou mais elevado de forma absoluta enquanto poder. A manipulação falaciosa é evidente e inocula uma suposta manifestação de respeito à Constituição e ao regime democrático com, na verdade, um elemento característico do ultrapassado absolutismo, marcado pela concentração ilimitada de poderes por um soberano, que agora se apresentaria sob a forma de um Tribunal Supremo, o que é ainda mais nocivo, na medida em que ao menos o soberano absolutista dos séculos passados tinha uma face humana, uma identidade. Quando se advoga um poder absoluto (supremo) a uma instituição sem rosto ou com várias faces, até mesmo a noção da mais mínima responsabilidade se dilui.
Infelizmente, parece que se está ensaiando um novo passo em direção ao abismo no caminho tortuoso que se pretende impor ao nosso país. O novo passo consiste no intento de superar a fase judicial ativista e passar para uma nova concepção supremacista, impondo, pela via ideológica, a superioridade de certo grupo sobre todos os demais, de forma a pretensamente legitimar seu domínio incontestável e incontrastável. A vingar esse intento, já não haverá mais “poderes”, mas apenas um “poder” supremo e absoluto. Não nos deixemos enredar por essa espécie de engodo primário!
REFERÊNCIAS
BRITTO, Carlos Ayres. TWEET. Disponível em https://twitter.com/ayres_britto/status/1548640097721110533?t=orEzv4A3XEkRqqX6LxD-5w&s=08 , acesso em 18.07.2022.
GRILO, Ludmila Lins. TWEET. Disponível em https://twitter.com/ludmilagrilo/status/1548738867498557443?t=pNBF3bNOJIMM_R1zdhl7DA&s=08 , acesso em 18.07.2022.
MAIER, Jonas. Chesterton no Século XXI. Disponível em https://www.sociedadechestertonbrasil.org/chesterton-no-seculo-xxi/ , acesso em 18.07.2022.
NOLT, John, ROHATYN, Dennis. Lógica. Trad. Mineko Yamashita. São Paulo: McGraw – Hill, 1991.
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Millôn Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001.
VARELLA, Paulo. O Conto do Vigário: A origem do termo. Disponível em https://arteref.com/literatura/a-origem-do-termo-o-conto-do-vigario/ , acesso em 18.07.2022.
YUTANG, Lin. A Importância de Viver. Trad. Mário Quintana. 3ª. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
[1] BRITTO, Carlos Ayres. TWEET. Disponível em https://twitter.com/ayres_britto/status/1548640097721110533?t=orEzv4A3XEkRqqX6LxD-5w&s=08 , acesso em 18.07.2022.
[2] GRILO, Ludmila Lins. TWEET. Disponível em https://twitter.com/ludmilagrilo/status/1548738867498557443?t=pNBF3bNOJIMM_R1zdhl7DA&s=08 , acesso em 18.07.2022.
[3] Cf. MAIER, Jonas. Chesterton no Século XXI. Disponível em https://www.sociedadechestertonbrasil.org/chesterton-no-seculo-xxi/ , acesso em 18.07.2022.
[4] YUTANG, Lin. A Importância de Viver. Trad. Mário Quintana. 3ª. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975, p. 197.
[5] SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Millôn Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 48.
[6] VARELLA, Paulo. O Conto do Vigário: A origem do termo. Disponível em https://arteref.com/literatura/a-origem-do-termo-o-conto-do-vigario/ , acesso em 18.07.2022.
[7] NOLT, John, ROHATYN, Dennis. Lógica. Trad. Mineko Yamashita. São Paulo: McGraw – Hill, 1991, p.344 – 345.
[8] REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 119.