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Guardar segredo ainda é necessário?

Sobre o sigilo profissional e sacramental no Direito

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Um breve ensaio acerca dos temas do sigilo profissional e do sigilo sacramental, perpassando por alguns dispositivos legais do direito positivo brasileiro e o direito canônico, apresentando possíveis semelhanças e/ou divergências.

RESUMO: É certo que toda sociedade, composta pelas diferentes classes de pessoas, tem sua estrutura e características próprias. A presente pesquisa visa apresentar alguns dispositivos do Direito positivo brasileiro e suas semelhanças e/ou divergências, com ênfase na estrutura própria do Direito Canônico da Igreja Católica, sobre o tema do sigilo, seja ele profissional ou sacramental, quando no âmbito religioso. Através de uma pesquisa documental e bibliográfica, será possível refletir sobre a importância do segredo profissional e sacramental, principalmente como maneira de manter a ordem e a plena confiança entre as pessoas, bem como concluir que, embora haja algumas divergências ou, até mesmo, possíveis brechas legais, o direito permanece como principal ordenador da sociedade, além de protetor das garantias de direitos e deveres dos indivíduos.

Palavras-chaves: Sigilo profissional; sigilo sacramental; Leis e Códigos.


1 INTRODUÇÃO

Assim também a língua, embora seja pequeno membro do corpo, se jacta de grandes feitos! Notai como pequeno fogo incendeia floresta imensa. Ora, também a língua é fogo. Como o mundo do mal, a língua é posta entre os nossos membros maculando o corpo inteiro e pondo em chamas o ciclo da criação, inflamada como é pela geena. (BÍBLIA SAGRADA, 2012, pg. 2110; Tg 3, 5-6).

As palavras de São Tiago vêm em contraposição com a atual crise da sociedade moderna. Um dos grandes erros humanos é a falta de discernimento. As pessoas parecem ter perdido o senso de saber o melhor momento para silenciar e para falar. Existem aqueles que silenciam demais, e, por causa disso, acabam por permitir, mesmo que inconscientemente, a ocorrência de situações desagradáveis. Por outro lado, existem aqueles que, como bons mestres da verdade, da sabedoria e da inteligência, entendem-se como os senhores donos das respostas ou, como afirma a expressão popular, os donos da verdade, ou seja, para cada problema ou diante da diversidade das situações, essas pessoas sempre têm uma resposta rápida, concisa e, no entendimento delas mesmas, inteligente.

Com o desenrolar do tempo, percebe-se, cada vez mais fortemente, o esvaziamento da verdade e o crescimento das mentiras. As fake news, que tomam conta dos ambientes publicitário e juvenil, e estendem-se a todas as classes, têm dominado o universo da informação. Exemplo disso se dá no período permitido para o início das propagandas publicitárias eleitorais, onde, além das inverdades prometidas pelos candidatos aos cargos públicos para os mais pobres e necessitados, tantas outras são divulgadas para prejuízo do candidato concorrente, chegando, inclusive, a ferir a moralidade da pessoa. Outros exemplos e, talvez, um dos maiores e mais atuais, sejam as notícias falsas sobre a pandemia do Covid-19 e o impacto causado no mundo e em nosso país.

Em um tempo de comunicação de massa, no qual toda informação é "queimada" e com ela, infelizmente, também muitas partes das vidas das pessoas, é necessário reaprender o poder da palavra, seu poder construtivo, mas também seu potencial destrutivo. (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 2000, não paginado; tradução nossa).

Qual a importância disso na reflexão sobre o sigilo profissional e o sigilo sacramental no âmbito religioso, do qual aborda o presente ensaio?

As verdades ou inverdades que são produzidas, necessariamente, passam por uma divulgação, que tem como objetivo elevar ou destruir a imagem do outro ou de determinado grupo. Assim, entendemos que tudo aquilo que é publicado gera algum tipo de efeito, seja para aquele que divulga, seja para aquele que é objeto da notícia. Nesse sentido, entende-se, claramente, a necessidade do respeito incomunicável à inviolabilidade do sigilo, independente das circunstâncias, tendo em vista a gravidade do que está sendo confidenciado e a dignidade daqueles que, de alguma maneira, estão envolvidos.

A seguir, analisaremos uma série de dispositivos legais, dos variados Códigos legislativos da Federação brasileira, endossando o respeito ao sigilo profissional:


2 ARTIGO 5º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988:

Todo brasileiro, ao atingir a maturidade intelectual, ouve falar sobre o quinto artigo da Magna Carta. No entanto, o que nem todos sabem, é a sua real importância na garantia dos direitos e deveres fundamentais coletivos e individuais, como segue:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Ao tratar sobre a inviolabilidade da intimidade da pessoa, a Constituição Federal alude à outra realidade intrínseca a todo indivíduo: o direito à dignidade. Todos os seres humanos possuem dignidade, que, embora tenha um conceito abstrato, poderia ser resumida através da mesma ideia de respeito, de valores morais e do resguardo de direitos inatos ao ser humano. Ao comentar sobre o art. 5º, inc. X, da Constituição Federal, J. M. Othon Sidou escreve: O direito à intimidade é, pois, o direito à dignidade, desde que é aí que ele vai buscar todo o seu conteúdo digno. (1989, pg. 79).

A importância do princípio da dignidade da pessoa humana fica claramente expressa pela própria Constituição Federal em seu art. 1º, quando, ao elencar os princípios fundamentais, a descreve no inciso III. Assim, fica cristalina a existência de uma relação entre os direitos à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, e o princípio da dignidade da pessoa humana, cujo interesse é defender o lugar da pessoa na sociedade.


3 ARTIGO 229 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO:

Art. 229. Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: (Revogado pela Lei n º 13.105, de 2015);

I - A cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo; (Revogado pela Lei n º 13.105, de 2015);

O art. 229, inc. I, do Código Civil, revogado pela Lei nº 13.105, de 2015, abordava sobre o mesmo assunto em apreço. Entretanto, embora tenha sido revogado, sua eficácia é perdurável através de outro dispositivo legal presente no Código de Processo Civil, como é possível conferir:


4 ARTIGO 388 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO:

Art. 388. A parte não é obrigada a depor sobre fatos:

II - A cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo;

O citado artigo informa sobre a possibilidade do depoimento ou recusa deste por parte de quem, por estado ou profissão, deve resguardar-se de tornar público algo que lhe tenha sido confidenciado em segredo.

Nesses dois últimos dispositivos legais, percebemos que o dever de prestar depoimento encontra um certo limite quando observadas as pessoas que, por motivos profissionais, não devem prestar quaisquer declarações sobre o que têm conhecimento dos fatos. Embora existam exceções, o devido cumprimento do sigilo profissional está relacionado à convivência social dos indivíduos para a manutenção da ordem pública. Observe-se o exemplo dado pela jurisprudência:

O sigilo profissional é exigência fundamental da vida social que se deve ser respeitado como princípio de ordem pública, por isso mesmo que o Poder Judiciário não dispõe de força cogente para impor a sua revelação, salvo na hipótese de existir específica norma de lei formal autorizando a possibilidade de sua quebra, o que não se verifica na espécie. O interesse público do sigilo profissional decorre do fato de se constituir em um elemento essencial à existência e à dignidade de certas categorias, e à necessidade de se tutelar a confiança nelas depositada, sem o que seria inviável o desempenho de suas funções, bem como por se revelar em uma exigência da vida e da paz social. (Recurso em Mandado de Segurança nº 9.612-SP. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Exmo. Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha. Data do julgamento: 03.09.1998. Quarta turma. Data da publicação: Diário da Justiça do dia).


5 ARTIGO 154 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa de um conto a dez contos de réis.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

O dispositivo legal, como é próprio do Direito criminal, traz a penalidade referente à violação do direito à intimidade e ao sigilo profissional. Contudo, além de penalizar o ato criminoso, o citado artigo faz a seguinte observação: cuja revelação possa produzir dano a outrem. Isso conduz a interpretação no que se refere à vida particular do indivíduo na sociedade em que está inserido.

Todos os seres humanos, tendo alcançado idade para tal, precisam saber resolver seus conflitos, sejam eles criados por si mesmos, ou aqueles que surgem com o decorrer do tempo. Entretanto, existem situações que necessitam de auxílio, muitas vezes profissional. Assim, se o direito ao sigilo profissional não for resguardado e devidamente cumprido, a quem recorrer quando o assunto assim o exigir?

Os fatos confidenciados a um profissional devem ser protegidos, e, se as circunstâncias exigirem, até ocultados, pois, podem dizer respeito à vida particular, a um trauma vivenciado, ou a alguma situação delicada da qual o confidente não sabe como agir por si mesmo.

Os direitos dos homens devem ser resguardados pelo Estado, tendo em vista que a violação destes afeta, além do próprio indivíduo, as condições da vida social. Ora, violar os direitos de uma pessoa, chamada vítima, é muito mais prejudicial do que o prejuízo causado ao Estado. Contudo, o Estado não deve eximir-se de sua responsabilidade de proteger à pessoa e a sociedade onde ela está inserida, salvaguardando seus direitos e protegendo seus interesses.

Dos bens ou interesses tutelados pelo Estado (por meio das normas), uns existem cuja violação afeta sobremodo as condições de vida em sociedade. O direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. O ilícito penal atenta, pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social.

Mas como esses bens ou interesses são tutelados em função da vida social, como tais bens ou interesses são eminentemente públicos, eminentemente sociais, o Estado, então, ao contrário do que ocorre com outros bens ou interesses, não permite que a aplicação do preceito sancionador ao transgressor da norma de comportamento, inserta na lei penal, fique ao alvedrio do particular. Conforme acentua Fenech, quando ocorre uma infração penal, quem sofre a lesão é o próprio Estado, como representante da comunidade perturbada pela inobservância da norma jurídica e, assim, corresponde ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos, tomar a iniciativa motu proprio, para garantir, com sua atividade, a observância da lei. (TOURINHO FILHO, 1994, pg. 11).

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O Estado tem como encargo a representação do povo, isso implica a necessidade de que ele assuma a sua função de maneira objetiva, quando necessário, punindo os crimes e lesões penais perturbadoras dos direitos, como garantia da observância das leis e do ordenamento social e comunitário.

Por essa razão, quando se comete uma infração penal, quem sofre a lesão é o próprio Estado, a par da lesão sofrida pela vítima. Observe-se como muito bem recorda Aníbal Bruno, que muitos autores distinguem, no crime, um sujeito passivo geral, genérico ou constante, que é o Estado, sob a alegação de que há sempre um interesse público violado pelo crime e um sujeito passivo particular, que é o titular do bem jurídico ofendido (Direito Penal, t. 2, p. 562). (TOURINHO FILHO, 1994, pg. 12).

Sobre a intervenção do Estado no conflito, para o restabelecimento e manutenção da ordem na sociedade, percebe-se a importância da criação e do cumprimento das leis penais, tendo em vista que elas, além do caráter punitivo, possuem o caráter preventivo, ou seja, protege que outros ilícitos, de igual ou diferente natureza, retornem a ocorrerem na comunidade humana.


6 ARTIGO 207 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Art. 207.  São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

Algumas profissões e atividades, senão todas, são geridas pelo princípio da confiança entre superiores e subordinados. No entanto, existem aquelas que necessitam do sigilo para alcançarem a finalidade de seu objetivo ético. Tal sigilo, que tem por efeito preservar a pessoa que confidencia algo a outra, sobrepõe-se à busca e a análise total da verdade requeridas no processo penal, cuja inobservância é punível pelo art. 154 do Código Penal. O Código de Processo Penal destaca que estão dispensadas de prestar depoimentos as pessoas cuja função, ministério, ofício ou profissão, tem como característica ética o sigilo de informações.

Para entender as diferenças entre as funções das quais refere-se o dispositivo legal, esclarece Marcellus Polastri (2010), no artigo de Themis Saback (2014):

a) Função: é o exercício de atividade por força de lei, decisão judicial ou convenção, a exemplo do funcionário público, do tutor, dentre outros.

b) Ministério: é a atividade decorrente de condição individual ligada à religião, a exemplo dos padres, irmãs de caridade, pastores, dentre outros.

c) Ofício: é a atividade de prestar serviços manuais, a exemplo do eletricista, bombeiro, etc;

d) Profissão: é qualquer atividade desenvolvida com fim lucrativo, como ocorre com os engenheiros, médicos e advogados.

Os exemplos servem para demonstrar a gravidade do tema do sigilo profissional, pois, a finalidade de guardar o devido segredo direciona-se, especificamente, para determinado grupo de pessoas, por vezes subjugadas a códigos e estatutos próprios, como é o caso dos Conselhos Regionais de Medicina e as regiões do país que possuem leis municipais e estaduais próprias, embora jamais possam contradizer a Constituição Federal ou contrapor-se a ela.

Ocorre que o art. 207 do Código de Processo Penal, inaugura uma novidade: ao final do dispositivo legal, pode-se ler: salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. No entanto, isso gera um conflito no ordenamento jurídico, visto que os profissionais autorizados a não prestarem depoimento por motivo profissional, seriam os mesmos liberados para isso, caso obtivessem a autorização do confidente.

Para ilustrar o conflito de normas, ressalte-se, como exemplo, o disposto no art. 26 do Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil:

Art. 26. O advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte (grifos do autor).

Certo é que, para a manutenção do ordenamento jurídico, a solução se dá através do princípio de especificidade, que explicita que a lei especial derroga a lei geral, uma vez que ela é a possuidora dos requisitos especializantes para o caso conflituoso.

Nesse caso, o art. 207 do Código de Processo Penal deve ser aplicado com prudência, tendo em vista que existem pessoas que estariam impedidas de prestar depoimento, por possuírem regramentos próprios que lhes impõem sigilo, mas, caso autorizadas por seus confidentes, podem apresentar-se para depor.

Inobstante às leis sobre o sigilo profissional, percebe-se, de igual modo, o respeito a inviolabilidade do sigilo sacramental, que está diretamente ligado ao ordenamento religioso sob a orientação do Direito da Igreja Católica Apostólica Romana.


7 A INFLUÊNCIA DO DIREITO NA IGREJA CATÓLICA

Por ser um conjunto de pessoas, marcado pela variedade de características, principalmente pelo fato de estender-se por todos os países do mundo, podemos dizer, sinteticamente, que a Igreja Católica goza do privilégio de possuir um direito próprio, ou seja, uma sequência de leis e normas que servem para organizar suas estruturas internas.

Chama-se direito canônico ao ordenamento jurídico da Igreja católica, vale dizer, ao conjunto de fatores que estruturam a Igreja como uma sociedade juridicamente organizada. Utiliza-se também a expressão direito canônico para fazer alusão à ciência que estuda o ordenamento canônico, como também a disciplina que o ministra nos cursos universitários. (LOMBARDÍA, 2008, pg. 15).

O Direito, por si só, possui o encargo de organizar a sociedade, o povo, e, com o Direito Eclesial não é diferente, uma vez que ele existe para a organização da Igreja e influencia, diretamente, nas estruturas das civilizações, tendo em vista que a Igreja Católica não se reduz a uma pequena organização ou grupo local de pessoas, mas possui raízes nos mais variados países do mundo e, inclusive, neles constitui novas formas de expressar a fé, sem, nem mesmo, perder a originalidade e a comunhão com as demais comunidades católicas do mundo.

Objetivando uma primeira aproximação deste tema, é suficiente afirmar que a função do direito na Igreja se entende a partir de uma correta visão das relações entre as aludidas noções de povo, comunidade e sociedade. Porque a Igreja é povo, nela se propõe o tema com evidente dimensão de justiça de que aos fiéis a todos e a cada um devem ser reconhecidas as consequências concretas de sua dignidade de filhos de Deus. Visto ser comunidade, existe uma dimensão de justiça nas relações de solidariedade na posse dos bens e objetivos comuns; donde a existência de direitos e deveres relacionados com a conservação e a pregação da Palavra de Deus e com a celebração e a administração dos sacramentos, patrimônio comum da Igreja. Finalmente, por ser um ente social unitariamente organizado, existem direitos e deveres concretos em relação à tutela da unidade da Igreja, algumas esferas de autonomia e de ação livre e responsável comuns a todos os membros da sociedade-Igreja e, igualmente, uma delimitação das atribuições e competências das diversas peças de sua organização oficial, nas quais existe uma distinção hierarquizada de ministérios e funções. (LOMBARDÍA, 2008, pg. 20).

7.1 O cânon no Direito Eclesial

No âmbito jurídico eclesial, percebe-se que até a nomenclatura da apresentação das leis é diferente daquela usada na legislação brasileira. No Direito público, quando é necessário citar algum dispositivo legal, denomina-se como artigo, porém, no Direito Canônico, embora a compreensão legal seja a mesma, a nomenclatura passa a ser cânon.

A origem do termo cânon possui alguns significados divergentes, porém, são os Padres da Igreja quem o compreenderão com uma conotação de normas que serviriam para ordenar o falar e o agir de cada indivíduo. Posteriormente, porém, o mesmo termo passa a ser utilizado para designar a lista oficial dos livros da Escritura Sagrada.

A concepção linguística originária do grego da palavra kanón, traz a ideia de uma haste, uma espécie de régua utilizada pelo carpinteiro na medição geométrica de suas obras, garantindo-lhe maior perfeição em seus trabalhos. Essa mesma ideia é incutida na realidade normativa, tendo em vista que o desejo era alcançar maior precisão nas estruturas humanas e sociais.

Trazendo a concepção de cânon para o Direito Eclesial, ou seja, o Direito da Igreja Católica, percebe-se que a mesma haste que servia para dar perfeição à obra do carpinteiro, deve ser utilizada para dar perfeição às estruturas da sociedade humana, de maneira que as leis canônicas não deveriam ser vistas como fardos, mas, como auxílio e proteção dos direitos e deveres daqueles que estão sob sua tutela.

Para que isso se concretize na vida comunitária e social, são necessárias as normas, ou seja, o conjunto de leis que ditem como devem ser os comportamentos e a penalidade que recebem aqueles que não os cumprem, ou seja, querem a orientação da Igreja, mas não querem viver um estado de subordinação a ela.

Quanto a proteção dos direitos dos fiéis, ou seja, daqueles que, por razões de fé e crença, decidem-se por subordinarem-se aos ensinamentos de determinada religião, é aplicado o mesmo princípio legal do direito positivo: o princípio da legalidade.

7.2 Princípio da legalidade

O princípio da legalidade tem fundamento no art. 5º, II da Constituição Federal, que reza: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Tal dispositivo constitucional, tem origem francesa através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que traz a seguinte declaração em seu art. 5º: A Lei não proíbe senão as ações prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene (grifos do autor).

Dessa maneira, em sentido estrito, o princípio da legalidade veda a possibilidade da criação de direitos não previstos em lei, ou seja, sem uma lei oficial que os ordene, a imposição de deveres e a aplicação de penalidades por parte do Estado (aqui compreendido no mesmo sentido de Administração, ou seja, órgãos que possuem poder legislativo ou autoridade competente particular) seria abusar do poder legal do qual são dispensários.

Também aí se enquadra o ensinamento de Gilmar Ferreira Mendes, em seus comentários ao art. 5º, II, da Constituição, quando afirma que a ideia expressa nesse dispositivo é a de que somente a lei pode criar regras jurídicas (Rechtsgesetze), no sentido de interferir na esfera jurídica dos indivíduos de forma inovadora. Toda novidade modificativa do ordenamento jurídico está reservada à lei. E acrescenta o autor que, quando o dispositivo fala em lei, ele está a abranger o bloco de legalidade ou de constitucionalidade, abrangendo tanto a lei como a própria Constituição. Além disso, nesse bloco de legalidade estão incluídas as emendas constitucionais (art. 60), as leis complementares, as leis delegadas (art. 68) e as medidas provisórias (art. 62), estas como atos equiparados à lei em sentido formal. São os atos normativos igualmente dotados de força de lei, ou seja, do poder de inovar originariamente na ordem jurídica. O autor ainda lembra que também os tratados internacionais ratificados pelo Brasil constituem atos equiparados à lei em sentido formal, igualmente dotados de força de lei, com especial relevância para os tratados sobre direitos humanos, os quais, com status de supra legalidade, situam-se na ordem jurídica num patamar entre a lei e a Constituição, tal como fixado na recente jurisprudência do Supremo Tribunal. (DI PIETRO, 2017, não paginado).

Nec delicta maneant impunita. O princípio da legalidade está, de certo modo, compreendido na parêmia latina citada, cujo significado consiste em dizer que os delitos não devem ficar impunes, ou seja, para cada infração deve haver uma justa punição legal como garantia da segurança, reintegração e manutenção da ordem jurídica na sociedade. Assim, cabe aos órgãos competentes a atuação obrigatória diante dos ilícitos, sob as condições previstas em lei.

Isso significa dizer que os órgãos judiciários responsáveis pela persecução (no ordenamento jurídico brasileiro, pode-se citar a Polícia Judiciária e o Ministério Público), pela análise prévia dos fatos e investigação deles para instauração de um procedimento que poderá ou não, dadas as circunstâncias dos fatos apurados, gerar um processo legal, não possuem o direito de optar ou não por fazê-lo. Como ensina Tourinho Filho: os órgãos incumbidos da persecução não podem possuir poderes discricionários para apreciar a conveniência ou oportunidade da instauração do processo ou do inquérito. (1994, pg. 40).

No que tange às infrações penais, torna-se necessário o exercício do jus puniend por parte do Estado que, verificada a possível ocorrência de uma infração penal, deverá aplicar os meios que lhe forem previstos em lei, para que o infrator seja devidamente responsabilizado por seus atos e seja restabelecida a boa convivência social.

A noção do princípio da legalidade pode ser constatada no Direito Canônico através dos cânones 221 e 1.399, que reafirmam a inadmissibilidade da culpabilidade e punição de um indivíduo sem que haja previsão legal. Contudo, o cân. 1.399 traz uma única exceção que diz respeito à gravidade especial da transgressão e a prevenção ou reparação de escândalos. Como observa-se a seguir:

Cân. 221. § 1. Compete aos fiéis reivindicar e defender legitimamente os direitos de que gozam na Igreja, no foro eclesiástico competente, de acordo com o direito.

§ 2. Os fiéis, caso sejam chamados a juízo pela autoridade competente, têm o direito de ser julgados de acordo com as prescrições do direito, a ser aplicadas com equidade.

§ 3. Os fiéis têm o direito de não ser punidos com penas canônicas, a não ser de acordo com a lei.

Sobre o § 3, do cân. 221 e o cân. 1.399, estende-se tal compreensão ao judiciário, administrativo ou hierárquico de acordo com a matéria em análise e as circunstâncias anexas a ela, tendo em vista a prevenção de escândalos que, no âmbito religioso, podem estar envolvidos com o estado de pecado do fiel.

Cân. 1.399. Além dos casos estabelecidos por esta ou por outras leis, a violação externa de uma lei divina ou canônica só pode ser punida com justa pena, quando a gravidade especial da transgressão exige a punição e urge a necessidade de prevenir ou reparar escândalos.

Diante dessa explicação, segue-se a análise de alguns textos sobre o sigilo sacramental e o respeito por sua inviolabilidade no Direito Canônico:

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Sobre o autor
Flávio Wender Meireles Paladino

Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Petrópolis. Graduando em Teologia pela mesma Universidade. Formação acadêmica incompleta em Direito, pela Universidade do Grande Rio..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PALADINO, Flávio Wender Meireles. Guardar segredo ainda é necessário?: Sobre o sigilo profissional e sacramental no Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6990, 21 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99652. Acesso em: 18 abr. 2024.

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