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Os casos de Piérre Rivière e Febrônio Índio do Brasil como exemplos de uma violência institucionalizada

Os casos de Piérre Rivière e Febrônio Índio do Brasil como exemplos de uma violência institucionalizada

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Sumário: 1. Introdução ao tema. 2. O delinqüente e o doente. 3. Breve análise de casos históricos. 3.1 O caso Rivière. 3.2. O caso Febrônio. 4. Uma crítica à falência das instituições totais: a violência da institucionalização.


1. INTRODUÇÃO AO TEMA.

Hodiernamente muito se tem discutido sobre as medidas alternativas às instituições totais. Salvo juízo melhor, o discurso parte de uma premissa equivocada, qual seja: o sistema faliu pela ausência de vontade política, pela péssima administração, por falta de condições econômicas, etc.

Na verdade, a questão é outra. Mesmo sem a falência do sistema – que já é senso comum – as instituições totais seriam uma espécie de violência criada pela sociedade moderna e já estariam elas, desde sua criação, fadadas ao insucesso. As instituições totais como por exemplo as prisões e os manicômios (como parte do sistema repressivo penal) servem como instrumento de controle social, verdadeiros aparatos estatais destinados a punições. Trata-se, evidentemente, de violência institucionalizada, uma característica da sociedade moderna. (1)

O tema violência é próprio para um enfoque transdisciplinar. Sob essa visão é que passamos a esgrimir algumas considerações. Cabe demonstra, o que já é presente no imaginário jurídico, que a justiça criminal e a psiquiatria estão infinitamente ligadas, obviamente por tratarem do comportamento desviante do homem (delinqüente/doente).

Basta lançarmos um olhar retrospectivo pela história que veremos a problemática do doente, do criminoso e de outras categorias sociais que podem ser incluídas nesta classificação. Há dois exemplos históricos dignos de referência e que constituem em exemplos singulares e permitem uma reflexão mais aprofundada sobre atemática em foco. Caso como o do jovem francês Pierre Riviére, ralatado na famosa obra de Michel FOUCAULT, e o intrigante caso de Febrônio Índio do Brasil, descrito por Peter FRY, mostram com hialina clareza a necessidade da distinção entre o doente mental e o delinqüente e, ainda, demonstram que as instituições totais geram a própria institucionalização do homem (coisificando-o), preservando assim uma espécie de violência (estatal) institucionalizada.

Trata-se de dois exemplos que ocorreram entre 1835 e 1927, portanto com longo lapso temporal entre um e outro. A pergunta que se impõe sobre os eventos nos quais os criminosos/doentes estiveram envolvidos é o que o judiciário, a medicina e as ciências sociais fizeram por estes personagens históricos e todos os demais que se envolveram em ações violentas semelhantes às que foram praticadas por esses dois jovens? Será que o Estado ainda não possui outros mecanismos para punição a não ser aqueles do século XVII?

O futuro da psiquiatria e da justiça criminal (do próprio sistema penal) moderno depende nitidamente de um debate sério sobre a penalização dos crimes, a socialização das penas e medidas de segurança. Se na idade média discutia-se a justiça (ela é quem decidia a questão da pena "justa" oi "injusta"), hoje discute-se a lei (que impessoaliza) e as formas que ela conduz a penalização. É nesta discussão que se centra a questão mais importante sobre violência no sistema penal atual (a lei). A legislação atual é na realidade uma forma de combater a violência com outra violência.

Hoje a justiça criminal enfrenta, nas duas áreas, o mesmo dilema: o tratamento do doente e a ressocialização do delinqüente. Por isso, vale colocarmos em xeque as instituições totais (prisões e manicômios) como forma de violência institucionalizada.


2. O DELINQUENTE E O DOENTE.

FOUCAULT (2), em sua teoria sobre a loucura, lembra que no final da Idade Media, a lepra – até então o mal da humanidade – desaparecera do mundo Ocidental. Os leprosos foram segregados em leprosários que se proliferaram de forma avassaladora.

Com o passar dos tempos a figura do leproso foi apagada do imaginário social, tendo em vista a redução da lepra. Surgiram outras doenças contagiosas e o tratamento social dispensado foi o mesmo: a exclusão social. Com o passar dos séculos a sociedade sempre foi "purificada". Os miseráveis, os vagabundos, os loucos, os delinqüentes ocuparam o lugar dos leprosos, sendo "varridos" do convívio social. O tratamento desumano continuou com o aparecimento das primeiras prisões (3) que, como se sabe, aos poucos foram substituindo a punição generalizada do corpo, como o esquartejamento e a marca a ferro quente que, segundo FOUCAULT (4), só foi abolida na Inglaterra em 1834.

O tratamento dispensado ao doente mental foi o mesmo dispensado ao criminoso: a segregação. Criaram-se os manicômios que, assim como as prisões, são verdadeiras casas de horror. Os doentes mentais e os criminosos foram segregados, rejeitados pela sociedade moderna e, ao longo de nossa trajetória viveram com a pecha estigmatizante de "louco" ou de "criminoso".

As instituições totais reproduzem a violência da própria sociedade, oficializando e estigmatizando as categorias sociais excluídas. Tudo fruto da evolução do poder punitivo, que inicia com o suplício do corpo pelo soberano e termina na atual política estatal punitiva-repressivista. A própria instituição total já carrega em si uma enorme carga de violência institucionalizante, tolerada e aceita pela sociedade moderna que acreditou ser uma forma desses segmentos excluídos do contexto mais amplo. A própria organização dessas instituições se fundamenta na exclusão, no isolamento, etc.


3.BREVE ANÁLISE DE CASOS HISTÓRICOS.

A justiça sempre enfrentou o dilema da prática do delito pelo doente mental. Abordaremos dois famosos casos da história. Os casos revelam o dilema enfrentado pela justiça diante da necessidade de um diagnóstico médico do "delinqüente". Revelam, ainda, o fim trágico dos condenados, vítimas da violência da institucionalização.

3.1 O CASO RIVIÈRE.

Mais uma vez FOUCALT, o filósofo da marginalidade, coordena e (re)escreve um caso do século XIX (1835) no qual o jovem de 20 anos de idade, chamado Jean Pierre Rivière, degolou sua mãe, sua irmã e seu irmão. (5)

Pierre Rivière sempre foi motivo de aflição para sua família. Era um depositário dos problemas familiares. Nunca recebeu afeição, por isso não a demonstrava. Tinha aversão por mulheres e em sua infância, além de ameaçar as crianças de sua idade, demonstrou ter prazer em esmagar passarinhos entre as pedras. (6) Rivière acreditava "amar" seu pai e após degolar sua própria mãe e seus irmãos exclamou: "acabo de libertar meu pai, agora ele não será mais infeliz". (7)

A obra aborda a problemática do sujeito submergido pelo discurso. Entre o relato de Rivière e o das testemunhas do crime, discursam os médicos e os magistrados. Alguns vêem no relato de Rivière que, inicialmente atribui o triplo assassinato a sua religiosidade e devoção a Deus, a sua loucura, sua alienação mental. Outros enxergam a prova de toda sua racionalidade.

O drama de sua vida se retrata na forma de um processo. Formou-se uma verdadeira batalha via discursos processuais, um confronto, um jogo de poder e dominação que, ao final será decidido se Rivière será condenado à prisão perpétua, gozando de uma atenuante por ser considerado um alienado mental ou morrerá para pagar seus crimes, como um delinqüente comum, já que a legislação à época previa pena capital. Uma verdadeira história das relações entre a psiquiatria e a justiça criminal, o "Caso Rivière" demonstra o poder da psiquiatria (ou do discurso psiquiátrico) que, frise-se, não era unânime, em decidir sobre a vida ou a morte do acusado, diagnosticando ou não a sua alienação mental.

No caso em tela, venceu o discurso da psiquiatria, uma vez que os magistrados acolheram os pareceres médico-legais. Numa análise dos hábitos de Rivière, de sua conduta social e sentimentos, dos casos de loucura em sua família, as "autoridades" decidiram que o jovem era um alienado mental. Mesmo sendo considerado alienado, inicialmente foi condenado à pena capital, que mais tarde se transformou em prisão perpétua (um benefício diante da condição mental de Rivière, um alienado metal). Institucionalizado, Pièrre Rivière se suicidou na prisão. (8)

3.2 O CASO FEBRÔNIO.

O mais famoso caso de loucura na história jurídica do Brasil (9) se refere ao crime cometido por Febrônio Índio do Brasil. "O caso Febrônio" foi retratado em diversos artigos: "Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei" e "Direito Positivo versus Direito Clássico", ambos de autoria de Peter FRY. (10) No segundo texto, FRY disserta sobre o tema numa homenagem a Heitor CARRILHO, psiquiatra que endossou a loucura de Febrônio. CARRILHO é o precursor da escola positiva no Brasil. (11)

Febrônio Índio do Brasil confessou ter estrangulado, em 13 de agosto de 1927, o menor Almiro José Ribeiro, jogando o corpo da vítima num matagal. (12) O acusado colecionava um péssimo rol de antecedentes, incluindo dezenas de passagens pela polícia por fraude, pederastia e tendências homossexuais, tentativa de atentado violento ao pudor, etc. (13) Portador de um comportamento desviante, fora dos parâmetros estabelecidos como normais, Febrônio dizia ter visões que o ordenavam que tatuasse dez rapazes para seguir sua missão contra o demônio. Assim, tatuava suas vítimas com as iniciais D.C.V.V.I, letras idênticas as tatuadas no seu tórax. As letras, segundo o tatuador, significavam "Deus Vivo" ou "Imana Viva". Com uma religiosidade aflorada, Febrônio chegou a mandar publicar o seu próprio evangelho, intitulado "As revelações do príncipe do fogo". (14)

A defesa de Febrônio Índio do Brasil, realizada pelo jovem causídico maranhense Letácio Jansen, teceu severas críticas ao processo. O novel defensor afirmou que "a polícia e a promotoria não conseguiram provas cabais". Contudo, sua tese defensiva se circunscreveu na demonstração de que: "Quer criminoso, quer não criminoso, Febrônio Índio do Brasil é, positivamente, um louco. Não pode ser pronunciado, ainda menos condenado. Se a sociedade julga-o perigoso, que se o interne num manicômio, numa penitenciária nunca. Justiça!" (15)

Febrônio foi declarado inimputável, pois era incapaz de entender o caráter ilícito de seus atos. Internado no manicômio judiciário por mais de cinqüenta anos, morreu com as mesmas características que o estigmatizaram por longo tempo. Morreu sem curar sua doença, quiçá mais doente do que era antes da sua institucionalização. Disto resulta notório que o discurso da instituição é a recuperação do doente/criminoso e a prática e o abandono.

O caso Febrônio revela mais uma batalha entre o discurso jurídico e o discurso médico. O que foi julgado não foi a pessoa de Febrônio, estava sendo julgado todo o cipoal de regras sociais e doutrinas que formam a complexa relação entre ciências jurídicas e médicas. Em nossa visão, o caso narrado demonstra o início da distinção doente/criminoso. O texto revela que, em casos similares, a partir da transferência da escola clássica para a escola positiva, a medicina ocupou seu lugar na justiça criminal. Lugar, talvez, acima do próprio direito.


4. UMA CRÍTICA À FALÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES
TOTAIS: A VIOLÊNCIA DA INSTITUCIONALIZAÇÃO.

Fizemos este breve estudo de casos para perquirimos: o que mudou da época de Pierre Rivière (1835) e de Febrônio Índio do Brasil (1927)?

Percebe-se, à evidência, que na França de 1835 já era observada a distinção doente/delinqüente, tanto é que, como vimos, Rivière recebeu um benefício por ser considerado portador de alienação mental. Pouparam-lhe a vida, imputaram-lhe a prisão perpétua.

No caso Febrônio, um século após, a questão central a ser observada é a mutação do discurso. O que estava em discussão era o próprio discurso e não a pessoa de Febrônio. Com Carrilho foi realizada a ruptura da escola clássica (que julga o crime, modelo instituído no Código Penal brasileiro de 1890) para a escola positiva (que estava voltada ao homem, julgando o criminoso, com princípios instituídos no Código Penal de 1940). (16) Assim, é possível caracterizar a temibilidade e classificar os doentes, tudo visando a ressocialização e com base nos princípios de individualização do criminoso e da pena.

Frise-se que nos dois casos trazidos à baila, os doentes não retornaram ao convívio social. Nota-se uma espécie de controle social por meio da violência institucionalizada. Revière – pasme o leitor - foi "internado numa prisão". Resultado, a morte pelo suicídio (o que já revela uma a sua condição patológica). Febrônio aguardou no manicômio judiciário – aproximadamente – por mais de meio século. Resultado, morreu oprimido pela ausência de auxílio e tratamento.

Os casos foram trazidos à baila somente à guisa de ilustração, para que pudéssemos confrontar, face à circularidade da história traçada pelos autores pós-modernos, o passado com o presente e, diante disso, traçarmos alguns paradigmas para o futuro. Diante disso, cabe fazer a pergunta que é imperativa: o que se modificou de 1835, 1930 até o limiar deste próximo milênio?

As alterações no campo doutrinário jurídico-penal foram enormes. No âmbito da justiça criminal tivemos avanços incríveis, no que diz respeito à cidadania, aos direitos humanos, ao contraditório e a ampla defesa, etc. Todavia, infelizmente, pragmaticamente, somos obrigados a reconhecer que o sistema penal atual possui a mesma ineficácia de outrora. Por mais repugnantes que seus crimes fossem - esta questão não está em discussão - o Estado, ao nosso ver, descumpriu seu papel em relação a Rivière e Febrônio e, principalmente, vem descumprindo sistematicamente o seu papel social. (17) Os séculos passaram e a saída que a Estado moderno (via justiça criminal) encontrou ainda é a mesma: a segregação social geradora de violência pela institucionalização.

Diga-se, por ser absolutamente verdadeiro, que não temos a solução para a justiça criminal. Mesmo com auxílio da psiquiatria, embora distinguindo o doente do delinqüente e elegendo-se o tratamento destinado a cada um deles, não conseguimos solucionar o problema da criminalidade. Nem a criminalidade praticada pelo criminoso "dito normal", nem a praticada pelo classificado como doente mental. A questão é estarmos cientes do que estamos fazendo. Será que não é mais possível deixarmos de ser indiferentes porque já vivemos numa sociedade indiferente por excelência? Precisamos – emergencialmente - buscar novos paradigmas, já que as instituições totais (serão ainda um mal necessário?) estão fadadas ao insucesso e, como é de conhecimento geral, não servem aos fins a que se propuseram.

GOFFMAN (18), em sua obra clássica, "Manicômios, prisões e conventos", há muito já evidenciou os problemas das instituições totais. O jurisfilósofo italiano, Cesare BECCARIA, já havia advertido: "a medida que as penas forem mais brandas, quando as prisões já não forem a horrível mansão do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade penetrarem nas masmorras, quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justiça abrirem os corações à compaixão, as leis poderão contentar-se com indícios mais fracos para ordenar a prisão."

Em busca da verdade, esclareça-se e sublinhe-se que o sistema carcerário está falido e o sistema penal está constantemente em crise! O próprio Direito está permanentemente em crise.

A psiquiatria também enfrenta a mesma crise. Arriscamo-nos a realizar algumas incursões nesta área. A literatura sobre o tema demonstra uma necessidade de "reestruturação da assistência psiquiátrica". (19) Essa reestruturação do atendimento psiquiátrico "implica em mudanças de organização, de atitudes e de condutas que requer um fio condutor claro e potente, que a norma jurídica pode dar." (20) É o Direito que assegura e regula os direitos do paciente. Na verdade, nem o Direito Penal, nem a psiquiatria conseguiram (sozinhos) resolver seus dilemas.

Os manicômios judiciais, registre-se que em nosso país foram construídos na década de vinte, já em 1955 encontravam-se em estado falimentar. Encontramos nos arquivos do manicômio judiciário Heitor Carrilho, as anotações do psiquiatra Jurandyr Manfredini relatadas pelo psiquiatra Rodrigo Ulysses de Carvalho, descrevendo a realidade do manicômio. Entre outras palavras o psiquiatra faz um relato que se encaixa na atual situação destas instituições: "O aspecto do Manicômio tornara-se de tal modo horrível e impressionante, que a imprensa começou a fazer reportagens para expor aos olhos do grande público e do governo, a ruína, sordidez, anarquia e falta de higiene que se encontrava." (21)

O psiquiatra José Soares Dutra, em 1955, escrevendo sobre "o palco real da tragi-comédia humana", o manicômio judiciário, analisando a dor da família desfalcada do chefe que fora segregado, já evidenciada que "indivíduo e sociedade em suas profundas relações e conflitos, estão aí à nossa vista." (22) Parece que desde então, as autoridades, os juristas e os médicos estão sedados pelo mais forte dos soníferos: o descaso! Os estudiosos hão de despertar de seu oblívio eterno.

Na área psiquiátrica há quem fale em "reestruturação". No campo do Direito, os dogmáticos pregam a reforma da vetusta legislação. Com isso, ganhará a justiça criminal e a sociedade. A psiquiatria vive um momento de "SOS SAÚDE MENTAL" e há quem lute por avanços na organização popular em defesa de uma sociedade sem manicômios. (23) Será utópico pensarmos uma sociedade sem manicômios e até sem sistema penal? Peter Pál PELBART (24) fala do manicômio mental como a outra face da clausura e disserta sobre uma utopia asséptica de uma sociedade em que os loucos não mais estariam segregados, referindo três palavras: SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS. O autor refere, ainda, que além do fim dos manicômios precisamos do fim do manicômio mental, isto é, um direito à desrazão.

A questão passa pelo projeto de desinstitucionalização da "instituição inventada". Segundo Franco ROTLLI, diretor dos Serviços de Saúde Mental de Trieste, "faz-se necessário repetir algo para nós óbvio, mas desconhecido para muitos: a instituição que colocamos em questão nos últimos vinte anos não foi o manicômio mas a loucura." (25)

Quanto ao nosso sistema penal, basta registrarmos o trabalho da Human Rights Watch, que após realizar pesquisa nos estabelecimentos prisionais (e não prisionais) do Brasil, constatou o caos do sistema penitenciário. (26) É diante deste caos generalizado que Louk HULSMAN – pode causar perplexidade - prega a abolição do sistema penal, já que este não protege o homem nem previne ou controla a criminalidade. (27)

Na realidade, o tema sugere algumas reflexões. Urge que façamos algo! Algo deve ser feito, mesmo que tenhamos que utilizar o chavão repudiado pelo sociólogo francês Jean BAUDRILLARD: "Só temos uma realidade, e é preciso salvá-la, mesmo com o pior dos slogans: ‘É necessário fazer alguma coisa. Não se pode ficar sem fazer nada’". (28) O que queremos dizer é que embora no século XX tenham havido um enorme avanço nos diferentes campos científicos, a ciência ainda não conseguiu as repostas para os problemas tão complexos como os exemplificados neste artigo.

Muito já está sendo feito. Veja-se, por exemplo, a recente alteração legislativa – Lei n° 9.714/98, Lei das Penas Alternativas (29) – que instituiu no direito penal pátrio uma série de medidas alternativas à pena privativa de liberdade, significando um basta a violência da institucionalização. Se medidas louváveis como esta não forem examinadas com a seriedade que merecem, acordaremos, mais uma vez, olhando ao nosso redor e enxergando João Acácio Pereira da Costa ser assassinado. Quando preso, o "Bandido da Luz Vermelha" era imputável. Segregado por trinta anos, saiu "louco" da prisão. Morreu um louco com a pecha de bandido. (30) Morreram Pièrre, Febrônio e Acácio... Mas afinal, até quando continuaremos segregando "bandidos" e soltando "loucos"?


NOTAS

  1. Conforme as valiosas conversações com a Professora Doutora Ruth Chittó Gauer.
  2. Vide: FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica, 4 ed., São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 3 e segs.
  3. Sobre o tema, veja-se o excelente estudo de BITENCOURT, Cezar Roberto, Falência da pena de prisão: causas e alternativas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 143.
  4. FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, 13 ed, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 16.
  5. Veja-se FOCAULT, Michel, Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, 5 ed, Rio de Janeiro: Graal, 1991.
  6. In ob. cit., Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, p. 9.
  7. In ob. cit., Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, p. 10.
  8. In ob. cit., Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, p. 181: "Rivière, que tinha sido comutado para a pena de prisão perpétua porque seu crime trazia os caracteres de alienação mental, acaba de se enforcar na prisão de Beulieu. Há algum tempo, notou-se nele sinais inequívocos de loucura; Rivière acreditava-se morto e não tomava nenhum cuidado com seu corpo; dizia que desejava que lhe cortassem o pescoço, o que não lhe causaria nenhum mal, já que estava morto; e se não acedessem a seu desejo ameaçava matar todo mundo."
  9. O caso mereceu destaque na obra que traça o perfil biográfico do jurista Evandro Lins e Silva. Vide SILVA, Evandro Lins e, O salão dos passos perdidos: Depoimento ao CPDOC, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 205.
  10. Confira-se FRY, Peter, Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei, em VOGT, Carlos el al., in Caminhos Cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais, São Paulo:Brasiliense, 1982 e Direito positivo versus direito clássico: a psicologização do crime no Brasil no pensamento de Heitor Carrilho, in Cultura da Psicanálise, Sérvulo a Figueira (org.), Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.
  11. O psiquiatra Heitor Carrilho faleceu no ano de 1954. Portador de idéias sobre ressocialização, Carrilho foi o líder da escola do direito positivo no Brasil. Foi um ferrenho adversário ao direito clássico (direito positivo). Auxiliou na elaboração de manicômios e desenvolveu seu trabalho sobre a indivudualização do criminoso, da pena e da terapêutica. Vide as palavras de Carrilho, in ob. cit., Direito positivo versus direito clássico, p. 131: "Caracterizar ou definir a temibilidade eqüivale a estudar profundamente o paciente para extrair dela os sinais que a indicam. A temibilidade não resulta somente da espécie nosológica de que seja, acaso, portador o examinador, por isso que , não raro, mais do que conseqüente ao seu diagnóstico clínico, é ela a projeção de sua própria personalidade mórbida."
  12. In ob. cit., Direito positivo versus direito clássico, p. 116.
  13. In ob. cit., Direito positivo versus direito clássico, p. 116., in verbis: "No processo que investiga a morte de Almiro Ribeiro, a promotoria e a polícia reconstroem a história pregressa do Réu. Nos autos constam dezenas de passagens pela polícia, por fraude, suborno, roubo e vadiagem durante o período entre 1916 e 1929, quando trabalhou sob pseudônimo de Bruno Ferreira Gabina como falso médico e dentista. Além desses detalhes, a promotoria junta aos autos evidências de sua homossexualidade. Numa de suas passagens pela Casa de Detenção, em agosto de 1927, o diretor informou que ‘consta que o referido Febrônio entregava-se ao vício da pederastia’. Consta também dos autos uma denúncia que data de janeiro de 1927: Febrônio é acusado de tentar estuprar Djalma Rosa no xadrez da 4ª Delegacia Auxiliar, e depois pisar na sua barriga causando sua morte. As testemunhas desta cena acusam Febrônio de ter mantido relações sexuais com outros dois presos antes de tentar seduzir Djalma Rosa. Juntaram-se também aos autos depoimentos de menores que acusam Febrônio de tentar seduzi-los sexualmente, num outro processo em que Febrônio é acusado de matar João Ferreira, também na ilha do Ribeiro. Num desses depoimentos, Álvaro Ferreira, de 18 anos, conta que Febrônio prometeu-lhe emprego, levou-o para a mata da Tijuca, lá tatuando-o no peito com as letras romanas D.C.X.V.I e depois obrigando-o a se submeter passivamente a uma relação sexual."
  14. Cfe., ob. cit., Direito positivo versus direito clássico, p. 117.
  15. n ob. cit., Direito positivo versus direito clássico, p. 118.
  16. Conforme Domingos de Moraes, citado em FRY, Peter, ob. cit., Direito positivo versus direito clássico, p. 127. In verbis: "A legislação criminal vigente (em 1954), que tem como base o magnífico Código Penal de 1940, consagra definitivamente o sistema de manicômios judiciários e das medidas de segurança, consolidando princípios e métodos pelos quais Heitor Carrilho se vinha batendo há longos anos."
  17. Não desconhecemos os métodos utilizados pelos simplistas, os mesmos utilizados por movimentos ideológicos ocos de conhecimentos jurídico-penais ou criminológicos que, mais das vezes pregam o fim da impunidade pela pena de morte, inclusive. Tratando-se de doentes mentais delinqüentes, seria mais fácil matá-los do que tratá-los? Sob este aspecto o discurso polemista e sensacionalista destes movimentos estiola-se em si mesmo. Como pleitear pena de morte para um doente? Impossível, dirão alguns. Desumano, dirão os mais crentes. Na realidade a pena de morte seria fácil demais, preferimos deixar os doentes nos manicômios judiciários, nos institutos psiquiátricos, em medidas de segurança "ad eternum"...
  18. GOFFMAN, Erving, Manicômios, prisões e conventos, São Paulo: Perspectiva, 1961.
  19. Conforme Reestruturação da assistência psiquiátrica: bases conceituais e caminhos para sua implementação, in Memórias da Conferência Regional para a Reestruturação da Instituto Mario Nergri, Milão, 11-14 de novembro de 1990.
  20. Ob. cit., Reestruturação da assistência psiquiátrica: bases conceituais e caminhos para sua implementação, p. 79.
  21. Arquivos do manicômio judiciário Heitor Carrilho, Rio de Janeiro: Manicômio Judiciário Heitor Carrilho/serviço nacional de doenças mentais, anos XXX, XXXI e XXXII, 2° semestre de 1961 e 1° e 2° semestres de 1962 e 1963.
  22. Arquivos do manicômio judiciário Heitor Carrilho, Rio de Janeiro: Manicômio Judiciário Heitor Carrilho/serviço nacional de doenças mentais, ano XXIV, 1° e 2° semestres de 1955, p. 62.
  23. A notícia é da revista argentina "Desbordae: solidaridad com los pacientes internados", Buenos Aires, n° 5, set. de 1992, p. 32.
  24. PELBART, Peter Pál, Manicômio mental: a outra face da clausura, texto apresentado no encontro em São Paulo pelo Plenário de Trabalhadores em Saúde Mental, em comemoração ao dia da luta antimanicomial, em 18 de maio de 1989.
  25. Confira-se a obra de Rotelli e outros, em trabalho intitulado "Desinstitucionalização", São Paulo: HUCITEC, 1990.
  26. A Human Rights Watch realizou pesquisa (veja-se o relatório do ano de 1998, "O Brasil atrás das grades", que se encontra disponível na internet: http:www.dhnet.org.br) nos estabelecimentos (prisionais ou não) brasileiros e, após constatar as notórias deficiências do sistema e a apatia pública em relação ao problema recomendou: controlar a brutalidade dos agentes penitenciários e policiais, reduzir os níveis de superlotação, limitar as delegacias de polícia à detenção de curto prazo de suspeitos e delinqüentes, melhorar as terríveis condições gerais e o provisionamento de assistência, prevenir os abusos entre os presos, facilitar o contato familiar, encorajar a reabilitação, etc.
  27. Confira-se a famosa entrevista, em HULSMAN, Lock, Penas perdidas: o sistema penal em questão, Rio de Janeiro: Luam, 1993.
  28. Vide BAUDRILLARD, Jean, Tela total: mito e ironias da era do virtual e da imagem, Porto Alegre: Sulina, 1997, p. 16. O autor ainda completa: "Ora fazer o que quer que seja pela única razão de que não se pode deixar de fazê-lo nunca constituiu um princípio de ação nem de liberdade. Isso não passa de uma forma de absolvição da própria impotência e de compaixão com a própria sorte."
  29. Vale frisar que a Lei n° 9.714/98, veio atender uma antiga solicitação da ONU. Nesse sentido, veja-se JESUS, Damásio de, Regras de Tóquio: comentários às regras mínimas das nações unidas sobre as medidas não privativas de liberdade, Brasília: pub. do Ministério da Justiça, 1998.
  30. Foi veiculado na mídia que após ser libertado, João Acácio não conseguiu se adaptar ao novo meio. Mesmo após cumprir sua pena João Acácio carregou consigo o título de bandido. No dia 18 de novembro de 1997 foi levado para o Centro de Psiquiatria Metropolitana de Curitiba, permanecendo internado por oito dias. Pouco tempo depois foi assassinado com um tiro de espingarda (Zero Hora, Porto Alegre, 06.01.98, p. 58).

Autor

  • Alexandre Wunderlich

    Alexandre Wunderlich

    advogado criminal, especialista e mestre em Ciências Criminais (PUC/RS), professor de Direito Penal da pós-graduação da PUC/RS e UFRGS

    é também presidente do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais, professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura (AJURIS) e professor de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia/RS.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WUNDERLICH, Alexandre. Os casos de Piérre Rivière e Febrônio Índio do Brasil como exemplos de uma violência institucionalizada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1013. Acesso em: 25 abr. 2024.