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O fenômeno da serendipidade na perscrutação criminal

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O fenômeno da prova achada não se confunde com o da prova emprestada.

ASPECTOS GERAIS

 A serendipidade, também conhecida como encontro fortuito ou casual de provas, traduz-se na descoberta de novos delitos (ou novos sujeitos) que não são objetos da investigação em curso. Inicialmente, no cumprimento de uma diligência relativa a um delito, a autoridade policial casualmente encontra provas pertinentes à outra infração penal, que não estavam na linha de desdobramento normal da investigação.

Para alguns autores de renome, a serendipidade constitui-se em verdadeiro teorema principiológico para o processo penal. Nestor Távora e Rosmar Alencar (2016, p.784) a definem da seguinte forma:

A aplicação da serendipidade para entender válida a prova encontrada casualmente é que nos dá a ideia da existência de um princípio. Tal princípio, que exigirá a presença de certos requisitos, possibilita reconhecer como lícita a prova ou a fonte de prova de outra infração penal, obtida no bojo de investigação cujo objeto não abrangia o que foi, inesperadamente, revelado.

Basicamente, com a devida observância do princípio da serendipidade, justifica-se a licitude das provas colhidas fortuitamente ao longo da instrução.

Geralmente, o encontro casual de provas acontece no decorrer de interceptações telefônicas autorizadas judicialmente. Caso paradigmático que ilustra fidedignamente o fenômeno da serendipidade foi julgado no bojo do HC 129678/SP, de relatoria do Min. Marco Aurélio.

Em linhas gerais, foi instaurada operação policial para investigar o crime de tráfico de drogas que seria praticado por João. O juiz deferiu a intercepção telefônica do número de aparelho celular utilizado pelo investigado. No entanto, no curso da referida interceptação, pelos diálogos mantidos, ficou constatado que João ordenou o homicídio de um inimigo seu, o que foi cumprido por um comparsa. O Ministério Público ofereceu denúncia contra João e seu comparsa pela prática de homicídio qualificado. A defesa do réu arguiu a nulidade da prova colhida, considerando que a interceptação foi autorizada pelo juiz com o objetivo de apurar o delito de tráfico de drogas (e não eventual homicídio).

Nesse contorno, o Supremo Tribunal Federal assentou que a prova obtida a respeito da prática do homicídio é lícita, mesmo a interceptação telefônica tendo sido decretada para investigar outro delito que não tinha relação com o crime contra a vida. Na presente situação, tem-se aquilo que o Min. Alexandre de Moraes chamou de crime achado, ou seja, uma infração penal desconhecida e não investigada até o momento em que, apurando-se outro fato, descobriu-se esse novo delito.

Cumpre frisar, à guisa de complementação, que a interceptação telefônica não constitui o único instrumento apto a revelar provas casuais. Não obstante tratar-se de meio de prova mais comum em relação à serendipidade, meios de prova como a quebra de sigilo bancário e fiscal, além dos procedimentos de busca e apreensão também são vertentes que, por vezes, transluzem provas de infrações ainda não conhecidas.

É o exemplo do HC 129678/SP, julgado pela 1ª turma do Supremo Tribunal Federal: 

Em 2014, A Polícia Federal instaurou inquérito policial para apurar o suposto delito de fraude contra licitação (art. 90 da Lei nº 8.666/90) praticado por determinados sujeitos. A requerimento da autoridade policial e do MPF, o juiz decretou uma série de medidas cautelares, dentre elas a quebra do sigilo bancário e fiscal. No decorrer do cumprimento das medidas, a polícia detectou a existência de indícios de que João teria praticado também o delito de peculato (art. 312 do CP).

CLASSIFICAÇÕES 

O encontro casual de provas pode ser classificado da seguinte forma:

1) Serendipidade subjetiva: As novas informações apuram a participação de um indivíduo que, a priori, não fazia parte do ilícito.

2) Serendipidade objetiva: As novas informações, por sua vez, apuram a existência de novas infrações penais.

2.1) Serendipidade objetiva de primeiro grau: As infrações descobertas fortuitamente guardam conexão com a infração preliminarmente apurada. Citemos o exemplo da descoberta do crime de ocultação de cadáver durante as investigações que apuram o crime de homicídio.

2.2) Serendipidade objetiva de segundo grau: As infrações descobertas fortuitamente não guardam conexão com a infração preliminarmente apurada. Nesse sentido, será lícita a prova de homicídio colhida ao longo de uma interceptação que investigue o crime de tráfico de drogas.  

 SERENDIPIDADE SUBJETIVA

No esteio da serendipidade subjetiva, é possível que autoridades públicas, por vezes detentoras de foro por prerrogativa de função, estejam relacionadas aos crimes apurados. Nesses casos, a simples menção ao nome de autoridades detentoras de prerrogativa de foro, seja em depoimentos prestados por testemunhas ou investigados, seja na captação de diálogos travados por alvos de censura telefônica judicialmente autorizada, assim como a existência de informações, até então, fluidas e dispersas a seu respeito, são suficientes para o deslocamento da competência para o juízo hierarquicamente superior?

Para o STJ, a captação fortuita de diálogos mantidos por autoridade com prerrogativa de foro não impõe, por si só, a remessa imediata dos autos ao Tribunal competente para processar e julgar a referida autoridade, sem que antes se avalie a idoneidade e a suficiência dos dados colhidos para se firmar o convencimento acerca do possível envolvimento do detentor de prerrogativa de foro com a prática de crime[1]. In casu, as investigações denotaram sinais claros de estreita ligação entre um bicheiro e um senador.

Em suas razões, a Corte destacou três consequências negativas que poderiam ser evitadas com a observância dos critérios da idoneidade e da suficiência dos dados antes do declínio de competência da ação, tais como: a) prejuízo às investigações; b) sobrecarga acentuada aos Tribunais; c) suspeitas prematuras sobre a autoridade cuja honorabilidade e respeitabilidade perante a opinião pública.

Em verdade, há de se ter certo cuidado para não se extraírem conclusões precipitadas ante a escuta fortuita de conversas. Em certos casos, a existência de proximidade espúria da autoridade pública com as pessoas investigadas somente vai ganhando contornos na medida em que a investigação se aprofunda, sem que seja possível ao magistrado delimitar, imediatamente, a ocorrência dessa relação. Somente com a continuidade por determinado período das interceptações, mostra-se possível serem alcançados resultados mais concludentes sobre o conteúdo das conversas interceptadas (STJ. 6ª Turma. HC 307.152-GO).   

SERENDIPIDADE OBJETIVA

Concernente à serendipidade objetiva, a doutrina majoritária adota como critério de legalidade a existência de conexão entre o crime descoberto e o crime investigado. Se houver conexão entre eles (como no exemplo do tráfico e da lavagem), não há dúvida de que a interceptação pode, sim, ser utilizada como elemento de prova. E neste caso, não importa se o crime descoberto é punido com reclusão ou detenção. Nesse sentido, Nestor Távora e Fábio Roque Araújo (2022, pág.410).

Outrossim, diante da inexistência de conexão entre os crimes, não há que se falar em elementos probatórios, mas em mera notitia criminis. Nesse contexto, imagine que em uma interceptação telefônica voltada à apuração do crime de organização criminosa, determinado indivíduo confesse a prática do crime de embriaguez ao volante.

De outro modo, doutrinadores de renome admitem o rompimento da conexão entre os crimes nos casos em que a infração penal achada ainda esteja em fase de planejamento. Subsume-se, portanto, que a discussão a respeito da conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente só se coloca em se tratando de infração penal pretérita, porquanto no que concerne às infrações futuras, o cerne da controvérsia se dará quanto a licitude ou não do meio de prova utilizado e a partir do qual se tomou conhecimento de tal conduta criminosa.  

Cabe salientar que a celeuma acerca da conexão (ou não) entre os crimes limita-se ao âmbito doutrinário. Em sede jurisprudencial, a serendipidade é um fenômeno consolidado!

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Em 2017, O Supremo Tribunal Federal considerou como lícita a prova de um crime de homicídio revelada no bojo de uma interceptação que acompanhava o deslinde de uma operação criminosa diversa. Para o Min. Alexandre de Moraes, a prova é considerada lícita, mesmo que o crime achado não tenha relação (não seja conexo) com o delito que estava sendo investigado, desde que tenham sido respeitados os requisitos constitucionais e legais e desde que não tenha havido desvio de finalidade ou fraude.

SERENDIPIDADE X PROVA EMPRESTADA.

A prova emprestada caracteriza-se pelo compartilhamento do material probatório entre processos distintos daquele em que foi produzido.

Inicialmente, o empréstimo de elementos probatórios restringe-se ao âmbito cível. No entanto, com a devida observância de alguns requisitos, é possível que as provas sejam extraídas de processos distintos:

1. Mesmas partes: As partes envolvidas nos dois processos devem ser as mesmas.

2. Mesmo fato probando: O fato objeto dos dois processos deve ser o mesmo.

3. Contraditório: A prova deve ser produzida sob o crivo do contraditório.

4. Preenchimento dos requisitos legais: A prova deve ter sido produzida com o cumprimento dos requisitos legais, a exemplo do que ocorre com a prova pericial, que deve ser produzida por um perito oficial ou, na falta deste, dois peritos não oficiais.

 Observe um exemplo:

No curso de uma investigação aberta para apurar tráfico de drogas, o juiz da vara criminal decretou a interceptação telefônica dos suspeitos. Durante os diálogos, constatou-se a participação de João, militar, que não era inicialmente investigado. Ficou constado que ele praticou crime militar (concussão art. 305 do CPM). Diante disso, João foi denunciado na Justiça Militar e os demais na vara criminal comum. A pedido do Ministério Público, o juiz da auditoria militar requereu ao juiz da vara criminal comum as interceptações telefônicas que haviam sido decretadas por ele. Os diálogos interceptados foram fornecidos e juntados aos autos do processo penal militar como prova emprestada, oriundos da vara criminal. (STJ. 6ª Turma. REsp 1.795.341-RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 07/05/2019)

 Observe que a exigência do contraditório constitui requisito essencial para a validade da prova emprestada. Na serendipidade, no entanto, não subsiste tal exigência.

Ademais, a prova que é proveniente de outro processo ingressa no processo atual como verdadeira prova documental, independentemente da natureza que ela possuía no processo originário. Assim, por exemplo, se realizada uma perícia em um processo anterior, ela for juntada ao processo posterior, neste último ela terá o caráter de prova documental (não mais prova pericial). E se em um primeiro processo é colhido o depoimento de uma testemunha, depoimento este juntado ao segundo processo, ele passa a ter igualmente a natureza de prova documental.

Dessume-se, portanto, que o fenômeno da prova achada não se confunde com a prova emprestada.


[1] STJ. 6ª Turma. HC 307.152-GO, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 19/11/2015 (Info 575).

[2] STJ. 6ª Turma. REsp 1.795.341-RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 07/05/2019

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Sobre o autor
Humberto Teófilo de Menezes Neto

- Deputado Estadual. - Delegado da Polícia Civil do Estado de Goiás.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NETO, Humberto Teófilo Menezes. O fenômeno da serendipidade na perscrutação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6978, 9 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99576. Acesso em: 18 abr. 2024.

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