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A guarda civil municipal não é órgão da segurança pública

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07/05/2022 às 14:00
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A invasão de atribuições das polícias ostensivas e investigativas pelas guardas municipais tem produzido nulidades em ações penais, gerando grave insegurança jurídica no sistema de segurança pública.

A Constituição da República, em seu artigo 144, elenca os órgãos que comporão a segurança pública, sendo eles a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal (atualmente inexiste), as polícias civis estaduais, as polícias militares e corpos de bombeiros militares estaduais, além das polícias penais federais e estaduais (estas incluídas pela Emenda Constitucional nº 104/2019).

Diga-se de passagem que, a despeito da previsão dos órgãos do sistema penitenciário como integrantes do SUSP (Art. 9º, § 1º, da Lei Federal nº 13.675/2018), somente por emenda à Lei Maior foi possível considerá-los como órgãos da segurança pública. Se assim não fosse, também os agentes de trânsito, integrantes do SUSP, seriam órgãos da segurança pública.

Outrossim, em relação aos municípios, dispôs, em seu § 8º, que estes poderão instituir guardas municipais destinados à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

Ou seja, em relação aos entes locais, a instituição da guarda civil é facultativa, sendo de iniciativa do Prefeito Municipal a lei que dispuser sobre a criação desses cargos, em simetria ao quanto prescreve o artigo 61, § 1º, inciso II, alínea “a” da Constituição Federal.

Além disso, a Lei Maior prescreve que a instituição destinar-se-á a fazer a segurança dos bens municipais, que seriam apenas os de uso especial e dominicais, haja vista que os de uso comum do povo pertence a estes, e não ao Estado, que apenas exerce uma administração sobre eles, sob pena de se tornar ilimitada a atuação da GCM.

Nesse diapasão, verbi gratia, a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 147, estabelece que “os Municípios poderão, por meio de lei municipal, constituir guarda municipal, destinada à proteção de seus bens, serviços e instalações, obedecidos os preceitos da lei federal”.

Ademais, a lei federal mencionada na Constituição Paulista é a de nº 13.022/2014, a qual dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais.

O próprio Estatuto Geral das GCM’s estabelece, em seu artigo 4º, em consonância com a Carta Magna, que “é competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município”.

Aliás, em seu artigo 5º, o Estatuto prescreve que a competência específica das guardas municipais deverá respeitar “as competências dos órgãos federais e estaduais”.

Dentre as competências dos órgãos estaduais, está a da Polícia Militar de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, conforme o § 5º do artigo 144 da Lei Maior.

De seu turno, a Constituição Bandeirante, por exemplo, sem seu artigo 141, aduz competir a Polícia Castrense o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública.

Portanto, vemos de antemão que as Guardas Municipais não exercem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, pelo menos não com a mesma amplitude e intensidade das Polícias Militares, sob pena de invasão de competência constitucional.

Aliás, esse é o entendimento esposado pelo Ministério Público de São Paulo, através da nota técnica nº 8 sobre a Guarda Municipal e a lavratura de TCO, de autoria da Secretaria Especial de Políticas Criminais e do Centro de Apoio Operacional Criminal CAOCrim1, segundo o qual

 

Na qualidade de agentes de segurança, salvo no caso de flagrante – repise-se - devem exercer um papel de cooperação, jamais de protagonismo. Essa impressão parece se reforçar a partir da edição da Lei n° 13.022/2014, que, em seu art. 5°, estabelece competências específicas que abrem espaço para que as guardas municipais atuem em colaboração com os demais órgãos de segurança. (g. n.)

 

Por outro lado, conforme o Ministro do STF Luis Roberto Barroso, de acordo com o princípio da unidade da Constituição,2

 

Já se consignou que a Constituição é o documento que dá unidade ao sistema jurídico, pela irradiação de seus princípios aos diferentes domínios infraconstitucionais. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, impondo ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas jurídicas. A superior hierarquia das normas constitucionais impõe-se na determinação de sentido de todas as normas do sistema. O problema maior associado ao princípio da unidade não diz respeito aos conflitos que surgem entre as normas infraconstitucionais ou entre estas e a Constituição, mas sim às tensões que se estabelecem dentro da própria Constituição. De fato, a Constituição é um documento dialético, fruto do debate e da composição política. Como consequência, abriga no seu corpo valores e interesses contrapostos. (g. n.)

 

Destarte, pelo princípio da unidade da Lex Legum, não se deveria fazer tanta confusão quanto se vê na prática entre as funções da Guarda Civil Metropolitana e a da Polícia Militar.

Nessa senda, segundo o professor Pedro Lenza, o princípio da interpretação conforme a Constituição estabelece que,3

 

Diante de normas plurissignificativas ou polissêmicas (que possuem mais de uma interpretação), deve-se preferir a exegese que mais se aproxime da Constituição e, portanto, que não seja contrária ao texto constitucional, daí surgirem várias dimensões a serem consideradas, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência, destacando-se que a interpretação conforme será implementada pelo Judiciário e, em última instância, de maneira final, pela Suprema Corte. (g. n.)

 

De fato, a doutrina constitucionalista não se debruçou profundamente sobre a questão, talvez porque não deveria existir tanta polêmica quanto ao assunto.

Contudo, Pedro Lenza enfatiza, no capítulo sobre “Polícias dos Municípios” de sua obra, que fora ajuizada no Supremo Tribunal Federal a ADI nº 5.156 contra a Lei nº 13.022/2014, a qual não foi conhecida em virtude da ilegitimidade ativa para a propositura. Contudo, ressaltou que, como bem anotou José Afonso da Silva,4

 

Os constituintes recursaram várias propostas no sentido de instituir alguma forma de polícia municipal. Com isso, os Municípios não ficaram com qualquer responsabilidade específica pela segurança pública. Ficaram com a responsabilidade por ela na medida em que, sendo entidades estatais, não podem eximir-se de ajudar os Estados no cumprimento dessa função. Contudo, não se lhes autorizou a instituição de órgão policial de segurança, e menos ainda de polícia judiciária. A Constituição apenas lhes reconheceu a faculdade de constituir Guardas Municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Aí, certamente, está uma área que é de segurança pública: assegurar a incolumidade do patrimônio municipal, que envolve bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens patrimoniais, mas não é de polícia ostensiva, que é função da Polícia Militar. Por certo que não lhe cabe qualquer atividade de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, que a Constituição atribui com exclusividade à Policia Civil (art. 144, § 4º), sem possibilidade de delegação às Guardas Municipais (…) Em relação às competências (geral e específica) previstas no art. 5º do estatuto, a sua interpretação deverá sempre levar em conta os parâmetros constitucionais de proteção dos bens, serviços e instalações do Município. Por isso, parece ter razão o parecer da PGR que sustenta a inconstitucionalidade dos incisos VI, XIII, e XVII do art. 5º da Lei n. 13.022/2014 (atribuem às guardas municipais, em caráter primário, exercício de competências municipais de trânsito; atendimento de ocorrências emergenciais ou de pronto atendimento; auxílio na segurança de grandes eventos e proteção de autoridades e dignitários). (g. n.)

 

Nesse espírito, escreveu Rogério Tadeu Romano em artigo no site Jus Navigandi que “não pode, pois, a guarda municipal, executar tarefa inerente às Polícias Militares nos Estados. Se assim fizer estará extrapolando de sua missão constitucional”.5

Em sentido semelhante, o professor Bernardo Gonçalves Fernandes assentou que o STF definiu, nos MI nº 6515, 6770, 6773, 6780 e 6874 em 2018, que6

 

Não cabe ao Poder Judiciário garantir aposentadoria especial (art. 40, § 4º, II, da CR/88) às guardas municipais. Assim sendo, decidiu o STF que a aposentadoria especial não pode ser estendida aos guardas civis, uma vez que suas atividades precípuas não são inequivocamente perigosas e, ainda, pelo fato de não integrarem o conjunto de órgãos de segurança pública relacionados no art. 144, I a V, da CR/88. Segundo a decisão, a proximidade da atividade das guardas municipais com a segurança pública é inegável, porém, à luz do § 8º do art. 144 da CR/88, sua atuação é limitada, voltada à proteção do patrimônio municipal. Nesses termos, conceder esse benefício por via judicial não seria prudente, pois abriria margem reivindicatória a diversas outras classes profissionais que, assim como os guardas municipais, lidam com o risco diariamente. Ademais, cabe ao legislador, e não ao judiciário, classificar as atividades profissionais como sendo ou não de risco para fins de aposentadoria especial. (g. n.)

Nada obstante, o STF, em 2015, nos autos do RE nº 658.570/MG, fixou a seguinte tese, a qual não altera o entendimento aqui sufragado, haja vista a não correspondência entre segurança pública e segurança viária, verbis:

 

É constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas.

 

Nessa esteira, no RE nº 846.854/SP, o Tribunal Constitucional entendeu que “as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF), pelo que se submetem às restrições firmadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 654.432 (Rel. Min. EDSON FACHIN, redator para acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 5/4/2017)”, proibindo que esses servidores exercem o direito de greve.

Porém, a despeito do exercício de atividade de segurança pública, dela não são órgãos.

Além disso, em 2021, na ADC nº 38/DF, a Corte Máxima definiu que as guardas municipais possuem direito ao porte de arma independente do número de habitantes da cidade. Eis a ementa do julgado, verbis:

 

CONSTITUCIONAL E SEGURANÇA PÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS RESTRITIVAS AO PORTE DE ARMA À INTEGRANTES DE GUARDAS MUNICIPAIS. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE E ISONOMIA EM CRITÉRIO MERAMENTE DEMOGRÁFICO QUE IGNORA A OCORRÊNCIA DE CRIMES GRAVES NOS DIVERSOS E DIFERENTES MUNICÍPIOS. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.

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Nada obstante a Suprema Corte tenha reconhecido a essencialidade da Guarda Municipal nas atividades de segurança pública, em nenhum momento o tribunal afirmou que a instituição exerceria função de polícia ostensiva, tampouco em concorrência com a Polícia Ostensiva dos Estados.

Aliás, conforme ressalta Eduardo dos Santos na linha do quanto definido neste trabalho,7

 

Os Municípios não possuem polícias, pelo menos não enquanto órgãos policiais de segurança pública. Entretanto, podem instituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (proteção do patrimônio público municipal), conforme dispuser a lei. A Lei 13.022/2014 regulamenta a instituição das guardas municipais, afirmando tratar-se de instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, que têm função de proteção municipal preventiva, estando subordinadas aos respectivos chefes do Poder Executivo Municipal, o que nos revela sua natureza de “polícia administrativa” e não de órgão policial de segurança pública, já tendo o STF decidido, por exemplo, que a apreensão de entorpecentes por guardas municipais é inválida.20

 

De forma idêntica assinala o Ministro do STF Alexandre de Moraes, para quem “a Constituição Federal concedeu aos Municípios a faculdade, por meio do exercício de suas competências legislativas, de constituição de guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, sem, contudo, reconhecer-lhes a possibilidade de exercício de polícia ostensiva ou judiciária”8.

De forma semelhante ensina a professora Nathalia Masson, quando escreve que “os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (art. 144, ~ 8°, CF/88). Referidas guardas, porque responsáveis pelo policiamento preventivo e ostensivo, possuem natureza de ‘polícia administrativa’ e não de órgão policial de segurança pública. Visam, portanto, impedir a realização de atos lesivos por infrações a regras do Direito Administrativo, não aplicando sanções de privação de liberdade. Nesse sentido, a missão dessas guardas é zelar pela boa conduta dos administrados no que se refere às leis e aos regulamentos administrativos concernentes à realização dos direitos de liberdade e propriedade”.9

Destarte, a doutrina constitucionalista é unânime em não reconhecer as guardas civis locais como órgãos de segurança pública, pelo menos não no sentido estrito, exercendo, outrossim, atribuições de polícia administrativa na mesma intensidade que outros órgãos de fiscalização administrativa, nas sendas do artigo 78 do Código Tributário Nacional10.

De seu turno, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na trilha do quanto aqui exposto, possui julgados que dão guarida à literalidade do texto constitucional. Vejamos trechos de julgados:

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 1.978, de 15 de maio de 2018, do município de Itu, que altera a denominação da Guarda Civil e dispõe que os servidores desse órgão da administração se identifiquem como Polícia Municipal. Alegação de vício de iniciativa e ofensa ao princípio da separação dos poderes. Reconhecimento. Lei impugnada, de iniciativa parlamentar, que avança sobre área de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo, violando as disposições dos artigos 5º e 24, § 2º, n. 02 e 04, 47, II, XIV e XIV, “a” e 144, todos da Constituição Paulista. Ademais, se a Constituição Paulista, reproduzindo norma da Constituição Federal (CF, art. 144, § 8º), refere-se à guarda municipal, como órgão destinado à proteção dos bens, serviços e instalações municipais (art. 147), não se afigura razoável que a legislação municipal altere essa denominação para polícia municipal, quebrando a uniformidade da expressão adotada pela Constituição Federal e pelo próprio Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei Federal nº 13.022, de 08 de agosto de 2014), ainda que se argumente com a semelhança das funções, pois, os próprios dispositivos constitucionais diferenciam as atribuições da Guarda Municipal e as atividades policiais (exercidas para preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio). Inconstitucionalidade reconhecida, nessa parte, não só por ofensa às disposições dos artigos 147 da Constituição Estadual e 144, § 8º, da Constituição Federal, mas também por afronta ao princípio da razoabilidade (CE, art. 111). Ação julgada procedente. (ADI nº 2098711-45.2019.8.26.0000)

 

 

Apelação criminal. Tráfico de drogas. Busca e apreensão. Guarda Municipal. Atividade policial. Guardas civis não são porque não devem mesmo ser policiais. Nossa ordem constitucional e legal é claríssima nesse sentido. Compete às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, o exercício da atividade de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, assim como compete às polícias militares a atividade de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (Constituição Federal, artigo 144, parágrafos 4º e 5º). Nesse sentido, prossegue o constituinte, as guardas municipais, constituídas pelos Municípios, estão nada mais que simplesmente destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (Constituição Federal, artigo 144, parágrafo 8º). Assim, se porventura a Guarda Municipal receber informações que determinado veículo carregaria drogas, deve repassá-las de imediato à Polícia Civil ou à Polícia Militar que, do alto de sua competência constitucional e legal, poderão, se o caso, tomar as providências devidas. Não podem os guardas municipais, sob o argumento de dispor de tais informações ou denúncias anônimas, procurar por veículos na cidade e, avistando-os, determinar ao condutor respectivo embora sem certeza visual alguma de crime, o que aí sim poderia ensejar a atuação de qualquer um do povo a parada imediata, sujeitando, como se policiais fossem, seus ocupantes e o próprio carro a procedimento invasivo de revista. Se o fizerem, a prova assim obtida e toda a investigação daí subsequente estarão contaminadas pela ilegalidade. (Apelação Criminal nº 0002974-40.2018.8.26.0079)

 

APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS (ART. 33, CAPUT, L. 11.343/06). Sentença condenatória. Irresignação do réu. Atuação ilegítima da Guarda Civil Municipal. Órgão que atuou isoladamente em operação de repressão ao tráfico de drogas. Contrariedade à Lei 13.022/14 e ao art. 144, §8º, CF. Abordagem do réu dentro de conjunto habitacional a partir de inteligência informal de que o local seria ponto de tráfico de drogas. Diligência de busca pessoal realizada a despeito de não se verificar estado de flagrância que autorizasse a abordagem. Ausência de prova da materialidade ou autoria delitiva colhida de fonte independente da ilícita apreensão das substâncias. Absolvição que se impõe. Princípio da presunção de inocência. Sentença reformada. Recurso provido. (Apelação Criminal nº 1500971-90.2021.8.26.0545)

 

Aliás, o entendimento supracitado foi reafirmado nas recentes ADI's nº 2240667-78.2021.8.26.0000 e 2040450-19.2021.8.26.0000. 

De outro vértice, o Superior Tribunal de Justiça, com o mesmo entendimento do Tribunal de Justiça paulista, possui julgados que anulam processos penais por contarem com atuação ostensiva e investigativa da Guarda Metropolitana. Vejamos algumas ementas de acórdãos:

 

HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. PRISÃO EM FLAGRANTE. PROVA ILÍCITA. REVISTA PESSOAL REALIZADA POR GUARDA MUNICIPAL. ATIVIDADE DE INVESTIGAÇÃO. AUSÊNCIA DE ATRIBUIÇÃO. SITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. JUSTA CAUSA NÃO VERIFICADA. ILEGALIDADE. OCORRÊNCIA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO.

1. Considera-se ilícita a revista pessoal executada por guardas municipais, sem a existência da necessária justa causa para a efetivação da medida invasiva, nos termos do art. § 2º do art. 240 do CPP, bem como a prova derivada da busca pessoal.

2. Tendo a busca pessoal ocorrido sem estar o paciente em situação de flagrância, após dias da prática do crime, por guardas municipais que o abordaram sem fundadas razões, apenas por reconhecer sua foto em postagens na rede social comunitária, realizando verdadeira atividade de investigação, deve ser reconhecida a ilegalidade por ilicitude da prova.

3. Habeas corpus concedido para declarar ilegal a apreensão e, consequentemente, absolver o paciente, nos termos do art. 386, II, do CPP. (HC nº 561.329/SP)

 

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. QUANTIDADE DE DROGAS E GERENCIAMENTO DO TRÁFICO NA LOCALIDADE. PRISÃO EM FLAGRANTE. GUARDA MUNICIPAL. DENÚNCIA ANÔNIMA. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. ILEGALIDADE. INEFICÁCIA DA PROVA. ORDEM CONCEDIDA. EFEITO EXTENSIVO. 1. Consta do decreto prisional fundamentação que em principio deve ser considerada idônea, com esteio na quantidade de droga apreendida com a paciente – 104,60g de maconha e 112,24g de cocaína – e no fato de (supostamente) gerenciar o tráfico de drogas na localidade. Precedentes. 2. Na hipótese, entretanto, os guardas municipais "receberam denúncia anônima no sentido de que no endereço [...] estaria ocorrendo uma reunião de dirigentes do tráfico de drogas de Sertãozinho e que lá estaria guardada grande quantidade de drogas, razão pela qual se dirigiram ao local". 3. Desempenhada atividade de investigação criminal pela guarda municipal, deflagrada mediante denúncia anônima, desbordante da situação de flagrância (art. 302 - CPP), o que não lhe compete (art. 144, § 8º - CF), deve ser reconhecida a ilegalidade por ilicitude da prova, mormente pelo ingresso no domicilio sem ordem judicial. 4. Habeas corpus concedido para declarar ilegal a apreensão das drogas e, consequentemente, trancar a ação penal ajuizada contra a paciente KATIANE LOURDES DE OLIVEIRA, com extensão do resultado aos demais corréus (art. 580 - CPP). (HC nº 667.461/SP)

 

Aliás, em recentíssimo acórdão, publicado em 27/4/2022, no HC nº 736.926, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca asseverou, ao conceder a ordem de ofício, que

“...No caso, os agentes públicos somente encontraram os entorpecentes após realização de busca pessoal, o que constitui verdadeira atividade de investigação que extrapola as competências previstas para as guardas civis municipais, quais sejam, proteção dos bens, serviços e instalações do município (art. 144, § 8°, CF). Ressalta-se que o crime de tráfico de drogas ilícitas, conquanto permanente, só foi constatado depois da revista pessoal por funcionário público que não é policial, o que evidencia a irregularidade por ausência de causa justa e prévia.” (g. n.)

 

Portanto, o que se percebe é a invasão de competência por consequência de uma atuação açodada dos agentes das guardas municipais e prática ultra vires do órgão municipal, em flagrante violação ao princípio da legalidade que rege a administração pública (art. 37, caput, CF).

Além do mais, como muito bem lembrado pelo Delegado de Polícia Federal Rodrigo Perin Nardi11,

 

Mais recentemente, ao julgar a ADI nº 2575/PR (Info 938) o STF, mais uma vez, reafirmou seu posicionamento sobre a taxatividade dos integrantes dos órgãos de segurança pública, que estão previstos nos incisos I a VI do caput do art. 144 da CF/88. (g. n.)

 

 

Contudo, existem projetos que visam efetivamente incluir as guardas civis no rol do artigo 144 da Constituição Federal, tornando-os de fato “polícias municipais”.

Nesse diapasão, o Delegado de Polícia Civil Marcelo de Lima Lessa, escreveu em artigo publicado na Revista Jus Navigandi12, que

 

Isto posto, claro como a luz que os guardas civis brasileiros, hoje, de fato, são “policiais” em sentido amplo, afinal é inegável que a atividade por eles exercida está, desde há muito, inserida na sistemática da segurança pública nacional, seja na atividade de defesa social; seja na de complemento ao trabalho das Polícias estaduais. Com relação ao uso da expressão “Polícia Municipal”, combatida por alguns segmentos sociais, é certo que tramita no Congresso o Projeto de Lei n° 5488/16 – já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania –, o qual visa assegurar o uso de tal nomeclatura pelas Guardas Civis brasileiras. O projeto visa acrescer, ao art. 21 do Estatuto das Guardas, o vocábulo em questão, a fim de fulminar eventuais questionamentos. Particularmente cremos que o rol previsto no dispositivo em tela não é taxativo, mas sim, exemplificativo, daí a possibilidade de, a qualquer tempo e independente de alteração legal, ser utilizada a máxima “Polícia Municipal” para identificar as Guardas Civis brasileiras. (g. n.)

 

Nada obstante, não há como concordar com a proposta apresentada.

Conforme assentou o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, “isso atende a objetivos corporativistas e não necessariamente é fruto de um debate sobre o papel das guardas. O texto transforma os guardas em carreira policial, mas não toca na atribuição da instituição, dificultando a gestão e administração por parte dos prefeitos”.13

Sem contar, inclusive, a questão de que uma instituição policial tem altos custos para o ente público, com aquisição de armamentos e equipamentos de proteção (hoje se fala até mesmo em compra de fuzis!14). No caso do município, os custos já são altos com educação básica e saúde, os quais devem continuar a ser prioridades, deixando a segurança pública ostensiva na responsabilidade do Estado-membro. Assim, entendemos que a referida proposta ofende a vontade constituinte originária.

Nessa senda, conforme obtemperou o Ministro Rogério Schietti Cruz, o propósito das guardas municipais vem sendo significativamente desvirtuado na prática, ao ponto de estarem se equipando com fuzis, armamento de alto poder letal, e alterando sua denominação para "polícia municipal" (REsp nº 1.977.119-SP).

Com efeito, poderíamos pensar no seguinte caso, por analogia: supondo que os Procuradores Municipais iniciassem, de ofício, massiva fiscalização sobre os negócios públicos municipais, com oferecimento de ações civis públicas e ações de ressarcimento ao erário por improbidade administrativa, conforme autoriza o artigo 5º, inciso III, da Lei Federal nº 7.347/1985, nem por isso poderiam postular os seus membros a transformação de seus cargos em “Promotores Municipais”, sob pena de subversão da vontade constitucional, visto a provável confusão de atribuições com os Promotores Estaduais (de Justiça).

Dessa forma, o mesmo raciocínio se aplica às guardas municipais, as quais devem subscrever sua atuação no âmbito da delimitação constitucional, e não exercerem atividades em concorrência com a polícia militar, enquanto os bens, serviços e instalações municipais carecem de proteção, como tem hodiernamente ocorrido, visto termos observado na impressa, por exemplo, várias agressões de alunos a professores em escolas públicas15.

Aliás, exatamente nesse sentido escreveu em artigo no ConJur o Procurador de Justiça Luiz Antônio Guimarães Marrey, para quem

 

A Guarda Municipal pode ser útil mantendo-se no estrito limite constitucional de sua existência, estando presente nos parques e escolas municipais e suas proximidades, nos terminais municipais de transportes, nos prédios municipais, nos mercados municipais e atuando junto a serviços municipais no seu regular exercício do poder de polícia municipal. Se isso efetivamente ocorresse já seria ótimo e desoneraria a polícia estadual de ter presença nesses locais. Como é óbvio, o exercício do poder de polícia municipal, nas atividades que lhe são próprias, não se confunde com a atividade de polícia judiciária ou de manutenção da ordem pública, deferidas aos estados. No entanto, em diversas cidades, não é isso que ocorre, sendo o limite claramente ultrapassado, com tolerância ou autorização do prefeito municipal e omissão de autoridades que deveriam impor o limite da lei, em nome da necessidade de segurança pública ou do justo temor dos cidadãos quanto à criminalidade. (g. n.)

 

Outrossim, como muito bem asseverou o advogado Marcelo Silva Souza em trabalho publicado na revista Jus Navigandi16,

 

Cumpre destacar que a proteção definida no § 8º do artigo 144 da Constituição refere-se à zeladoria do município, ou seja, à proteção ao patrimônio municipal, pois se contrário fosse à vontade do legislador constituinte originário, teria definido a guarda municipal como órgão de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas (…) E, ainda, jamais, evidentemente, podemos equiparar pessoas a bens, portanto, há uma limitação constitucional nas atribuições das guardas municipais. (g. n.)

 

Portanto, não se pode querer consertar o problema da segurança pública criando um outro problema, no caso para o erário e a gestão municipal.

O ideal, no caso do policiamento ostensivo, é o investimento nas Polícias Militares por meio dos recursos estaduais.

Concluindo, é dever do legislador assegurar a máxima efetividade das normas constitucionais, sob pena de torná-la letra morta, e posteriormente cair em descrédito perante a sociedade, haja vista que, no caso em apreço, não há margem para interpretações possíveis ou alternativas, sendo a guarda municipal como instituição não integrante do policiamento ostensivo e preventivo a única interpretação possível.

Ademais, ousaríamos dizer que, nem mesmo por emenda constitucional seria possível alterar o atual esquema constitucional de segurança pública para incluir as guardas no rol do artigo 144, sem grave prejuízos ao seu harmônico e sistêmico funcionamento, principalmente tendo em vista os recursos disponíveis no âmbito dos municípios para fazer frente aos seus serviços.

Igualmente, não vemos como o julgado na ADI nº 6.621/TO possa alterar o entendimento aqui esposado, visto tratar exclusivamente sobre o quadro dos servidores da polícia científica do Estado, órgão sem caráter policial!17

Contudo, no RE nº 608.588-SP foi fixada a seguinte premissa de repercussão geral, a qual ainda está pendente de solução: 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ATRIBUIÇÕES DE GUARDA CIVIL METROPOLITANA. DISCUSSÃO ACERCA DOS LIMITES E DO ALCANCE DA RESERVA LEGAL CONTIDA NO ART. 144, § 8ª, DA LEI MAIOR. NECESSIDADE DE FIXAÇÃO DE PARÂMETROS OBJETIVOS E SEGUROS PARA NORTEAR A ATUAÇÃO LEGISLATIVA MUNICIPAL DA MATÉRIA. AUSÊNCIA DE PRECEDENTE ESPECÍFICO E DE ALCANCE GERAL. NECESSIDADE DE DEFINIÇÃO DO PLENÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. 

Finalmente, cumpre sublinhar que a decisão monocrática proferida no RE nº 1.281.774-SP em 10/5/2022 não altera o entendimento adrede exposto, haja vista tratar unicamente da prisão em flagrante, a qual pode ser realizada por qualquer do povo, nos termos do artigo 301 do Código de Processo Penal. 

Aliás, o acórdão reformado nos autos nº 1500389-30.2018.8.26.0599 é cirurgico quanto obtempera que "o art. 144, § 8º, da Constituição Federal atribui aos guardas municipais a proteção dos bens, serviços e instalações municipais. Atividades deinvestigação e policiamento ostensivo, conforme expresso nos demais parágrafos domesmo artigo, constituem função das polícias civil e militar".

Concluindo, para evitarmos maior insegurança jurídica sobre a sua natureza jurídica e atribuição, sugerimos que as guardas municipais fossem retiradas do artigo 144 e postas como competências dos municípios no artigo 30 da Carta Política Federal, pacificando-se de vez a questão, sem olvidar da definição de parâmetros pelo STF em relação ao legislador municipal.

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Sobre o autor
Celso Bruno Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. A guarda civil municipal não é órgão da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6884, 7 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97322. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

"Porque segurança e proteção têm pouco a ver com proteção penal ou com aumento da repressão, isto é, o controle da criminalidade tem pouco a ver com o controle penal. Por que mais policiais, mais juízes, mais prisões significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos." Paulo Queiroz.

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