6 DANOS DECORRENTES DO STATUS DE MILITAR COMO CONDIÇÃO DE PROSSEGUIBILIDADE NA SEARA ADMINISTRATIVA E JUDICIAL MILITAR
Conforme exaustivamente apresentado em apontamentos retro, cumpre consignar que o legislador ordinário, estabeleceu que somente o militar poderá ser sujeito ativo do crime de deserção, e após a verificação positiva dos indícios de autoria e prova da materialidade, bem como, da qualidade de militar, das condições gerais da ação e dos pressupostos processuais, será oferecida e, consequentemente, recebida a denúncia para dar início a fase processual penal militar, rito representativo de uma verdadeira condição de procedibilidade.
De certo inferir que na ocasião da praça sem estabilidade não for incluída, vinculando-se novamente à força que o desertou, seja por questões ainda não sabidas ou por inaptidão médica atestada em inspeção de saúde própria, a solução será o arquivamento do feito após manifestação do Ministério Público Militar.
Este requisito especial da ação penal de deserção, de fato deve ser exigido apenas no momento do oferecimento e recebimento da denúncia nos termos do §1°, 2° e 3° do art. 457 do CPPM. No entanto, nos idos dos anos 90, surgiu uma corrente doutrinária a qual defendia que a perda da qualidade de militar no curso do desenvolvimento do processo, em qualquer fase, acarretaria a extinção do feito sem resolução do mérito por ausência de pressuposto processual, atribuindo desta forma ao requisito específico, a natureza jurídica não só de condição de procedibilidade, mas também de prosseguibilidade, inovando, desse modo, no procedimento especial de crime de abandono praticado por praça sem estabilidade, através de uma interpretação extensiva do dispositivo legal, por considerar que a reinclusão se dará no serviço ativo.
Mesmo após a edição da súmula n° 12 do Superior Tribunal Militar, firmando a tese de que a condição de militar é condição de procedibilidade, cuja redação explicita que “a praça sem estabilidade não poderá ser denunciada por deserção sem ter readquirido o status de militar, condição de procedibilidade para a persecutio criminis, através da reinclusão. Para a praça estável, a condição de procedibilidade é a reversão ao serviço ativo”, o Superior Tribunal Militar, por questões de política criminal, vinha consignando entendimentos, em seus julgados, que a perda da qualidade de militar, seja por doença ou por qualquer outro motivo de ordem administrativa ou legal, após o início da ação, era motivo para impedimento do prosseguimento da persecução penal, representando uma condição objetiva de validade para o desenvolvimento regular do processo vinculada à manutenção do status de militar.
Com o passar dos anos, este comportamento passou a gerar transtornos tanto para o judiciário quanto para a administração militar, isto porque, primeiramente, dentro de uma ótica legal, o art. 143 da Lei Maior prevê que o serviço militar é obrigatório. Efetivando o mandamento constitucional, temos preconizado na Lei nº 4.375/64, que serão convocados anualmente, para prestar o Serviço Militar inicial nas Forças Armadas, os brasileiros pertencentes a uma única classe, e será prestado por um período de doze meses, podendo ser reduzido em até seis meses pelos Comandantes das Forças, conforme art. 6, caput e § 1º da Lei, uma vez atingido tais períodos, estará cumprida a obrigação constitucional.
Em segundo plano, extrai-se do Capítulo, do Título VII, do Decreto nº 57.654/66, especificamente, no art. 138, nº 4 do Regulamento da Lei de Serviço Militar (RLSM), que a hipótese de praticar o crime de deserção no período obrigacional do serviço militar, amolda-se a uma espécie de interrupção da prestação militar compulsória, podendo o desertor, conforme o caso, ser desincorporado ou excluído, ocorrendo este último por decorrência do caráter doloso do crime, será, o desertor, considerado isento do serviço militar.
Diante do acima exposto, nota-se que o legislador quis atribuir o instituto das interrupções, a qual apresenta-se como espécie a deserção, apenas àqueles que estão prestando o serviço militar obrigatório ou aos consequentes de convocação posteriores, de aceitação de voluntários e de prorrogação de tempo de serviço, seja em tempo de paz, ou na mobilização. Dessa maneira, o ato administrativo de licenciamento, instituto que ocorre após a conclusão do tempo de serviço militar inicial com a inclusão da praça na reserva mobilizável, depois de ter sido excluída do serviço ativo de uma das Forças Armadas, com base na conceituação dada pelo art. 3º, nº 24 do RLSM, não guarda relação com o instituto da interrupção do serviço militar, logo, não há que falar em impedimento para licenciar o desertor que já concluiu o tempo obrigatório de serviço, como bem expôs no fragmento abaixo, os renomados professores:
"Nunca é demais lembrar que o licenciamento do serviço ativo se dá por término do tempo de serviço, ou seja, a conclusão da obrigação legal, não havendo espaço para a interpretação do licenciamento como forma de interrupção do serviço militar inicial. Não se pode interromper o que já foi concluído. Licenciamento é o ato de exclusão do militar temporário do serviço ativo de uma Força Armada, após o término do tempo de serviço, com a sua inclusão na reserva não remunerada." (ASSIS, 2020, p.14 apud (Assis, 2019, p. 290).
Reforça-se que também, não deve haver prejuízo para o regular andamento da ação penal, pela qual irá responder, o desertor, por conta do crime praticado enquanto ostentava a qualidade de militar. Impedir uma questão meramente administrativa, qual seja o licenciamento do militar temporário que completou o serviço militar obrigatório, mas responde a um processo de deserção na justiça castrense, justificando que influenciará negativamente na esfera processual e na operacionalização das instituições militares, constitui uma notória confusão entre questões de ordem administrativa com questões de ordem processual e flagrante inobservância ao princípio da independência entre as instâncias.
Por consequência não é cabível o judiciário deixar de observar as previsões legais que em algumas circunstâncias autorizam o licenciamento dos réus nos crimes de abandono, e não são, devido a uma equivocada interpretação extensiva dada ao texto da lei adjetiva militar cuja ideia retrata que o processo não poderá prosseguir se o infrator não mais ostentar o status de militar, ainda que quite com o serviço castrense obrigatório, sob pena de inviabilizar tanto o processo penal militar quanto a obrigação constitucional.
Por outro giro, não à toa, no ponto em que trata das causas de interrupção do serviço militar, a Lei nº 4.375/64, recepcionada pela Constituição de 1988, preconiza que na hipótese de incorporado, ainda pendente com a obrigação com o serviço castrense, respondendo processo na justiça militar, permanecerá na sua unidade mesmo como excedente.
Com o intuito de aclarar a questão relatada acima e vincular o entendimento na seara administrativa castrense quanto a possibilidade de licenciamento de militar que responda a processo criminal, em especial nos casos de deserção, surgiu em 2019 o Parecer nº 00031/2019/GAB/CGU/AGU da Consultoria-Geral da União, cuja ementa possui o seguinte teor:
Revisão do Parecer PGR S -017/1986. "Acepção da palavra "incorporado" na Lei do Serviço Militar e no Regulamento da Lei do Serviço Militar e licenciamento. Diferenciação. Possibilidade de Licenciamento de Praça não estável (Incorporado, Engajado ou Reengajado) que responde a inquérito policial militar ou a processo na Justiça Militar, desde que conclua o tempo de serviço a que está obrigado por força do serviço militar inicial ou por força de engajamento ou reengajamento. Crime de deserção. Regramento próprio. "status de militar". Condição de procedibilidade da ação penal. Viabilidadedo licenciamento da praça não estável (engajado ou reengajado) após o recebimento da denúncia. No caso de praça que ainda não tenha concluído o serviço militar inicial, deverá permanecer na força até que encerrada sua obrigação cívica."
E ainda no mesmo ano, a Lei nº 13.954, tratou de incluir o art. 34-A na Lei do Serviço Militar, o qual assevera:
"Art. 34-A. Os militares temporários indiciados em inquérito policial comum ou militar ou que forem réus em ações penais de igual natureza, inclusive por crime de deserção, serão licenciados ao término do tempo de serviço, com a comunicação à autoridade policial ou judiciária competente e a indicação dos seus domicílios."
Desta forma é mister consignar que, impedir o licenciamento de praça temporário, oriundo do serviço militar obrigatório, voluntário, engajado ou reengajado, respondendo a processo de deserção, mas quite com a sua obrigação constitucional militar, sob o fundamento de que a condição de procedibilidade está ligado à manutenção do status de militar, além de violar o princípio constitucional da reserva de administração, o qual veda qualquer ingerência do poder legislativo e judiciário em matérias exclusivamente administrativas, também contribui para uma insegurança jurídica, militares descomprometidos e insatisfeitos na caserna, iniciam uma prática reiterada de ausências desmotivadas, dentre outras transgressões disciplinares, até mesmo os levam a cometerem novos delitos de deserção muita das vezes como meio de vida pela certeza da impunidade ou na busca da extinção da punibilidade pelo alcance da prescrição, ocasiões que não somente oneram os cofres público e corroboram com o enfraquecimento da efetividade processual, como também atingem valores caros aos preceitos castrenses como a ética, dever, hierarquia, disciplina e ordem militares.
Manter um agente nestas condições, é perder uma peça na engrenagem da máquina administrativa militar, visto que jamais poderá aproveitá-lo para desenvolver as atividades operativas, sob risco de ineficácia ou até mesmo à segurança pessoal e material. Assim como, nos termos do art. 82, VIII da Lei nº 6.880/80, não poderá assumir qualquer função, em decorrência do afastamento temporário do serviço ativo, permanecendo agregado por motivo da deserção e após apresentação voluntária ou captura para se ver processar.
Não obstante, os prejuízos não permeiam apenas na seara administrativa e judicial, o próprio militar pode se ver prejudicado com seu direito de seguir outro rumo para sua vida cerceado, diante da real possibilidade de buscar outros objetivos consubstanciados pelo término da sua obrigação militar constitucional. A perda do vínculo com às Forças Armadas não inviabiliza o processado na justiça castrense por um crime cometido à época que ostentava a condição de militar da ativa, afinal o militar que é licenciado se transfere para a reserva mobilizável, portanto, não adquiri absolutamente o caráter civil, apenas fará parte do grupo de cidadãos na condição de militares da reserva não remunerada, conforme entendimento extraído do art. 3° §3° c/c art. 94, § 1° e 121, §4° do Estatuto dos Militares.
Não é diferente o entendimento da súmula nº 17 do Superior Tribunal Militar pela qual afirma que o processo e julgamento dos acusados que, em tese, praticaram crimes militares na condição de militares das Forças Armadas, serão da competência dos Conselhos Especial e Permanente de Justiça.
Outro dano interessante de apresentar e que confirma o equivocado entendimento de que a reinclusão exigida por meio dos §1º, 2º e 3º do art. 457, do CPPM, deva se dar no serviço ativo, é a flagrante ofensa ao próprio art. 2º do Código de Processo Penal militar, no qual trata dos institutos da interpretação literal, extensiva e restritiva na legislação especial militar, a saber:
Interpretação literal
Art. 2º A lei de processo penal militar deve ser interpretada no sentido literal de suas expressões. Os têrmos técnicos hão de ser entendidos em sua acepção especial, salvo se evidentemente empregados com outra significação.
Interpretação extensiva ou restritiva
§1º Admitir-se-á a interpretação extensiva ou a interpretação restritiva, quando fôr manifesto, no primeiro caso, que a expressão da lei é mais estrita e, no segundo, que é mais ampla, do que sua intenção.
Casos de inadmissibilidade de interpretação não literal
§2º Não é, porém, admissível qualquer dessas interpretações, quando:
a) cercear a defesa pessoal do acusado;
b)prejudicar ou alterar o curso normal do processo, ou lhe desvirtuar a natureza;
c) desfigurar de plano os fundamentos da acusação que deram origem ao processo.
Observa-se que o legislador ordinário estabeleceu como regra a interpretação literal das expressões constantes na Lei processual penal militar, embora admita exceções quando os dispositivos se apresentarem manifestamente mais estritos do que queriam, caso em que poderá ser aplicada uma interpretação mais extensiva, e quando se apresentar manifestamente de forma mais ampla do que desejava, caso que poderá ser interpretado mais restritivamente. Mesmo assim, o aplicador da técnica hermenêutica, deve se abster de fugir à regra quando a interpretação não literal cercear a defesa pessoal do acusado, prejudicar ou alterar o curso normal do processo, ou lhe desvirtuar a natureza ou desfigurar de plano os fundamentos da acusação que deram origem ao processo.
Ao enfrentar a grande problemática do trabalho, visualizada nos §1º e 2º, 3º do art. 457 do CPPM, não há dúvidas de que defender no serviço ativo a reinclusão prevista no procedimento especial de deserção para a praça sem estabilidade para se ver processar, representa uma verdadeira condição de prosseguibilidade, que segundo os defensores desta corrente, sem ela ocorrerá o sobrestamento do processo, caracterizando desta forma, uma interpretação extensiva que não se coaduna com a intenção de fato do ente legiferante, cuja qual se limitou a exigir somente a reinclusão do desertor, independentemente, se no serviço ativo ou na inatividade.
Notória é a violação da regra prevista no art. 2º, caput, do CPPM, que determina a interpretação literal do dispositivo. Ainda que a corrente doutrinaria defensora da reinclusão no serviço ativo, fizesse um grande esforço para advogar que esta tese se enquadra nas hipóteses de exceção, não haveria consistência, pois não tem como negar o prejuízo ou a alteração ocorrida no curso normal do processo e a desvirtuação da sua natureza, portanto, possibilidade inadmissível, conforme o art. 2º §2º do diploma processual penal castrense. Com o mesmo entendimento a ilustre professora, Cirelene Maria da Silva Rondon Assis, retrata o seguinte:
"De uma leitura perfunctória dos §§ 1º e 2º do art. 457 do CPPM, não se extrai obscuridade ou manifesta intenção do legislador castrense em ampliar o alcance do requisito de militar da ativa para um momento posterior ao do recebimento da denúncia. Mesmo que assim não fosse, resta evidente que a aplicação do alcance do dispositivo para as fases de instrução e execução penal, certamente altera o curso do processo penal militar, uma vez que cria, mediante exegese, condição objetiva de desenvolvimento válido do processo, que poderá, inclusive, levar a extinção precoce do feito e levar a impunidade do acusado." (ASSIS, 2020, p.11).
Deste modo, percebe-se que deixando de demonstrar a intenção do legislador em estender ou restringir a expressão de um determinado dispositivo, bem como, aplicar entendimento que altere o curso ou adultere a natureza do processo, prejudicará todo o mandamento legal e a natural especificidade da legislação processual penal militar. Assim torna-se de difícil aceitação o posicionamento de que a reinclusão se dá no "serviço ativo" e consequentemente, afasta a adjetivação de condição de prosseguibilidade para o regular andamento processual, exceto na hipótese de o desertor ser considerado em inspeção sanitária, definitivamente incapaz, como outrora explicado.