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Direitos humanos, neoconstitucionalismo e instituto da transação penal

Direitos humanos, neoconstitucionalismo e instituto da transação penal

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO.Capítulo 1. DIREITOS HUMANOS., 1.1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1.2. CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS. 1.3. BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS.Capítulo 2. NEOCONSTITUCIONALISMO. 2.1. SURGIMENTO DO NEOCONSTITUCIONALISMO. 2.2. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO. 2.3. REFLEXOS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO.Capítulo 3. INSTITUTO DA TRANSAÇÃO PENAL. 3.1. ANÁLISE DO ART. 76 DA LEI 9.099/95. 3.2. FILTRAGEM CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO DA TRANSAÇÃO PENAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


Resumo:

No presente trabalho, o autor, através de uma pesquisa teórica, busca analisar o instituto da Transação Penal sob um prisma que, pode-se dizer, é ignorado pela doutrina pátria: O da violação aos direitos fundamentais consubstanciada na desobediência a importantes princípios, como o da presunção (ou do estado) de inocência, o do devido processo legal e seus corolários, contraditório e ampla defesa, que representam verdadeiras conquistas históricas da humanidade. E a história é pródiga em demonstrar que violações desta monta acabaram por ocasionar, por reiteradas vezes, situações funestas.

Pretende-se, portanto, demonstrar e despertar o leitor para o fato de que referido instituto, apesar da louvável intenção de que se encontra imbuído, não está em conformidade com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Muito pelo contrário: Constitui-se, deveras, numa afronta retumbante ao caráter democrático que a impregnou e fê-la receber o título de "Constituição cidadã".

Palavras-chave: Transação Penal. Direitos Fundamentais. Constituição de 1988. Filtragem constitucional. Incompatibilidade.


INTRODUÇÃO:

O presente trabalho parte da afirmação de que "O Estado tem o privilégio e o benefício do monopólio da força. Deve sentir toda a responsabilidade desse privilégio e desse benefício." (BOBBIO, 2004, p. 182).

As três linhas acima colacionadas resumem com muita propriedade a visão contemporânea (ao menos a de grande parte da humanidade) sobre o antigo problema do exercício do poder pelo Estado.

Partindo-se do poder absoluto e irrestrito do Estado com relação aos seus "súditos", as sociedades humanas, violação após violação, perceberam que o problema só seria resolvido se fossem implementadas limitações ao exercício deste poder. Ao analisar a história, conclui-se que referidas limitações foram (e são) implementadas pouco a pouco, através da efetivação de direitos. Nesse sentido, a afirmação ubi societas, ibi jus não se demonstra perfeita (ao menos materialmente). Explica-se: Não basta, para a segurança dos indivíduos, que existam direitos previstos, ainda que num rol extenso e variado, se sua efetivação não é verificada na prática. Esse, ainda hoje, é o problema dos direitos humanos.

Por outro lado, levanta-se o problema de, num Estado Democrático de Direito, como é o Brasil (art. 1. º da Constituição da República Federativa do Brasil, doravante simplesmente CRFB), um indivíduo ser submetido à uma sanção penal sem que se apure, através de uma historicamente irrenunciável dilação probatória, se este é culpado ou não pelo ilícito praticado.

Reconhece-se, através do estudo da história, que o princípio do devido processo legal, narrado inicialmente no art. 41 da Magna Charta Libertatum, de 1215, juntamente com seus corolários contraditório e ampla defesa, passou, paulatinamente a ser considerado de positivação e efetivação obrigatórias pela humanidade, após as violações aos direitos fundamentais verificadas em função da atuação da "Santa Inquisição", instituída pelo IV Concílio de Latrão, de 1215 (que se constituiu também no gérmen do direito processual penal nascente).

Isso se deu para que os indivíduos não mais voltassem a presenciar um espetáculo da magnitude do que ocorreu na Europa nos séculos que se sucederam ao do surgimento de tão funesta instituição, já que, a partir daquele momento histórico, penas horrendas, torturas das mais diversas e sacrifícios vis passaram a ser aplicados sumariamente a qualquer pessoa que viesse a ser considerado herege. Tudo aplicado em nome de Deus, por seus representantes na Terra e sem que o acusado fosse, ao menos, ouvido.

Considerando que o princípio do contraditório, elencado no art. 5. º, inciso LV, da CRFB (Título que trata especificamente dos direitos e garantias fundamentais) constitui tão importante instrumento de segurança do indivíduo e de realização da democracia, afirma-se que legislação infraconstitucional não poderia de forma alguma desconsiderá-lo, menosprezar seu significado histórico e criar instituto que passasse a violá-lo frontalmente, e não só a ele, como a direitos fundamentais da importância do princípio da presunção de inocência (ou estado de inocência para alguns), como ocorre no ordenamento jurídico pátrio através do instituto da transação penal.

Utilizando-se de pesquisa teórica e por meio de uma objetiva concatenação das idéias, busca-se alcançar a gama de leitores que se interessam pelo tema e não encontram, na literatura pátria, a análise do instituto da transação penal sob o enfoque da violação aos direitos fundamentais. Vale consignar que alguns autores pátrios chegam a sustentar que o contraditório verificado no instituto objeto de análise atende ao devido processo legal previsto pela Constituição.

Tendo em vista que os direitos fundamentais encontram-se umbilicalmente ligados ao constitucionalismo, busca-se trazer a lume o movimento de efetivação da Constituição que se iniciou na Europa após a Segunda Guerra Mundial e no Brasil, após a Constituição de 1988, denominado Neoconstitucionalismo, que indubitavelmente contribui para a efetivação dos direitos fundamentais.


CAPÍTULO 1

DIREITOS HUMANOS.

1.1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

A idéia do valor intrínseco da pessoa humana assenta suas raízes ainda no pensamento clássico e no ideário cristão. Na antiguidade clássica, a dignitas era reconhecida "de acordo com a posição social ocupada pelo indivíduo e seu grau de reconhecimento pelos demais membros da sociedade" (SARLET, 2004, p. 30). A partir das formulações de Cícero, Roma passou a reconhecer uma dignidade desvinculada do cargo ou posição social ocupados pelo indivíduo.

Ainda na Idade Média a concepção de inspiração cristã e estóica era sustentada. Tomás de Aquino chegou mesmo a se referir a uma "dignitas humana", tendo sido secundado pelo humanista italiano Pico della Mirandola, que considerava que o ser humano, por ser dotado de racionalidade, "pode construir de forma livre e independente" sua existência e seu destino. Ressalta Ingo Sarlet (2004, p. 31):

Com efeito, no pensamento de Tomás de Aquino, restou afirmada a noção de que a dignidade encontra seu fundamento na circunstância de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas também radica na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana, de tal sorte que, por força de sua dignidade, o ser humano, sendo livre por natureza, existe em função de sua própria vontade.

No pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, foi deflagrado um processo de racionalização e laicização (rompimento ideológico com o pensamento da Igreja Católica, constituindo numa verdadeira separação direito/moral) do conceito dignidade da pessoa humana, embora este não tenha se afastado da "noção fundamental de igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade".

Foi o pensador Immanuel Kant quem completou referido processo de secularização da dignidade, afastando definitivamente a visão religiosa da qual se originou o conceito. Vale aduzir um fragmento escrito pelo próprio Kant, apud Sarlet (2004, p. 33):

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim... Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).

É de fundamental importância tratar-se do tema da dignidade da pessoa humana em sede de direitos humanos, pois como assevera o multicitado Sarlet (2004, p. 83):

...os direitos fundamentais, assim como e acima de tudo, a dignidade da pessoa humana à qual se referem, apresentam como traço comum – e aqui acompanhamos a expressiva e feliz formulação de Alexandre Pasqualini –, o fato de que ambos (dignidade e direitos fundamentais) "atuam, no centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, em cuja unifixidade mínima, convivem, de forma indissociável, os momentos sistemático e heurístico de qualquer ordem jurídica verdadeiramente democrática.".

1.2. CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS:

Após tratar do tema dignidade da pessoa humana, pode-se observar que o conceito de direitos humanos, como aduzido por João Baptista Herkenhoff apud Chiarini Júnior (2004) daquele não se dissocia:

Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.

Este conceito não é absolutamente unânime nas diversas culturas. Contudo, no seu núcleo central, a idéia alcança uma real universalidade no mundo contemporâneo.

Neste ponto, imperioso tratar do fato de que grande parte da doutrina nacional e alienígena considera como sinônimos os termos "direitos humanos" e "direitos fundamentais", chegando certos autores mesmo a considerar adequada a terminologia "direitos humanos fundamentais", dela fazendo uso. Com a devida vênia, estes não são termos equivalentes.

A noção trazida por Hewerstton Humenhuk apud Chiarini Júnior (2004) com relação a essa controvérsia é bastante elucidativa. Afirma citado autor que

Em face ao estudo, convém salientar a distinção na lição de Sarlet citado por Maliska:

Os direitos fundamentais são os direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito Constitucional positivo de determinado Estado; a expressão ‘direitos humanos’, por sua vez, "guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem Constitucional e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)".

1.3. BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS.

Devemos introduzir o tema proposto trazendo à baila a teoria do Contrato Social, sob a ótica de Jean-Jacques Rousseau (2002, p.31), que em certo ponto de sua obra, chega à conclusão:

Contemplo os homens chegados ao ponto em que os obstáculos danificadores de sua conservação no estado natural superam, resistindo, as forças que o indivíduo pode empregar, para nele se manter; o primitivo estado cessa então de poder existir, e o gênero humano, se não mudasse de vida, certamente pereceria.

Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e dirigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a resistência, com um só móvel pô-las em ação e faze-las obrar em harmonia.

O fragmento acima transcrito descreve o fundamento do Contrato Social, onde o homem individualmente considerado passa a abrir mão de suas liberdades, absolutas quando ainda em estado natural, em favor da sociedade que se estabelece voluntariamente, a qual cada um dos associados tem o dever de respeitar, visto que elaborada para a consecução do bem comum e do interesse geral.

Revisitar a Teoria do Contrato Social – aqui com base na obra de Rousseau – mais do que simples busca aos clássicos, representa analisar as origens do pensamento político moderno. Explica-se, com base em Norberto Bobbio (2004, p. 127/128):

...Enquanto os indivíduos eram considerados como sendo originariamente membros de um grupo social natural, como a família (que era um grupo organizado hierarquicamente), não nasciam nem livres, já que eram submetidos à autoridade paterna, nem iguais, já que a relação entre pai e filho é a relação de um superior com um inferior. Somente formulando a hipótese de um estado originário sem sociedade nem Estado, no qual os homens vivem sem outras leis além das leis naturais (que não são impostas por uma autoridade externa, mas obedecidas em consciência), é que se pode sustentar o corajoso princípio contra-intuitivo e claramente anti-histórico de que os homens nascem livres e iguais, como se lê nas palavras que abrem solenemente a declaração (dos Direitos do Homem, de 1789): "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos." Essas palavras serão repetidas tais e quais, literalmente, um século e meio depois, no art. 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos". Na realidade os homens não nascem nem livres nem iguais. Que os homens nasçam livres e iguais é uma exigência da razão, não uma constatação de fato ou um dado histórico. É uma hipótese que permite inverter radicalmente a concepção tradicional, segundo a qual o poder político – o poder sobre os homens chamado de imperium – procede de cima para baixo e não vice-versa.

Vale colacionar aqui o artigo I da Declaração do Povo da Virgínia, tornada pública em 12 de junho de 1776 que, segundo Fábio Konder Comparato (2001, p. 47), constitui o "registro de nascimento dos direitos humanos na história" e retrata originalmente o que acima foi exposto. In verbis:

Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem em estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, como meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança.

Referida origem (ideal, ressalte-se) do poder político, embasada no jusnaturalismo, serviu de fundamento ideológico para as Revoluções Liberais (das quais a americana e francesa de 1789 foram as primeiras). No caso da França, estribou a exigência de que os nobres renunciassem a seus privilégios, o que ocasionou a derrocada do regime feudal. Esta conquista foi empreendida em 04 de agosto.

Já em 26 de agosto de 1789, era aprovada a Declaração dos Direitos do Homem, que marcaria o surgimento de uma "nova era", de reconhecimento de universalidade aos direitos humanos.

Apesar de apresentar, com relação aos Bill of Rights de algumas colônias norte-americanas (as primeiras, como a da Virgínia, datadas de 1776), uma relação de derivação (o que não é unanimidade entre os autores que analisaram os documentos, pouco depois da Revolução Francesa), foi na Declaração francesa que o individualismo predominou. Atente-se que o individualismo aqui deve ser considerado em sua forma negativa, ou seja, sob o enfoque de que "o indivíduo isolado, independentemente de todos os outros, embora juntamente com todos os outros, mas cada um por si, é o fundamento da sociedade" (BOBBIO, 2004, p. 103/104).

Supramencionadas declarações de direitos precederam as constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América (1787) e França (1791), que tinham em comum

a necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contemporâneo (MORAES, 2000, p. 19).

Neste ponto, forçoso constatar que o nascimento formal do constitucionalismo acaba por consolidar a noção de direitos fundamentais, mais antiga, por haver consagrado a idéia da necessidade de insculpi-los num documento escrito, derivado diretamente da soberania popular, para que estes fossem dotados de efetividade.

Outra observação importante: A idéia de democracia, tal como hoje é concebida, decorre diretamente da inversão poder/liberdade sufragada pelos Iluministas e tomada por base pelas Revoluções americana e francesa, notadamente pela última, que fez predominar o individualismo em sentido negativo.

Ao criticar a expressão soberania popular, doutrina vitoriosa com Revolução Francesa, que prega que o poder civil coincide com a vontade divina, mas se origina na vontade popular – omnis potestas a Deo per populum libere consentientem – maneira de atribuir-se o poder político ao povo, retirando-o das mãos do Monarca, Norberto Bobbio (2004, p. 115) bem alerta, com sua habitual agudeza de pensamento:

Tenho dito freqüentemente que, quando nos referimos a uma democracia, seria mais correto falar em soberania dos cidadãos e não de soberania popular. "Povo" é um conceito ambíguo, do qual se serviram também todas as ditaduras modernas. É uma abstração por vezes enganosa: não fica claro que parcela dos indivíduos que vivem num território é compreendida pelo termo "povo". As decisões coletivas não são tomadas pelo povo, mas pelos indivíduos, muitos ou poucos, que o compõem. Numa democracia, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente, são sempre e apenas os indivíduos singulares, no momento em que depositam seu voto na urna. Isso pode soar mal para quem só consegue pensar a sociedade com um organismo; mas, quer isso agrade ou não, a sociedade democrática não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, não teria nenhuma justificação o princípio da maioria, o qual, não obstante, é regra fundamental de decisão democrática. E a maioria é o resultado de uma simples soma aritmética, onde o que se soma são os votos dos indivíduos, um por um. Concepção individualista e concepção orgânica da sociedade estão em irremediável contradição.

Por tudo o que foi exposto, deve-se considerar os direitos humanos como conquista histórica da humanidade. Conquista feita a duras penas e por meio do brilhantismo inatingível de indivíduos que colocavam o sentimento humanista acima de todo e qualquer interesse pessoal menor. Quando hoje se trata, exemplificativamente, da Revolução Francesa, isso é feito sem que sejam narrados os espetáculos fratricidas da ocasião, como o sangue que jorrou das veias de muitos camponeses e o regicídio perpetrado contra Luís XVI, além da franca utilização da guilhotina, pregada, dentre outros, por Robespierre, que acabou por ela vitimado. Não. Os livros de história são inodoros quanto ao sangue dos indivíduos que lutaram (ou sofreram) por todas as conquistas atingidas pela humanidade. Eles as mostram de forma limpa, pronta, acabada. Isso faz com que o valor do progresso humano seja em parte esquecido, o que de forma alguma poderia ocorrer. Flávia Piovesan também exemplifica o que foi narrado, ao asseverar que

...Muitos dos direitos que hoje constam do "Direito Internacional dos Direitos Humanos" surgiram apenas em 1945, quando, com as implicações do holocausto e de outras violações de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as nações do mundo decidiram que a promoção de direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser um dos principais propósitos da Organização das Nações Unidas.

Mas as aquisições da humanidade com referência aos direitos humanos foram tão parciais que, muito embora o lapidar ensinamento de Francesco Carnelutti (2001, p. 19) no sentido de considerar o direito como o "que ordena, quer dizer, que une ou, de um modo mais realista, que liga; portanto é uma força", até os dias atuais presencia-se a luta pela efetivação de referidos direitos (apesar de, como visto na presente explanação, estes já constarem das Cartas Constitucionais da maioria dos Estados do mundo ocidental desde o surgimento do fenômeno constitucionalista). É que, de acordo com a abalizada lição de Alexandre de Morais (2000, p. 20),

Os direitos fundamentais colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana.

Mas de nada vale a simples previsão dos direitos fundamentais (direitos humanos positivados).


CAPÍTULO 2

NEOCONSTITUCIONALISMO.

2.1. SURGIMENTO DO NEOCONSTITUCIONALISMO.

Com base na sempre abalizada lição de Luís Roberto Barroso (2005), houve uma profunda mudança de percepção do fenômeno constitucional e da própria Constituição, desencadeada ainda na primeira metade do século passado, na Europa continental.

Referida alteração paradigmática foi desencadeada a partir do segundo pós-guerra, momento de reconstrução naquele continente, quando se passou a redefinir o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas, o que se protraiu por toda a segunda metade do século XX. Neste mesmo período, deu-se o advento do Estado Democrático de Direito, nova forma de organização política, através da aproximação entre as idéias de constitucionalismo e de democracia (palavra derivada da união entre os radicais gregos demos e kratia, que quer dizer, na feliz expressão de Lincoln: "governo do povo, pelo povo e para o povo").

No Estado brasileiro, o referencial histórico que marca a passagem do regime autoritário, que teve início (ou reinício, analisando melhor os fatos) com a ditadura, para o Estado Democrático de Direito, foi nossa Carta Política de 1988. Além disso, na expressão cunhada por Barroso, o Brasil, a contar dessa ocasião, presenciou o surgimento de um "sentimento constitucional", misto de respeito pelas conquistas consubstanciadas, esperança e confiança na capacidade concreta da Carta de promover novos avanços.

Esse Direito Constitucional nascente assentou suas bases filosóficas no pós-positivismo, corrente de pensamento que agregou postulados tanto do jusnaturalismo quanto do positivismo.

Através da superação do jusnaturalismo, que reconhecia a existência de um Direito Natural ínsito ao ser humano e foi o "combustível" das diversas Revoluções Liberais, atingiu-se o positivismo. Interessante notar que "o advento do Estado Liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representam, também, a sua superação histórica". Por seu turno, o movimento positivista, originalmente filosófico, foi trazido ao Direito e passou a apontar também neste ramo do conhecimento humano que todo o conhecimento só é válido quando obtido por meio científico, aproximando quase que totalmente o Direito da norma. Referida escola teve sua derrocada política na primeira metade do século XX. Neste ponto, para que se demonstre de forma mais clara a necessidade concreta de analisar-se a legislação infraconstitucional valorativamente (de acordo com a tábua axiológica trazida pela Constituição), é de bom alvitre que se traga à colação um trecho que declina o motivo que ensejou o fracasso político dessa corrente:

O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem.

Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido. (BARROSO, 2005).

Quanto ao pós-positivismo, irretocável se mantém a lição do mestre Barroso (2005):

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitural moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção, incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o direito e a filosofia.

Em termos de teoria, ocorreram basicamente três mudanças que alteraram substancialmente a aplicação do Direito Constitucional. Foram elas: a) O reconhecimento de força normativa à Constituição; b) A expansão da jurisdição constitucional e c) Sensíveis alterações na interpretação constitucional.

Quanto ao reconhecimento de força normativa à Constituição, contrariamente ao que pregou Ferdinand Lassale (2001, p. 17) em 1862, ao dizer que a Constituição é eminentemente política, sendo esta "a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação", cunhando a expressão "folha de papel" (ein Stück Papier) para designar a Constituição jurídica, Konrad Hesse (1991, p. 13), na sua aula inaugural na Cátedra da Universidade de Freiburg, Alemanha, em 1959, buscou demonstrar o caráter jurídico da Constituição, demonstrando com sucesso o "condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social".

No que atine à expansão da jurisdição constitucional, a onda constitucional iniciada no segundo pós-guerra na Europa trouxe, além das novas Constituições, a superação da doutrina inglesa da soberania do parlamento, adotada em massa naquele continente e a consolidação do modelo originado com a Constituição Americana de 1787: O da supremacia da Constituição.

Dessa forma, surgiram inicialmente na Alemanha (1951) e na Itália (1956) os primeiros Tribunais Constitucionais, tendência que se disseminou pelos demais países europeus. A título de informação, atualmente, somente Inglaterra, Holanda e Luxemburgo adotam o antigo modelo de supremacia parlamentar. Já no caso da França, Luiz Guilherme Marques (2001, p. 140) aponta que:

A Constituição de 1958, vigente até a presente data, criou o Conselho Constitucional e o atribuiu a competência para decidir sobre a constitucionalidade de textos "não-regulamentares", com relação aos "tratados, à Constituição e aos princípios constitucionais", eleições em âmbito nacional e casos concretos que venham a colidir com preceitos constitucionais.

Deve-se ressaltar, no entanto, um ponto curioso: A Corte Constitucional só pode manifestar-se com relação a matérias que ainda não são leis propriamente ditas. É proscrito a esta verificar a constitucionalidade ou não de leis em vigor, com base na percepção do princípio francês da soberania do cidadão, que se materializa nas leis editadas por seus representantes eleitos. Ademais, já se presume tal assunto examinado antes da matéria poder ser denominada "lei".

Por seu turno, dando-se conta os operadores do direito que os métodos de interpretação jurídica tradicional não são, muitas das vezes, meios adequados às interpretações do texto constitucional, haja vista sua complexidade, passaram os mesmos a elaborar novos métodos interpretativos, bem como a posicionar-se de maneira positiva no processo de criação do direito, através, v.g., das cláusulas gerais, que são conceitos jurídicos indeterminados que deixam a cargo dos juízes a tarefa de atualizar constantemente o sentido de termos ou expressões contidos na lei interpretada.

Pode-se ainda citar como exemplos da nova hermenêutica constitucional, as colisões entre normas constitucionais, a ponderação de interesses, o reconhecimento dos princípios e nesse campo, mais recentemente, o reconhecimento dos postulados normativos aplicativos, que são metanormas ou "normas estruturantes da aplicação de princípios e regras" (ÁVILA, 2004, p. 90), dentre outros.

2.2. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO.

O fenômeno supramencionado acabou por colocar a Constituição no topo e no centro dos sistemas jurídicos, locais que anteriormente, nos países de tradição romano-germânica, eram ocupados pelo Código Civil. Joaquim José Gomes Canotilho (2000, p. 1112) bem retrata este novo quadro:

A Constituição é uma lei dotada de características especiais. Tem um brilho autônomo expresso através da forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica das suas normas. Estes elementos permitem distingui-la de outros actos com valor legislativo presentes na ordem jurídica. Em primeiro lugar, caracteriza-se pela sua posição hierárquico-normativa superior relativamente às outras normas do ordenamento jurídico. Ressalvando algumas particularidades do direito comunitário, a superioridade hierárquico-normativa apresenta três expressões: (1) as normas constitucionais constituem uma lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); (2) as normas da constituição são norma de norma (normae normarum) afirmando-se como uma fonte de produção jurídica de outras normas (leis, regulamentos, estatutos); (3) a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os actos dos poderes públicos com a Constituição.

Tal fato acarretou uma profunda modificação na forma de se enxergar o sistema: Todos os demais ramos do direito passaram a ser, necessariamente, interpretados de forma a realizar os valores constitucionalmente consagrados, o que autores como Clèmerson Mérlin Clève e o próprio Canotilho denominam "filtragem constitucional". Com isso, nas palavras de Luís Roberto Barroso, toda interpretação jurídica passou a ser uma interpretação constitucional.

E interpretar dessa forma pode implicar em três situações fáticas: 1) A Constituição é aplicada de forma direta em algumas situações; 2) A interpretação das normas infraconstitucionais é feita em conformidade com o texto constitucional e 3) As normas infraconstitucionais incompatíveis com a Carta Política devem ser declaradas inconstitucionais e expurgadas do ordenamento jurídico (fenômeno da não-recepção).

2.3. REFLEXOS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO.

A feitura do Código de Processo Penal brasileiro de 1941 contextualiza-se, historicamente, num movimento de direito penal máximo, denominado por muitos como movimento de lei e ordem. É que este foi promulgado, bem como o Código Penal pátrio, de 1940, sob a égide da Carta de 1937 e inspiradas, como também o foi referida Constituição, na legislação italiana das primeiras décadas do século passado, com destaque para o Código Rocco. Nota-se como pano de fundo de toda a produção legislativa penal em ambos os países, nesse período, o cunho fascista, que é a expressão máxima do autoritarismo. E não era outra a função de referido diploma legal, senão, a de instrumentalizar a aplicação deste direito penal autoritário. Bastante elucidativa, neste sentido, é sua Exposição de Motivos, no que merece ser reproduzida:

A reforma do processo penal vigente

II – De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código.

Com o advento da Constituição de 1988, a mudança de paradigmas foi total. Passou-se a analisar o Direito Processual Penal como um instrumento de garantias. Foram adotados os princípios da dignidade da pessoa humana, já descrito nesta obra, do juiz natural (art. 5.º, LIII), da inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meios ilícitos (art. 5.º, LVI), da presunção de inocência ou do estado de inocência (art. 5.º LVII, da CRFB), do devido processo legal (art. 5.º, LIV) e seus corolários – contraditório e ampla defesa (art. 5.º, LV), dentre outros. Forçoso observar que todos os princípios supradeclinados estão elencados no Título II de nossa Carta Política, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Tomando como exemplo a forma com que era tratada a liberdade no diploma processual penal pátrio, como se exterioriza em seu Título IX, que trata "Da prisão e da liberdade provisória", verifica-se que, através do mecanismo da filtragem constitucional, esse enunciado deve ser invertido, fazendo-se da prisão ato excepcional, a ser utilizado somente quando não caiba a liberdade provisória, entendida agora como regra (art. 5. º, LXVI, da CRFB). É bem verdade que referido raciocínio remonta ao Marquês de Beccaria (2001, p. 59), que preconizava que "o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime".

Outro ponto que merece destaque foi a abolição da prisão administrativa, de cunho manifestamente repressivo, elencada nos artigos 319 e 320 do Codex multicitado, com base no inciso LXI do art. 5. º da CRFB, que prevê "ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente".

A 1.ª Emenda à Carta Política de 1967, que autores como José Cretella Jr. preferem tratar como Constituição de 1969, tamanha a gama de alterações realizadas no texto emendado, já adotava, apenas formalmente o Sistema Acusatório. Na prática, notou-se (e isso ainda se faz presente) a contaminação da legislação infraconstitucional por resquícios profundamente prejudiciais do Sistema Inquisitivo. Tal fato é externado, v.g., pela manutenção da possibilidade de ampla produção de provas pelo magistrado, em busca da "verdade real", da autorização contida no art. 384 do CPP, de o juiz promover diretamente a mutatio libelli (não tendo até os dias de hoje nenhum tribunal se levantado contra esta questão), da existência do inquérito judicial na antiga Lei de Falências (Lei 7.661/45), da fixação da competência por prevenção (arts. 69, VI, 75, parágrafo único e 83 do CPP), dentre outras hipóteses.

No que atine ao critério de fixação de competência por prevenção, compartilha-se aqui do entendimento de Rômulo de Andrade Moreira (2004):

Entendemos que tais disposições não deveriam constar de um diploma processual de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência judicial, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador.

Observe-se, por exemplo, que para se decretar a prisão preventiva, o Juiz deve obrigatoriamente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, admitir a "existência do crime e indício suficiente de autoria", o que já significa um posicionamento quanto ao mérito da causa penal e, por conseguinte, não deixa de ser um pré-julgamento.

No sentido de excluir-se o julgador que "de alguma forma interferiu na fase investigatória" vem decidindo reiteradamente o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Resquícios do Processo Penal de "segurança pública" são encontrados até mesmo em legislação posterior a 05 de outubro de 1988, como é o caso, para citar somente algumas, das Leis de Controle do Crime Organizado (9.034/95, cujo art. 3.º bem representou a expressão da cultura inquisitorial brasileira e foi declarado inconstitucional pela ADI 1570/DF, rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento de 12 de fevereiro de 2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso), Lei das Interceptações Telefônicas (9.296/96) e da Lei n.º 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que dispõe sobre a prisão temporária. Paulo Rangel (2002, p. 554) não chega a adentrar no mérito da compatibilidade de uma prisão para investigação ser compatível com o Estado Democrático de Direito, para questionar a constitucionalidade desse instituto. Senão, vejamos:

A questão que nos parece interessante, de início, é que a referida prisão foi criada através da Medida Provisória n.º 111, de 24 de novembro de 1989, ou seja, o Executivo, através de Medida Provisória, legislou sobre Processo Penal e Direito Penal, matérias que são da competência privativa da União (cf. art. 22, I, da CRFB) e, portanto, deveriam ser tratadas pelo Congresso Nacional, pois o art. 4.º da Lei de Prisão Temporária criou um tipo penal na Lei n.º 4898/65. Neste caso, entendemos que a Lei traz um vício de iniciativa que não é sanado com a conversão da medida em lei. Há flagrante inconstitucionalidade por vício formal, qual seja: a iniciativa da matéria.

No tocante ao dogma da "verdade real", que continua a ser utilizado pelos desavisados para justificar a possibilidade de colheita de provas pelos magistrados, através de uma simples análise técnica, pode-se observa-lo como resquício do funesto Sistema Inquisitivo, que ainda lhe fornece sustentação. Diante disso, deve-se extirpar do Sistema Constitucional vigente tal argumento falacioso e violador de garantias, por flagrante incompatibilidade. Forçoso consignar a lição de Luigi Ferrajoli, apud Moreira (2004), sobre o tema "verdade real", onde afirma o autor ser aquela:

Carente de limites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida "verdad substancial", al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera em juicio de valor, ampliamente arbitrario del hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el substancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal.


CAPÍTULO 3

INSTITUTO DA TRANSAÇÃO PENAL.

Cabe aqui contextualizar o instituto e a Lei 9.099/95, que o introduziu no ordenamento jurídico pátrio.

O Constituinte de 1987, além de respeitar a proporcionalidade na atribuição de penas e forma de seu cumprimento, com relação à gravidade da infração penal cometida, considerou, ainda que inadvertidamente, a falência da pena privativa de liberdade, notadamente com relação aos crimes de menor danosidade social, o que foi percebido desde a metade do século XIX, na Europa. Tal consideração consubstanciou-se na forma como foi previsto o tratamento a ser atribuído aos crimes mais graves (crimes hediondos) e aos menos graves (ou de menor potencial ofensivo), do direito penal brasileiro.

Esse entendimento é sufragado por Michel Foucault (2004, p. 87),

Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito. É uma arte das energias que se combatem, arte das imagens que se associam, fabricação de ligações estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação de valores opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão, estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder.

Os crimes hediondos foram disciplinados de forma bastante rígida pelo legislador, através da Lei 8.072/90, que prevê a estes a insuscetibilidade de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória (vai-se notando o agravamento de sua disciplina, com relação ao inciso XLIII, art. 5.º, da Carta Constitucional), além de determinar o regime integralmente fechado de cumprimento de pena (de constitucionalidade afirmada pelo STF, ainda que estranhamente) e o aumento do prazo da prisão temporária, elevado para 30 (trinta), dias prorrogáveis por mais trinta nos casos previstos.

Tratamento tão agravado acarretou questionamentos por parte da doutrina nacional. Alberto Silva Franco apud Thaís Vani Bemfica (1998, p. 07) bem sintetiza a questão:

O que teria conduzido o legislador constituinte a formular o n. º XLIII do art. 5. º da CF? O que estaria por detrás do posicionamento adotado? Nos últimos anos, a criminalidade violenta aumentou do ponto de vista estatístico: o dano econômico cresceu sobremaneira, atingindo seguimentos sociais que até então estavam livres de ataques criminosos; atos de terrorismo político e mesmo de terrorismo gratuito abalaram diversos países do mundo; o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins assumiu um gigantismo incomum; a tortura passou a ser encarada como uma postura correta dos órgãos formais de controle social. A partir desse quadro, os meios de comunicação de massa começaram a atuar por interesses políticos subalternos, de forma a exagerar a situação real, formando a idéia de que seria mister, para demove-la, uma luta sem quartel contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos de delinqüentes, mesmo que tal luta viesse a significar a perda de tradicionais garantias do próprio Direito Penal e do Direito Processual Penal.

Isso sem contar o fato de que a vingança, apesar de ter sido há muito retirada das mãos dos particulares (hoje se vivencia a fase da Vingança Pública), não saiu do imaginário popular. Pairam intangíveis no inconsciente dos povos os espetáculos sangrentos das arenas romanas, a punição exemplar, a lei de talião.

Vítimas desse sentimento inferior da humanidade foram, por exemplo, os representantes do cristianismo nascente, que eram jogados às feras, por desrespeitarem a Lei Mosaica. Diante disso, deve-se atentar para o fato de que, como afirma Loïc Wacquant, defender uma intervenção penal extremada é garantia de muitos votos aos políticos (o que faz com que muitos destes passem a partilhar, com intenções eleitorais – ou eleitoreiras – desse ponto de vista). Vale ressaltar que, no Brasil, o fenômeno ainda se encontra bastante tímido (ou muito bem disfarçado).

Os crimes considerados como de menor potencial ofensivo encontram-se no outro extremo do Direito Penal pátrio. Vladimir Aras (2002), ao tratar do art. 98, I, da CRFB, que prevê a criação dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Estadual, aponta que:

O objetivo não declarado, mas implícito, da norma constitucional, foi o de propiciar uma justiça criminal mais ágil e mais adequada à conjuntura social em um Estado democrático, simplificando procedimentos e impedindo a estigmatização do acusado pelo processo penal, que tem em si as suas próprias agruras.

Esse ponto será analisado no tópico que se segue.

3.1. ANÁLISE DO ART. 76 DA LEI 9.099/95.

Prega o art. 76 da Lei 9.099/95, in verbis:

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta.

§ 1. º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2. º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I – ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II – ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de 5 (cinco) anos pela aplicação da pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

§ 3. º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do juiz.

§ 4. º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de 5 (cinco) anos.

§ 5. º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.

§ 6. º A imposição da sanção de que trata o § 4. º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

Um comentário inicial deve tratar da alteração sofrida pelo modelo de política criminal adotado em nosso País, que, desde a edição da Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90) possui como notas marcantes: "aumento das penas, corte de direitos e garantias fundamentais, tipificações novas, sanções desproporcionais e endurecimento da execução penal" (GRINOVER et al., 1999, p. 41).

Nilo Batista (2004, p. 34) descreve, de forma singular, o fenômeno:

Do incessante processo de mudança social, dos resultados que apresentem novas ou antigas propostas do direito penal, das revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das instituições que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia, surgem princípios e recomendações para a reforma ou a transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação. A esse conjunto de princípios e recomendações denomina-se política criminal.

De um paradigma cada vez mais ditatorial e repressor, fundado num direito penal máximo e tendo o processo penal como mero instrumento de realização ou efetivação desse direito material, passou-se a projetar, com base na Carta Política de 1988 (art. 98, inciso I e parágrafo único, com relação aos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal), um microssistema para a apuração e julgamento dos crimes considerados como de menor potencial ofensivo. Tomando-se por base supramencionado dispositivo constitucional, instituiu-se, por meio da Lei 9.099/95, os Juizados Especiais Criminais, com um rito próprio, principiologia específica (oralidade, informalidade, celeridade e busca acentuada da reparação dos danos materiais e morais sofridos pela vítima) e com instrumentos particulares de solução desta espécie de lide penal, adequado também à aplicação de suas penas, que, com base no princípio da proporcionalidade, devem ser de curta duração [01]. Ademais, foram estabelecidos mecanismos com o propósito de se evitar a reincidência e de fazer com que a aplicação de multicitadas penas, sempre que possível, não tocasse a esfera de liberdade dos indivíduos (art. 62, in fine, da Lei 9.099/95).

Claus Roxin (2002, p. 20) confirma a adequação desta opção do legislador pátrio:

...fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais (Kriminalpolitische Zweckmäβigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito.

Nesse sentido, Löic Wacquant (2003, p. 56) analisa a restrição à utilização das penas privativas de liberdade:

E vem a historiografia revisionista da questão penal anunciar o declínio irreversível da prisão: assim como ela tinha um lugar central no dispositivo disciplinar do capitalismo industrial, afirma-se que está destinada a desempenhar um papel menor nas sociedades avançadas nas quais se criam e se desenvolvem formas de controle social mais sutis e difusas ao mesmo tempo.

E ao comentar sobre o sistema carcerário da França, acaba por justificar esta opção (2003, p. 154), com singular propriedade:

...Finge-se descobrir, para logo se escandalizar, que as prisões da França não são "dignas da pátria dos Direitos do Homem", embora, em virtude justamente da lei, a instituição penitenciária funcione à margem do direito, na ausência de qualquer controle democrático, na arbitrariedade administrativa e na indiferença geral (penso no despotismo burocrático que é o pretório, o "tribunal interno" da prisão onde a administração joga com vidas humanas sem controle nem recursos, tendo como única preocupação a manutenção da ordem interior). A prisão, que supostamente deveria fazer respeitar a lei, é de fato, por sua própria organização, uma instituição fora-da-lei. Devendo dar remédio à insegurança e à precariedade, ela não faz senão concentrá-las e intensificá-las, mas na medida que as torna invisíveis, nada mais lhe é exigido.

Feitas estas observações introdutórias, deve-se passar à análise de alguns de seus pontos, a ser iniciada pelo fragmento "não sendo caso de arquivamento", constante do caput do dispositivo em exame.

É cediço que o Ministério Público, como dominus litis, é o órgão imbuído constitucionalmente da função de romper a inércia da jurisdição penal, o que se verifica através da denúncia – a petição inicial do processo penal no caso de crimes de ação penal pública condicionada ou incondicionada. Contudo, a denúncia só deve ser procedida nos casos em que se apure a prova da existência do delito e indícios suficientes de sua autoria. Não se verificando os requisitos aventados, por óbvias razões, não deverá proceder-se à proposta de transação penal.

No que tange ao sujeito passivo da proposta, sua posição é sui generis. Não se trata de denunciado, acusado, réu, suspeito, investigado ou indiciado (o que demandaria inquérito policial). A este o dispositivo em apreço nomeia "autor do fato".

Questão interessante surge com relação à natureza jurídica da sentença que aplica a pena restritiva de direitos ou pecuniária. Trata-se a mesma de uma sentença meramente homologatória ou sentença condenatória? A doutrina nacional não é unânime ao tratar do assunto, entretanto, duas correntes predominam: Tem-se, com Pêcego (2000) que "a primeira entende que não é condenatória a sentença, sendo simplesmente homologatória da transação penal, a segunda que é homologatória de natureza condenatória ou condenatória imprópria, por aplicar a pena, mas não os seus efeitos" [02].

Outro ponto de relevo é o atinente ao descumprimento da pena imposta. Com relação à pena de multa, a questão é de fácil solução: A Lei 9.714/98 considera a pena de multa descumprida como dívida de valor, devendo ser a mesma executada com base na Lei 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais). Já no caso específico do descumprimento de penas restritivas de direito aplicadas através de transação penal, a questão se torna tormentosa, dada a previsão expressa, constante tanto do Código Penal pátrio quanto da Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84), no sentido de dever a mesma ser convertida em pena privativa de liberdade. Em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre o assunto [03]:

EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. JUIZADO ESPECIAL. TRANSAÇÃO PENAL DESCUMPRIDA. CONVERSÃO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITOS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE. ILEGALIDADE. Lei 9.099/95, art. 76, I – A conversão da pena restritiva de direitos, objeto da transação penal, em pena privativa de liberdade ofende aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. II. – H.C. deferido.

Vislumbra-se, pela tomada de posição do STF, que a necessidade de respeitar-se os princípios insculpidos no art. 5. º da CRFB está se evidenciando, ainda que de forma oblíqua. Este assunto será objeto de reflexão no tópico seguinte.

3.2. FILTRAGEM CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO DA TRANSAÇÃO PENAL.

Como dito alhures, apesar de não haver consenso doutrinário sobre o assunto, o bom senso faz com que se considere que uma sentença que aplica "pena restritiva de direitos ou multa" possua natureza jurídica de condenatória, apesar de que com características próprias, como foi revelado (daí o acerto da corrente que a considera como um gênero peculiar, o das denominadas "condenatórias impróprias").

Partindo-se desse pressuposto, surgem alguns problemas de ordem prática. Ainda que não conclua da forma que se intenta no presente trabalho, Geraldo Prado (2005, p. 216), ao tratar do tema, elenca uma importante lição:

A sentença que impõe a pena, ainda que fruto de acordo entre as partes traz algo mais, além do simples reconhecimento da existência do crime ou da contravenção.

Carrega em seu bojo a autorização para que se exija do suposto autor do fato, coativamente, determinada prestação.

Mas como um instituto trazido por uma legislação infraconstitucional pode impor ao suposto autor do fato a realização coativa de determinada prestação através de uma cognição sumária, sem qualquer dilação probatória, quando a Carta Magna impõe que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (art. 5. º, inciso LVII) e que tal decisão penal condenatória deverá, necessariamente, ser atingida através dos princípios do contraditório e ampla defesa, ao proclamar expressamente que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral serão assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5. º, LV)? É de clareza meridiana que tal instituto está em dissonância com a Norma das normas.

Forçoso consignar aqui a lição sempre lapidar de Norberto Bobbio (1999, p. 46):

Em cada grau normativo encontraremos normas de conduta e normas de estrutura, isto é, normas dirigidas diretamente a regular a produção de outras normas. Comecemos pela Constituição. Numa Constituição, como a italiana, há normas que atribuem diretamente direitos e deveres aos cidadãos, como as eu dizem respeito aos direitos de liberdade; mas existem outras normas que regulam o processo através do qual o Parlamento pode funcionar para exercer o Poder Legislativo, e, portanto, não estabelecem nada a respeito das pessoas, limitando-se a estabelecer a maneira pela qual outras normas dirigidas às pessoas poderão ser emanadas.

E continua, linhas abaixo:

Basta-nos ter chamado a atenção sobre esta categoria de normas para a produção de outras normas: é a presença e a freqüência dessas normas que constituem a complexidade do ordenamento jurídico; e somente o estudo do ordenamento jurídico nos faz entender a natureza e a importância dessas normas.

E, segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2002, p. 49), "Normas jurídicas são decisões. Através delas, garantimos que certas decisões serão tomadas. Elas estabelecem assim controles, isto é, pré-decisões, cuja função é determinar outras decisões".

Pode-se considerar que princípios como o do devido processo legal, do qual são corolários os do contraditório e o da ampla defesa, constituem, além de direitos fundamentais, "normas para a produção de outras normas". Isso ocorre, pois o princípio do contraditório busca garantir a participação do acusado no processo, o que realiza a democracia em sua plenitude (já que esta pressupõe a participação dos indivíduos nas decisões de todos os Poderes) e o da ampla defesa visa garantir a efetividade de referida participação, evitando que a mesma ocorra apenas "formalmente".

E a ordem jurídica originada a partir da Constituição de 1988, democrática em sua essência, no dizer de Eugênio Pacelli de Oliveira (2005, p. 08),

...passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo de aplicação da lei penal, mas além e mais do que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado.

Reforçando esta visão, Carvalho et alii (2002, p. 19) bem ilustram o ajuste da teoria do Garantismo Penal à opção adotada pela Constituição de 1988. De acordo com os autores:

A teoria do garantismo penal, antes da mais nada, propõe-se a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a "defesa social" acima dos direitos e garantias individuais. Percebido desta forma, o modelo garantista permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados.

Os direitos fundamentais adquirem, pois, status de intangibilidade, estabelecendo o que Elias Diaz e Ferrajoli denominam de esfera do não-decidível, núcleo sobre o qual sequer a totalidade pode decidir. Em realidade, conforma uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do "bem comum".

O já citado Prado (2005, p. 217) aduz, em sua abordagem, um sentido que se amolda perfeitamente ao do presente estudo, quando questiona o pretenso "bem comum" atingido através do instituto da transação penal:

Mais ainda, na mesma linha e levando em conta o fundamento da legitimidade democrática do exercício da função jurisdicional, cabe também indagar com Ferrajoli como é possível conceber o nexo entre crime e sanção a partir de um comportamento processual do acusado e não do valor de verdade sobre a existência da infração penal e a responsabilidade de seu autor, demonstrado ao longo do processo, em contraditório.

Uma simples constatação de ordem pragmática aponta o perigo de desprezar-se os direitos fundamentais, como ocasiona a aplicação do instituto da transação penal: É que muitos inocentes, apesar de sua condição, ao sentirem o peso de uma possível condenação penal, ainda que esta se configure numa possibilidade remota, a ameaçar o bom conceito que detêm no campo social e acenar com prejuízos muitas vezes irreparáveis no campo profissional (daí a percepção de seu cunho dessocializador), preferem seguir o caminho aberto pela transação penal, apesar da imposição da sanção, que é imediata e não deixa qualquer vestígio. Esta é, como consideram alguns que não captam a amplitude da violação aos direitos humanos, a principal imperfeição do sistema.

Ocorre, muito embora, que, com a adoção do princípio da presunção de inocência e, conseguintemente, com a nova formatação dada ao sistema penal, a Constituição declarou expressamente preferir a absolvição de vários culpados à condenação de um só inocente.

Tal posicionamento se originou, dentre outros diplomas legais, da dicção do art. 8.º do Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, promulgado em nosso País através do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992. Apesar de longo, referido dispositivo merece ser colacionado quese que na sua íntegra, pela importância histórica que carrega. Assim, in verbis:

Artigo 8

Garantias judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

a)direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

b)comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c)concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

d)direito do acusado de defender-se pessoalmente ou ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

e)direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

f)direito de defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

g)direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e

h)direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. ...

No cotejo entre o Pacto de São José da Costa Rica e o instituto da transação penal, criado no âmbito do direito interno, indagação interessante é aventada por Comparato (2001, p. 59):

Pergunta-se: No terreno dos chamados direitos fundamentais, isto é, os direitos humanos reconhecidos expressamente pela autoridade política, existe uma hierarquia normativa? O direito internacional prevalece sobre o direito interno, ou trata-se de duas ordens jurídicas paralelas? Nesta última hipótese, como resolver os eventuais conflitos normativos entre o direito internacional e o direito interno?

Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que s normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. Em várias Constituições posteriores à 2.ª Guerra Mundial, aliás, já se inseriram normas que declaram de nível constitucional os direitos humanos reconhecidos na esfera internacional. Seja como for, vai-se firmando a tese de que, na hipótese de conflito entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico.

O fragmento acima exposto só confirma a tese defendida no presente trabalho, de que a proteção aos direitos fundamentais (direitos humanos positivados) merece ser defendida da forma mais categórica possível, pelo simples fato de que referidos direitos não surgiram de maneira despropositada.

Muito pelo contrário. Os direitos humanos foram a forma encontrada pelos homens (ou por determinada categoria de homens) para que, estabelecendo enunciados universais, pudessem efetivamente se proteger das reiteradas violações à sua dignidade já perpetradas por seus pares, representantes do Estado ou, no caso da Inquisição, "pelos representantes de Deus na Terra".

Daí a impossibilidade de se afirmar, como muitos, que a forma como a Lei 9.099/95 disciplinou a aplicação da transação penal "constitui o devido processo legal exigido pela Constituição" (PÊCEGO, 2000). Definitivamente não constitui.


CONCLUSÃO:

O conceito analítico de crime deve ser utilizado para que se conclua o presente estudo. Crime é fato típico, ilícito e culpável. O princípio da presunção de inocência (ou estado de inocência) pressupõe que a necessária presença de todos os elementos do crime bem como a confirmação de sua autoria devem ser apuradas em juízo, sob o pálio do devido processo legal, do qual são corolários os princípios do contraditório e da ampla defesa. Além disso, a responsabilidade do agente é subjetiva e só deve ser imputada ao mesmo após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Todas essas garantias não foram elaboradas em vão.

Querem as mesmas dizer que o Estado só condenará quem for efetivamente culpado e que sua culpabilidade será demonstrada através de toda uma instrução criminal, com sua característica e imprescindível dilação probatória e seus recursos. Partindo-se da premissa de que o ser humano é falível, esse estratagema foi elaborado na elevada intenção de blindar o sistema contra a possibilidade de erro.

É que qualquer desvio num julgamento, por menor que aparente ser, constitui-se, além de uma violação flagrante à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil e base dos direitos humanos – como ficou demonstrado – numa injustiça irreparável e indesejada.

Portanto, para que se aplique o instituto da transação penal, imprescindível que o mesmo seja reformulado de forma a adequar-se à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a seus princípios reitores, notadamente o da presunção de inocência, conquista histórica da humanidade que não pode ser desprezada inadvertidamente.

O meio jurídico como um todo, mas mais especificamente quem produz o direito, não pode desconhecer ou desconsiderar suas verdades históricas consubstanciadas nos direitos humanos, sob pena de agir temerariamente e sem fundamentos sólidos. As inovações a qualquer preço devem ser, aprioristicamente, postas em questionamento, para que se evite este mal.


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Notas

01 Inicialmente, considerou-se como infração de menor potencial ofensivo os crimes e as contravenções aos quais eram cominadas penas máximas não superiores a um ano. Após a edição da Lei 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, as penas máximas consideradas não devem ser superiores a dois anos.

02 Referidas correntes são defendidas, respectivamente, por Ada Pelegrini Grinover et alii e, no ano de 2000, amparada pelo Supremo Tribunal Federal (HC 79572-GO, rel. Min. Marco Aurélio, 29.2.2000, Informativo STF, n.º 180) e por Júlio Fabbrini Mirabete e Fernando Capez, amparados, por sua vez, pelas 5.ª e 6.ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça nos RHC 8190/GO, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 08/06/1999, DJU 01/07/1999, p. 0211; e RHC 8806/SP, rel. Min. Edson Vidigal, j. 23/11/1999, DJU 13/12/1999, p. 0160.

03 HC 84775-RO, Rel. Min. Carlos Velloso. Segunda Turma. DJ 05.08.2005, p. 118.


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FELLET, André Luiz Fernandes. Direitos humanos, neoconstitucionalismo e instituto da transação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1474, 15 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10150. Acesso em: 25 abr. 2024.