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A Polícia Militar não deve atuar na investigação criminal

28/07/2022 às 12:15
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Se as polícias civis não podem investigar infrações penais militares, também os militares não poderiam investigar infrações penais comuns.

Palavras-chave: DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO POLICIAL. SEGURANÇA PÚBLICA. POLÍCIA MILITAR. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.


A Constituição da República, em seu artigo 144, elenca os órgãos que comporão a segurança pública, sendo eles a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal (atualmente inexiste), as polícias civis, as polícias militares e corpos de bombeiros militares, além das polícias penais federais e estaduais (estas incluídas pela Emenda Constitucional nº 104/2019).

Outrossim, em relação aos municípios, dispôs, em seu § 8º, que estes poderão instituir guardas municipais destinados à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Logo, não foram considerados órgãos essenciais e permanentes pelo constituinte originário.

Ademais, em relação às policias militares, prescreveu que serão responsáveis pelo policiamento ostensivo e pela preservação da ordem pública (§ 5º).

De seu turno, a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 141, assinala que à Polícia Militar, órgão permanente, incumbe, além das atribuições definidas em lei, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”.1

Com efeito, a Lei Estadual nº 616/1974 dispõe sobre a organização básica da Polícia Militar do Estado de São Paulo.2

Já em seu artigo 1º, o normativo estadual define que a Polícia Militar destina-se à “manutenção da ordem pública na área do Estado”.

Curioso, no ponto, que em seu artigo 2º, inciso I, define competir a Polícia Militar, com exclusividade, executar, ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo fardado, planejado pelas autoridades policiais competentes, conceituadas na legislação federal pertinente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos, o que já excluiria a atribuição das Guardas Civis Municipais de patrulhamento preventivo.

Nada obstante, seguindo no tema, em 9 de maio de 2022, a 14ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, com base em parecer do Ministério Público, ser possível a Polícia Militar atuar na investigação criminal civil, representando pela expedição de mandado de busca e apreensão. Eis a ementa do acórdão:

MANDADO DE SEGURANÇA. Irresignação ao deferimento de representação da Polícia Militar pela expedição de mandados de busca e apreensão. Alegação de ofensa à competência da Polícia Civil. Impossibilidade. Endosso do Ministério Público ao deferimento da medida. Segurança denegada. (MS nº 2037218-62.2022.8.26.0000)

Ora, com a devida vênia, entendemos carecer razão ao sodalício.

Com efeito, é verdade que o artigo 4º do Código de Processo Penal estabelece que “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria” e que “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.

Com a ressalva das investigações criminais pelo Ministério Público, cuja possibilidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal com base na teoria dos poderes implícitos, tal possibilidade não foi deferida à Polícia Castrense:

TESE: O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.” (RE nº 593.727-MG)

Segundo os Delegados de Polícia Civil Eduardo Cabette e Francisco Neto assinalam, comentando sobre os poderes investigatórios do Ministério Público, a teoria dos poderes implícitos3

Tem sua origem na Suprema Corte dos EUA, no ano de 1819, no precedente Mc CulloCh vs. Maryland. De acordo com a teoria, a Constituição, ao conceder uma função a determinado órgão ou instituição, também lhe confere, implicitamente, os meios necessários para a consecução da atividade. Nesse contexto, os defensores da investigação Ministerial argumentam que, ainda que a Constituição da República não tenha conferido expressamente ao Parquet a possibilidade de investigar infrações penais, tal prerrogativa estaria inserida de maneira implícita no dispositivo que confere ao Ministério Público a titularidade da Ação Penal (artigo 129, inciso I). Em outras palavras, se a opinio delicti fica a cargo do promotor público, deve-se outorgar a ele os meios necessários para melhor exercer a sua função, o que, segundo os defensores da tese, incluiria a possibilidade de realizar as investigações. A teoria em estudo também poderia ser explicada pelo famoso adágio “quem pode o mais, pode o menos”. Assim, se o Ministério Público pode o mais (propor a Ação Penal), também pode o menos (realizar investigações preliminares). (g. n.)

Destarte, a Constituição Federal é expressa quando aduz que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares(art. 144, § 4º).

Portanto, se as polícias civis não podem investigar infrações penais militares, também os militares não poderiam investigar infrações penais comuns, para que haja a preservação da competência específica dos órgãos da segurança pública.

Nesse diapasão, conforme o Ministro do STF Alexandre de Moraes, citando Canotilho, de acordo com os princípios e regras interpretativas das normas constitucionais4:

Da unidade da constituição: a interpretação constitucional dever ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas;

Da justeza ou da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário.

Portanto, com base nos princípios de interpretação constitucional, o tribunal deveria ter aplicado entendimento de molde a não causar contradição entre as normas constitucionais, além de evitar posição de alteração do esquema organizatório-funcional estabelecido pelo poder constituinte originário.

Além disso, de há muito temos defendido que as Guardas Civis Metropolitanas não deveriam adentrar em funções de policiamento ostensivo e investigatório, exatamente para não causar subversão na ordem constitucional, em atenção aos princípios hermenêuticos supracitados5.

De outro vértice, outro argumento levado em consideração pelo Poder Judiciário foi o fato de que houve aquiescência do órgão acusador quanto à medida pleiteada pela autoridade militar.

Com o devido respeito, a instituição que deveria zelar pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, dentre esses interesses o respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, em especial o devido processo legal, não deveria concordar com o procedimento ultra vires do órgão policial militar (arts. 127 e 129, inc. II, da CF).

Outrossim, com o mesmo argumento da urgência da medida, também poderíamos defender a legalidade da atuação da Guarda Civil no policiamento ostensivo e na preservação da ordem pública, além de práticas investigatórias criminais, conforme o artigo 3º, inciso III, da Lei Federal nº 13.022/2014.

Não podemos olvidar, ainda, que o artigo 2º, § 2º, da Lei Federal nº 12.830/2013 estipula que “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado” e que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.

Pelo exposto, podemos assinalar até aqui que a atuação da Polícia Castrense na realização da investigação criminal não encontra amparo legal, e o consentimento do Ministério Público não possui o condão de convalidar a ilegalidade.

Por esses motivos, diga-se de passagem, não vemos como concordar com a teoria defendida por alguns membros do Parquet no sentido de que o Ministério Público seria uma parte imparcial no processo penal, órgão legitimado a acusação, conforme o artigo 257 do Código de Processo Penal deixaria a entender.

Por exemplo, conforme ensina o professor Eugênio Pacelli, tratando sobre a imparcialidade do Ministério Público6,

Ao contrário de certos posicionamentos que ainda se encontram na prática judiciária, o Ministério Público não é órgão de acusação, mas órgão legitimado para a acusação, nas ações penais públicas. A distinção é significativa: não é por ser o titular da ação penal pública, nem por estar a ela obrigado (em razão da regra da obrigatoriedade, já estudada), que o parquet deve necessariamente oferecer a denúncia, nem, estando esta já oferecida, pugnar pela condenação do réu, em quaisquer circunstâncias. Enquanto órgão do Estado e integrante do Poder Público, ele tem como relevante missão constitucional a defesa não dos interesses acusatórios, mas da ordem jurídica, o que o coloca em posição de absoluta imparcialidade diante da e na jurisdição penal.

Nada obstante, o que se percebe é a invasão de competência por consequência de uma atuação açodada dos agentes militares, em flagrante violação ao princípio da legalidade que rege a administração pública (art. 37, caput, CF).

Nessa senda, conforme assinala o professor Pedro Lenza, o princípio da legalidade7

Surgiu com o Estado de Direito, opondo-se a toda e qualquer forma de poder autoritário, antidemocrático. Esse princípio já estava previsto no art. 4.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No direito brasileiro vem contemplado nos arts. 5.º, II; 37; e 84, IV, da CF/88. O inciso II do art. 5.º estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Mencionado princípio deve ser lido de forma diferente para o particular e para a administração. Vejamos: No âmbito das relações particulares, pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, vigorando o princípio da autonomia da vontade, lembrando a possibilidade de ponderação desse valor com o da dignidade da pessoa humana e, assim, a aplicação horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, conforme estudado. Já no que tange à administração, esta só poderá fazer o que a lei permitir. Deve andar nos “trilhos da lei”, corroborando a máxima do direito inglês: rule of law, not of men. Trata-se do princípio da legalidade estrita, que, por seu turno, não é absoluto! Existem algumas restrições, como as medidas provisórias, o estado de defesa e o estado de sítio, já analisados por nós neste trabalho. (g. n.)

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Destarte, para que fosse possível, em tese, validar a atuação da Polícia Militar nas investigações civis, deveríamos estar sob alguma crise constitucional, reconhecidas no Estado de Defesa, Estado de Sítio, ou até mesmo na intervenção federal, já que são forças auxiliares e reserva do Exército.

Aliás, em relação à legalidade que deve reger toda a administração pública, o artigo 13 do Código de Processo Penal defere apenas à autoridade policial “representar acerca da prisão preventiva”, e não à autoridade militar.

Finalmente, e mais importante, o artigo 8º do Código de Processo Penal Militar estabelece competir à polícia judiciária militar, dentre outras, “apurar os crimes militares” e “representar a autoridades judiciárias militares acerca da prisão preventiva e da insanidade mental do indiciado”.

Também por essa razão, vemos como inconstitucional a elaboração de normas processuais ou procedimentais emanadas dos Tribunais de Justiça ou dos Ministérios Públicos criando regras distintas das estabelecidas no Código de Processo Penal Castrense, salvo quando emanadas de seus Conselhos Nacionais, atos normativos primários, nos termos da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 12 do Distrito Federal.8

Portanto, não se pode querer consertar o problema da segurança pública criando um outro problema, no caso a invasão de competência constitucional em nome de uma eficiência da persecução criminal.

Concluindo, reputamos inconstitucional a atuação da Polícia Castrense nas atividades de investigação criminal, ressalvadas as militares, e fora do contexto de autêntica urgência ou crise constitucional, como nos Estados de Defesa, de Sítio, e na intervenção federal.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CABETTE, Eduardo Luiz Santos e SANNINI NETO, Francisco. Poder Investigatório do MP não tem amparo legal. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2013-abr-09/poder-investigatorio-ministerio-publico-nao-amparo-legal> Acesso em 23 de julho de 2022.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 26ª Ed - São Paulo. SaraivaJur. 2022.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36ª Ed – São Paulo. Atlas. 2020.

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25ª Ed – São Paulo: Atlas, 2021.

TORMENA, Celso Bruno. A guarda civil municipal não é órgão da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6884, 7 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos97322. Acesso em: 23 jul. 2022.


1 Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/constituicao/1989/compilacao-constituicao-0-05.10.1989.html Acesso em: 23/7/2022.

2 Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1974/lei-616-17.12.1974.html Acesso em: 23/7/2022.

3 Poder investigatório do MP não tem amparo legal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-abr-09/poder-investigatorio-ministerio-publico-nao-amparo-legal Acesso em 29 de março de 2020.

4 Direito Constitucional. 36ª Ed – São Paulo: Atlas, 2020, pág. 75.

5 A guarda civil municipal não é órgão da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27 , n. 6884, 7 mai. 2022 . Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97322. Acesso em: 23 jul. 2022.

6 Curso de Processo Penal. 25ª Ed – São Paulo: Atlas, 2021, pág. 585.

7 Direito Constitucional. 26ª Ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022, pág. 1.981.

8 A Resolução nº 07/05 se dota, ainda, de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta-cidadã e tem como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade.

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Sobre o autor
Celso Bruno Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. A Polícia Militar não deve atuar na investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6966, 28 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99326. Acesso em: 18 abr. 2024.

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