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Arma de brinquedo (art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9437/97)

Arma de brinquedo (art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9437/97)

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INTRODUÇÃO

A Lei 9.437/97 em seu art. 10, § 1º, inc. II, traz o seguinte tipo incriminador: "Nas mesmas penas [detenção de um a dois anos e multa] incorre quem: (...) II - utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem, para o fim de cometer crimes".

O legislador mais uma vez antecipou-se criando um tipo autônomo de verdadeiros atos preparatórios para tentar combater o já enraizado uso de armas de brinquedo no cometimento de crimes. Como veremos, o legislador, intencionalmente ou não, foi inteligente na confecção do crime que estudaremos. Um dos grandes problemas dos dias atuais é a criação interminável de tipos na tentativa errônea de combater a criminalidade, pois o Direito Penal em sua essência deve ser exceção, visto que nunca foi e não será o salvador da pátria para problemas sociais, econômicos etc. O que dizer então da punição de atos preparatórios? É bom que seja, como manda o art. 31 do Código Penal, uma exceção dentro do Direito Penal. Veremos que a atuação do Estado na reprimenda de atos preparatórios que exigem elemento subjetivo explícito, como no nosso caso, pode trazer grande insegurança jurídica e arbitrariedade, uma vez que a linha divisória do que é lícito e do que é crime é tênue demais.

Por esses motivos o legislador foi inteligente e cauteloso, criando um tipo (não é o primeiro) de atos que sozinhos não oferecem nenhum perigo. Atos que não trazem lesividade e ainda constituem um verdadeiro direito. No entanto, os mesmos atos somados a uma finalidade específica transformam a conduta em um perigo real e iminente para a sociedade, com lesividade visível e palpável à paz social.

Demonstraremos que a doutrina se precipitou. Ora analisa o crime apenas sob o ponto de vista da conduta e, é claro, não vê lesividade jurídica do crime; ora analisa a expressão "para o fim de cometer crimes" afastando a aplicabilidade do crime por tratar-se de expressão de idéia futura quando a conduta é presente – que ótimo, pois, se assim não fosse, como veremos, o crime realmente seria infeliz e inaplicável.

Por ser um tipo autônomo, o crime em estudo é totalmente compreensível e aceitável e pode ter real aplicação na prática, punindo aqueles que a lei quis punir. Para isso, basta que se ultrapasse a dificuldade que qualquer tipo criado com a mesma fórmula (atos preparatórios + finalidade subjetiva descrita no tipo) apresentará: o meio de prova.


INTENÇÃO DO LEGISLADOR

O grave problema do uso de armas no cometimento de inúmeros crimes não é atual, muito menos exclusividade do Brasil. O aumento da violência com armas de fogo provou que não havia mais como punir criminosos com uma contravenção penal e passou-se a exigir uma resposta para os problemas causados com armas de fogo. O legislador, respondendo a uma verdadeira necessidade, coloca em vigor a Lei de Armas de Fogo, 9.437/97. A intenção clara da Lei é cercar os criminosos que fazem uso de armas de fogo e eram levemente punidos com um dos delitos liliputianos. Essa intenção manifesta-se, por exemplo, com a inclusão de 18 núcleos no art. 10, caput, da Lei; ou na expressão "transportar" do mesmo artigo, que vem para resolver problemas doutrinários e jurisprudenciais. O agente deixava a arma de fogo no porta-luvas ou porta-malas de seu veículo e, para escapar da lei, argumentava dizendo que não estava "portando".

E quanto à arma de brinquedo?

A criminalidade também se desenvolve e não era novidade o uso de armas de brinquedo no cometimento de crimes, muitas vezes o roubo, art. 157 do Código Penal. Um objeto que imita uma arma de fogo demonstrou-se de uma eficiência ímpar, uma vez que as pessoas de bem, sabedoras do mal que uma arma de fogo pode causar, sempre sucumbem a essa verdadeira violência. Podemos, com a devida compreensão, classificar a arma de brinquedo como a rainha da vis compulsiva.

O delinqüente descobriu um jeito de obter a mesma vantagem patrimonial sem valer-se de uma arma de fogo, escapando do aumento de pena previsto para o roubo (art. 157, § 2º, inc. I, Código Penal). Não entraremos no mérito das duas correntes doutrinárias que surgiram a respeito do aumento ou não da pena do roubo pelo uso de arma de brinquedo (Súmula 174, STJ), uma vez que não traz diferença para o crime que agora estudamos.

A intenção da nova lei é clara, o legislador percebeu que não adiantaria todo esforço para elaboração da Lei 9.437/97, sem tratar de um problema conhecido e grave: cometimento de crime com arma de brinquedo. E por isso criou um tipo incriminador sobre o assunto, antecipando-se e punindo aqueles que quiserem escapar dos preceitos específicos para arma de fogo, servindo-se de arma de brinquedo (ou simulacro) para seu empreendimento criminoso.


ARMA DE BRINQUEDO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA – ESPÉCIES DO MESMO GÊNERO

O ponto crucial do nosso estudo é analisar a forma que criou o crime em estudo.

O legislador nem sempre demonstra uma boa técnica e coerência ao editar leis penais, sobrando para o intérprete essa árdua tarefa, pois nunca é demais a preocupação com analogias in malan partem ou interpretações que tragam mais dano do que benefício à comunidade. Basta lembrar os problemas do art. 9º da Lei 8.072/90 ou a solução dada ao art. 14 da Lei 6.368/76, também por infelicidade do legislador de 1990.

No nosso caso o legislador foi primoroso, pois explicitamente pegou de empréstimo a forma do art. 288 do Código Penal, formação de quadrilha ou bando. Este crime compõe-se da soma de atos preparatórios a uma finalidade criminosa. Ambos, o art. 288 e o art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9.437/97, são espécies do gênero "atos preparatórios com finalidade criminosa".

Como espécies do mesmo gênero, podemos dizer que são exceções no Direito Penal, só possíveis pelo art. 31 do nosso diploma penal. E é bom que seja assim. O legislador pode, mas não deve, antecipar-se até os atos preparatórios. Se o próprio crime já deve ser exceção no Direito, o que dizer da punição de atos preparatórios. Só em casos excepcionais, de real necessidade, deve o legislador criar tipos como esses. Isso porque a conduta não apresenta gravidade intrínseca e nem seria típica, não fosse a construção do tipo penal autônomo que a puni. Sua gravidade ou lesividade social surge quando a ela se agrega uma finalidade específica, de índole criminosa. Torna-se difícil o meio de prova. Como não se pode ler pensamento, são as circunstâncias externas que demonstraram que os autores tinham a intenção de cometer crimes.

O art. 288 descreve a conduta de associação de mais de três pessoas para finalidade criminosa. Da mesma maneira o crime em estudo descreve a utilização de arma de brinquedo para finalidade criminosa. São idênticos em sua construção típica, o que demonstra a cautela que teve o legislador, na medida em que se serviu de um exemplo de quase sessenta anos de aplicação, sempre considerado constitucional, compreensível e totalmente aplicável: a formação de quadrilha.

Podemos inferir que, para aplicação prática, o nosso crime terá a mesma dificuldade que qualquer outro da mesma espécie. A mesma dificuldade que a formação de quadrilha sempre teve: o meio de prova.


POTENCIALIDADE LESIVA

O crime em estudo tem potencialidade lesiva?

Tem e muito. A doutrina, data venia, equivoca-se ao dizer que o crime não pode ser considerado aplicável por ausência de potencialidade lesiva.

Podemos partir de seu irmão, o art. 288 do Código Penal. A formação de quadrilha tem potencialidade lesiva? Claro que tem, dirá a unanimidade da doutrina. Então mudamos a pergunta: Associação de mais de três pessoas, por si só, também tem potencialidade lesiva? Não só não tem, como é um direito constitucional intocável o direito de associação. Ora, se considerarmos a associação de quatro pessoas isoladamente, provocar-se-á, com razão, revolta ao dizer que tal conduta deve ser incriminada. Não deve e não pode, pois, como dito, o direito de associação não só é lícito como é um direito previsto na Carta Magna. O que transforma a associação, "do mocinho no bandido", é simplesmente a finalidade criminosa que o tipo traz como elementar.

Sempre se diz que a diferença entre o remédio e o veneno é a quantidade. Desse modo, assim como pode parecer um absurdo chamar açúcar, de que tanto gostamos, de veneno, ele pode excepcionalmente ser um veneno mortal. Basta ministrá-lo a um diabético. Da mesma maneira é realmente absurdo condenar, execrar, incriminar a associação de mais de três pessoas, a menos que se esteja diante do tipo de formação de quadrilha, em que há uma finalidade criminosa. A mesma associação de quatro ou mais pessoas que não tem potencialidade lesiva, e sim benefícios à sociedade, terá e muito se a finalidade for criminosa, como consta de maneira primorosa no tipo.

E quando simplesmente se utiliza arma de brinquedo, há potencialidade lesiva?

Se houvesse, talvez não teríamos infância. Nunca teve, não tem e nunca terá. Podemos, exagerando, até extrair um direito à utilização de arma de brinquedo pelos jovens, sempre dispostos a imitar seus heróis de desenhos e filmes norte-americanos, armados como guerreiros. No entanto, não é esse "utilizar" que cuida o crime em estudo. Assim como o núcleo "associarem-se", a conduta de utilizar arma de brinquedo ganhará muita lesividade jurídica se somada à finalidade criminosa, colocada também de maneira primorosa no tipo incriminador.

A lesividade não está no objeto em si, pois não passa de um brinquedo, e talvez essa expressão tenha assustado a doutrina. A lesividade, que não é pouca, está no meio de vida daquele que, fazendo útil uma arma de brinquedo, está mantendo seu empreendimento criminoso, na iminência de cometer um crime. O que o legislador quis punir, antecipando-se, é o empreendimento criminoso, servindo-se de um objeto (seja arma de brinquedo ou um simulacro capaz de atemorizar outrem) que pode tornar bem mais eficaz o cometimento de qualquer crime.

Ora, na formação de quadrilha nem são necessários objetos corpóreos para configuração do delito, basta associação intelectual desde que tenha finalidade criminosa. Concluiu o legislador que deve reprimir esse estado de ânimo, essa organização, essa "sociedade comercial" que pretende fabricar crimes.

O enfoque não deve ser dado à arma de brinquedo, um simples objeto inofensivo, quase sempre de plástico, e sim ao tipo como um todo. O legislador corretamente se antecipou, concluiu que deve punir esse estado de ânimo, essa transformação de um objeto em um instrumento prestes a disparar; não projéteis, óbvio, mas disparar a consumação de vários outros crimes.

Há um poder maléfico armazenado na quadrilha, na iminência de lesionar a sociedade. É o mesmo poder armazenado no indivíduo que utiliza um objeto de maneira a facilitar, tornar possível o cometimento de inúmeros crimes.

Enquanto o art. 288 tenta desmontar a "empresa" criminosa, o crime em estudo tenta desmontar o "empresário individual", o fabricante de delitos.

Nas inúmeras favelas do nosso imenso país, a utilização de uma arma de brinquedo com finalidade criminosa tem uma lesividade maior que muitos delitos. O equívoco da doutrina foi olhar para um simples brinquedo de criança, desprezando toda situação que o tipo exige para se elevar a conduta a um crime autônomo.

Poder-se-ia, por absurdo, dizer que o legislador não se pode antecipar dessa maneira, pois a conduta não tem como lesionar, no presente, qualquer bem jurídico. Convenhamos, então a associação criminosa de mais de três pessoas também é inconstitucional e inaplicável. Não tem a formação de quadrilha, da mesma maneira, como ofender qualquer bem jurídico, pois os agentes ficaram só nos atos preparatórios. Nada fizeram ainda, apenas se prepararam.

É claro que ambos os delitos têm lesividade jurídica se os estudarmos como tipos autônomos que são. Enquanto a doutrina ficar procurando uma ofensa, lesividade jurídica a uma vítima determinada para o crime em estudo, não a encontrará e ainda concluirá equivocadamente que o tipo não pode ser aplicado.


REDAÇÃO PERFEITA DO TIPO

Podemos dizer mais uma vez que o legislador, intencionalmente ou não, foi primoroso na criação do tipo incriminador para quem utilizar arma de brinquedo (ou simulacro) com a finalidade de cometer crimes. Usando a mesma fórmula da formação de quadrilha, o próprio tipo resolve os problemas que a doutrina aponta, graças a sua boa redação.

Não é demais lembrar que há uma grande dificuldade quanto ao meio de prova pela própria natureza do crime. Aliás, a idêntica dificuldade que já temos no crime de formação de quadrilha e qualquer outro da mesma espécie.

Importante também dizer que a aplicação do dispositivo foi restringida pelo núcleo. É certo que seja assim, pois se trata de meros atos preparatórios com finalidade criminosa. Não foi sem motivo a exigência de mais de três pessoas no art. 288. O legislador achou demais a punição de três pessoa ou menos que se associam para cometer crimes. É coerente e necessária a precaução na incriminalização de atos preparatórios, ainda mais dessa espécie (somadas à finalidade criminosa).

Com isso, vai-se demonstrando a aplicabilidade e a inteligente redação do referido tipo incriminador que complementou a Lei de Armas de Fogo.

Quanto ao núcleo do tipo

O núcleo do tipo é "Utilizar". Utilizar, segundo o dicionário, é tornar útil, aproveitar, servir-se. Útil por sua vez é: que tem algum uso, que serve para alguma pessoa ou coisa. Se utilizar é fazer algo transformar-se em útil, podemos dizer que quem torna útil faz ter serventia o que antes não tinha.

Utilizar é mais do que o simples portar e é mais do que trazer consigo. Pode ocorrer, mas nem sempre quem porta está utilizando. O legislador preocupou-se em exigir a certeza de que o agente está tornando um objeto sem importância, um simples brinquedo em uma arma em potencial, eficaz na consumação de vários delitos. Um verdadeiro perigo para a coletividade. Isso para separar aquele que brinca, ou transporta uma arma de brinquedo daquele que deseja manter seu empreendimento criminoso. O núcleo, de maneira inteligente, é um divisor de águas. A expressão utilizar traz consigo verdadeira soma objetiva e subjetiva. Enquanto portar é um estado apenas objetivo, pois é difícil mensurar a intenção que está no "portar", o verbo utilizar nos dá a idéia de uma intenção, uma ligação subjetiva entre o agente e o objeto. Assim, realmente o agente quer mais que portar, mais que trazer consigo. Utiliza, transformando pelos seus atos o objeto em algo útil para sua finalidade.

Inteligência do núcleo do tipo. Se o tipo trouxesse como núcleo o verbo portar ou trazer consigo, seria a verdadeira incriminalização da arma de brinquedo. Estaríamos punindo aquele que está carregando um pedaço de plástico. Nesse caso seria fácil a prisão em flagrante por se tratar de uma simples aferição objetiva, saindo do espírito da Lei e dando margem a inúmeras arbitrariedades. Imaginem uma blitz policial em frente a uma loja de brinquedos.

Por hipótese, imaginemos se houvesse no art. 288, como núcleo, o verbo juntar-se. Seria uma forma mais objetiva sem o ânimo de associar-se, sem o affectio societatis. Da mesma maneira se daria uma amplitude maior do que a intenção da lei, não alcançando a finalidade de punir as empresas criminosas. Seria fácil a arbitrariedade e com certeza uma afronta aos direitos individuais. Por isso, o tipo reclama mais, sempre lembrando que se trata de atos preparatórios que materialmente ainda não afetaram a sociedade: uma antecipação do legislador.

Foi feliz o legislador com a referida redação, dando mais segurança aos direitos individuais e exigindo mais que uma ligação objetiva entre o agente e o objeto material do crime. As circunstâncias devem demonstrar que o agente não apenas portava, mas dava utitilade ao objeto para possível cometimento de crimes indeterminados. Demonstra-se novamente que o legislador não pune a arma de brinquedo em si, mas o estilo de vida, o empreendimento criminoso capaz de fabricar crimes.

Quanto à expressão "para o fim de cometer crimes"

Para alcançar a sua intenção, o legislador evidentemente fez uso da mesma fórmula do art. 288 do Código Penal, descrevendo como conduta atos preparatórios totalmente lícitos, transformados em grande perigo para sociedade se somados à finalidade criminosa. Com isso, imitou no final do tipo a expressão "para o fim de cometer crimes".

Com essa expressão, elemento subjetivo explícito no tipo, o crime em estudo torna-se autônomo, dando-lhe aplicabilidade e evitando problemas, como concurso e posterior absorção de crimes. Fica claro que o agente não tem em mente um crime específico, nem precisa cometer qualquer crime para que se encaixe como uma luva no tipo. O que se pune não é o emprego da arma de brinquedo em um crime determinado e sim a conduta de dar utilidade, de servir-se de arma de brinquedo para cometer crimes indeterminados.

A conduta de ambos os crimes, "utilizar arma de brinquedo" e "associarem-se", é presente, bem como a finalidade, a vontade também é presente, atual, porém destinada a produzir efeitos futuros. Não há problema na conduta atual com a finalidade futura, pelo contrário. A prova do que o agente quer produzir no futuro é que justifica a punição no presente.

Se a palavra crime estivesse no singular, o tipo seria suicida. Não se teria um tipo autônomo e, sempre que o agente empregasse arma de brinquedo (ou simulacro) em um crime determinado, ocorreria a absorção. A Lei estaria incentivando o cometimento do crime com arma de fogo, uma vez que seria crime único em vez de dois crimes em concurso se cometido com arma de brinquedo. No entanto, com a redação precisa do tipo não há que se confundir o delito em apreço, de objetividade jurídica própria, com os possíveis que o agente possa praticar.

Por que não se lembrar de seu irmão mais velho (quanto à forma)? A formação de quadrilha é tipo autônomo, independente de qualquer crime futuro que os quadrilheiros venham a praticar. Na verdade, eles não precisam praticar um delito sequer para encaixar-se no tipo do art. 288 do diploma penal. Teleologicamente, se os agentes praticarem crimes futuros, podemos dizer que a infração penal prevista no art. 288 não cumpriu com efetividade seu papel de desmontar a empresa criminosa. O bom seria se fossem punidos antes da prática de delitos futuros, para evitá-los. Ora, é a antecipação do legislador.

Da mesma maneira, aquele que utiliza arma de brinquedo para finalidade criminosa deveria ser punido antes de praticar os delitos que tem em mente, sob pena da não-efetividade da lei penal.

É possível então a aplicação isolada do crime de utilizar arma de brinquedo (ou simulacro) para o fim de cometer crimes?

Perfeitamente possível, da mesma maneira que o art. 288 do Código Penal e qualquer outro delito feito sob a mesma forma, da mesma espécie. Haverá dificuldade, e não será pouca, quanto ao meio de prova pela natureza das infrações. Demonstraremos com exemplos que se pode aplicar o crime em tela.

Não é demais ressaltar que o que torna a conduta (em princípio inofensiva) de utilizar arma de brinquedo em situação justificante para criminalização é justamente o elemento subjetivo explícito do tipo, dando-lhe grande potencialidade lesiva. Transformando, como já dissemos em uma comparação, o açúcar em veneno.

Quanto à "arma de brinquedo" e "simulacro de arma capaz de atemorizar outrem"

As expressões coadunam-se com a intenção do legislador, de punir por antecipação aqueles que montam seu empreendimento criminoso, valendo-se de objetos semelhantes a armas de fogo.

O importante é notar que o brinquedo em si é inofensivo e, como dito, atípico por excelência. A importância aparece quando se soma a transformação deste inofensivo objeto em instrumento de fácil e efetiva aplicação no cometimento de crimes com a intenção do agente em praticá-los.

O próprio tipo ensina que o objeto deve ser capaz de atemorizar alguém, isto é, o agente deve ter a capacidade de fazer do objeto uma arma capaz de consumar crimes. Arma, claro, no sentido de instrumentalidade no cometimento de um crime. Meio hábil para ajudar na consumação de um crime futuro.

A expressão "arma de brinquedo" pode levar o intérprete a comparar um brinquedo com uma arma de fogo e tal comparação não será feliz no estudo deste crime que é autônomo e independente. O crime foi inserido na Lei para cuidar de uma situação conhecida e comum nos dias atuais. Se não fosse criado, sabendo do tratamento mais severo da lei para as armas de fogo, os delinqüentes seriam encorajados mais ainda ao uso de simulacros e armas de brinquedo no cometimento de seus crimes, escapando aos rigores da Lei nova.

Quanto à Pena

É aplicada a mesma pena de dois outros crimes do § 1º do art. 10: detenção de um a dois anos e multa. Conclui-se que o legislador não respeitou, como deveria, o princípio da proporcionalidade das penas. Aliás, infelizmente é comum no Direito Penal a desproporção das penas. Basta citar a pena do homicídio culposo do Código Penal, art. 121, § 3º, que é a mesma da injúria racial prevista no art. 140, § 3º, do mesmo diploma; sendo esta de reclusão e aquela de detenção.

Essa falta de propriedade não pode tirar a constitucionalidade do referido dispositivo, nem sua aplicabilidade, apesar da lamentável desproporcionalidade.


EXEMPLOS PRÁTICOS

Os exemplos práticos sempre demonstram um fato, um possível acontecimento da vida, e devem se encaixar no crime em estudo para mostrar a sua aplicabilidade. No entanto, não podemos relacionar as situações possíveis para lei abstrata, exaurindo sua aplicação. Essa observação faz-se importante pelo núcleo do tipo, utilizar, que, como visto, tem uma exigência maior que o simples uso ou porte de uma arma de brinquedo. Caberá aos julgadores separar, nas situações de fato, aquelas que se encaixam no tipo e aquelas condutas que se mostrarem atípicas. O legislador foi inteligente com o núcleo do tipo, exigindo mais para configuração do crime, porém restringiu sua aplicação. Bom que seja assim, uma vez que é mais um crime de atos preparatórios somados à finalidade criminosa. A linha que separa a tipicidade da aticipidade é tênue, mas distinta.

O problema do crime em tela é o mesmo que qualquer um da sua espécie, o meio de prova.

Imaginemos dois indivíduos com seus respectivos telefones interceptados conforme a lei vigente. Em sua conversa, combinam e compram duas armas de brinquedo para cometerem crimes. Eles justificam claramente que dois bancos possuem uma vigilância insuficiente e, como "dá cadeia" armas de fogo, eles podem cometer seus roubos com tranqüilidade munidos de armas de brinquedo. Tudo devidamente gravado. Dois dias após, um deles adquire um coldre axilar, pois ouviu de um delinqüente que, ao abrir sua jaqueta e mostrar o instrumento dentro de um coldre de arma de fogo, a vítima fica mais atemorizada, facilitando o seu crime. O outro prefere comprar uma tinta cor prata, pois aprendeu que as pistolas niqueladas são mais efetivas no cometimento de crimes, e assim pinta seu objeto. Uma semana depois são surpreendidos na porta do Banco, sem terem praticado nenhum crime, munidos das armas de brinquedos nas situações descritas. Ainda mais, testemunhas os viram mais de uma vez na frente do banco e em outro, aquele descrito na gravação. Precisamos de mais? Uma ou duas testemunhas, vizinhos dos agentes, afirmando com veemência que ouviram mais de uma vez ambos dizerem que iriam "assaltar" aqueles que saíam do banco. Fica claro que os agentes deram utilidade aos objetos com a finalidade criminosa e o fato se encaixa como uma luva no tipo penal. Difícil, mas pode ocorrer: e se eles confessarem que há dias realmente utilizavam as armas simuladas com intenção de cometer crimes indeterminados?

Desafiamos aqueles que não se contentam com o exemplo a dar um exemplo tão pormenorizado de formação de quadrilha sem outro crime atrelado. É claro, via de regra aquele e este virão acompanhados no processo de outros crimes, pois são estes que demonstraram claramente a intenção do agente.

É por isso que a doutrina unânime aceita e explica o crime de formação de quadrilha como crime autônomo, mas não dá detalhes de um exemplo prático. Sempre haverá alguém, examinando um caso hipotético, exigindo mais provas para a configuração do crime. Quantos planos, quantas reuniões são necessárias para configuração da formação de quadrilha? É penoso o trabalho de saber em que momento começa a associação criminosa, assim como é difícil saber quando o agente deu uso, utilidade, mudou de simples brinquedo para um instrumento de sua finalidade criminosa. Lembramos que a expressão "utilizar" traz carga subjetiva por natureza, não sendo suficiente portar, transportar ou trazer consigo uma arma de brinquedo. Bom que seja assim. Utilizar, tornar útil não em um crime específico, mas sim em seu empreendimento criminoso.

Assim, podemos dar exemplos mais fáceis e que acontecem corriqueiramente. Exemplos do crime em estudo atrelado, ligado a outros delitos, que servirão como meio de prova. Não são meros exemplos doutrinários e apaixonantes como o da embriaguez fortuita, em que o indivíduo tropeça e cai em um tonel de pinga.

Imaginemos que o agente é o "dono" da favela, fato mais do que comum, infelizmente. Munido de uma arma de brinquedo, ele impõe horário para os moradores dos cinco ou seis barracos em frente à favela, a fim de possibilitar a venda de drogas. Essas pessoas são vítimas do crime de constrangimento ilegal, previsto no art. 146 do Código Penal e não há como dizer que o agente, depois de surpreendido, não estava utilizando a arma de brinquedo para o fim de cometer crimes. É um verdadeiro empreendimento criminoso. O agente não quer praticar um crime de constrangimento ilegal hoje ou amanhã, demonstra-se que ele deu utilidade para o objeto em sua vida criminosa para o cometimento de qualquer crime. É típica a conduta, merecendo a reprimenda perfeita do art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9.437/97. Claro, como acontece na formação de quadrilha, a denúncia ministerial trará o crime em conjunto com os delitos de constrangimento ilegal, que são meios de prova do seu assumido estilo de vida.

Podemos dizer mais: se o inc. III, do § 1º, do art. 10, é um crime subsidiário explícito (disparo de arma de fogo), classificamos o nosso delito como subsidiário implícito, ou seja, no último exemplo ocorreria a absorção do constrangimento ilegal pelo crime de utilizar arma de brinquedo para cometer crimes. A pena do primeiro é menor que do segundo.

O último exemplo é o mais interessante. O agente, "dono da favela", faz uso, utiliza uma arma de brinquedo para cometer crimes indeterminados. Demonstra-se essa conduta quando ele acaba por praticar vários crimes de ameaça contra quatro vítimas diferentes em dias diferentes. Preso pela polícia, as quatro vítimas o reconhecem como autor das ameaças e está mais do que demonstrado que o agente utilizava a referida arma de brinquedo apreendida para o cometimento de crimes. Há ainda uma testemunha que explica o modus operandi do autor. Conta que o agente, nos dias que desconfiava estar prestes a sofrer ação da polícia, trocava sua arma verdadeira pela imitação, sabendo das conseqüências atuais para quem faz uso de arma de fogo. No entanto, nenhuma das quatro vítimas quer representar, ou seja, impedem que o Ministério Público intente ação penal, dependente de representação por ser de ação penal pública condicionada. Pela doutrina atual, equivocada, restaria mandar esse criminoso embora sem qualquer resposta estatal, por acreditar que é inaplicável o crime em estudo, apesar de mais do que comprovada a conduta de utilizar arma de brinquedo com a finalidade criminosa.

Mais do que clara está a dificuldade de aplicar o crime independente de outros delitos por causa do meio de prova. Problema idêntico ao crime de formação de quadrilha. Em regra, esses delitos virão acompanhados de outros crimes e circunstâncias que demonstrarão a finalidade criminosa, separando essas condutas da simples, e atípica, associação e utilização de arma de brinquedo. Bom que seja assim; trata-se nos dois crimes de atos preparatórios com finalidade criminosa.


CONCLUSÃO

Não há como sustentar a inaplicabilidade do crime que estudamos, muito menos sua inconstitucionalidade. Estaríamos desprezando sessenta anos de vigência do crime de formação de quadrilha ou bando, tipo da mesma espécie. Apesar de firme opinião em contrário, poderemos e deveremos respeitar a posição de que não há necessidade de tipificar atos preparatórios como esses. Crimes de perigo abstrato do qual é vítima a coletividade como a associação criminosa do art. 288 do Código Penal e a utilização de arma de brinquedo com finalidade criminosa. Entretanto, serão sempre inaceitáveis as argumentações que tentarem retirar o crime do ordenamento jurídico, seja formal ou materialmente.


PROBLEMAS APONTADOS PELA DOUTRINA

Passemos à análise de alguns supostos problemas que a doutrina aponta, como fundamento da inaplicação, incompreensão do crime em estudo.

Se a arma de brinquedo nunca foi admitida para caracterizar a contravenção do art. 19, como pode servir de crime autônomo?

A contravenção presumia perigo resultante da simples situação objetiva de posse, do porte de uma arma de fogo. É o que acontece hoje com o art. 10, caput, da Lei 9.437/97. A incriminalização decorre do objeto em si e não das atitudes do agente, do seu meio de vida. A Lei nunca presumiu, e nem poderia ter feito, o perigo resultante da posse de um brinquedo, pois realmente seria um absurdo. O crime em estudo pune a escalada do agente que se coloca em uma situação diferenciada, efetiva e presumivelmente perigosa à sociedade por querer adotar um estilo de vida, cometimento de crimes. Servindo-se para isso de uma peça idêntica a uma arma de fogo. O enfoque não o objeto em si, mas as atitudes do agente com o referido objeto.

O núcleo do tipo, situação presente, é incompatível com a expressão "para o fim de cometer crimes", situação futura?

A conduta de associarem-se prevista para o crime do art. 288 do Código Penal é presente, apesar de a finalidade ser de cometer crimes futuros. Aliás, é essa construção que dá autonomia ao tipo, pois, se ligasse a conduta ao cometimento concomitante de um crime, teríamos os problemas já apontados; haveria inevitável absorção do crime, tornando-o ineficaz. Quando o tipo trouxe a finalidade futura, separou o delito em estudo do emprego efetivo de uma arma de brinquedo em um crime determinado.

Assim como a expressão associar carrega mais de uma situação objetiva, ou seja, exige um estado de ânimo, uma vontade indissociável dos atos materiais que os agentes pratiquem, o verbo utilizar também exige a mesma ligação da situação de fato com a intenção de tornar útil, dar uma utilidade, uma finalidade ao objeto. Inteligência do tipo que impede a punição da simples posse de um objeto, muitas vezes de plástico.

Não há que se falar em incompatibilidade do núcleo com a finalidade. O crime é utilizar, dar uma utilidade à arma de brinquedo (ou simulacro) e não empregar em um crime determinado. O utilizar não está ligado a um crime determinado que se pretenda praticar. A conduta é presente, independente de qualquer crime, assim como no crime de formação de quadrilha ou bando.

Na verdade a expressão final não "matou" o começo da oração, argumento equivocado da doutrina, mas salvou, dando autonomia como um crime autônomo, independente como deve ser.

Podemos concluir que a fórmula de construção de tipos dessa espécie (atos preparatórios + finalidade criminosa) sempre trará os mesmos problemas de interpretação que devem ser ultrapassados. São, porém, crimes aplicáveis apesar da dificuldade do meio de prova.

É verdade que a lei estaria incentivando o cometimento de crimes com arma de fogo, pois seria um crime único em vez de dois crimes em concurso se cometido com arma de brinquedo?

Qualquer manual de direito penal ensina-nos a resposta a essa pergunta. Se mais de três pessoas efetivamente se associarem para cometer um crime determinado, o fato é atípico. Ensinam mais: se foram vários crimes, porém determinados, o fato é totalmente atípico. O art. 288 do Código Penal não pune a associação para determinado crime e sim a construção de um estilo de vida, de uma "empresa criminosa". É essa a diferença entre o concurso eventual e a formação de quadrilha.

Da mesma maneira, se o agente utilizar uma arma de brinquedo no cometimento de um crime de ameaça, p.ex., não estaremos diante de um problema, pois o fato é totalmente atípico com relação ao instrumento usado para ameaçar. Não se encaixa no tipo do inc. II, § 1º, do art. 10, da Lei 9.437/97. Não cuida o referido crime da utilização do objeto em um crime determinado. A punição vem quando o agente, querendo tornar-se um delinqüente mais eficaz, mais poderoso para consumação de delitos indeterminados, dá utilidade a um objeto que imita uma arma de fogo.

Por outro lado, se em um processo de ameaça se comprova que o agente já fazia uso da arma de fogo que empregou no crime de ameaça, deverá responder em concurso com o caput do art. 10 da Lei. O mesmo se diz para arma de brinquedo, pois são objetos jurídicos diversos.

Não incentiva a Lei, portanto, o uso de armas de fogo sob pretexto de ser menos severa a conjugação dos crimes em concurso. Mais uma vez percebe-se a precisão da redação do tipo em estudo, dando-lhe aplicabilidade, autonomia e coerência com o sistema.

Há problema no caso de roubo cometido com arma de brinquedo (Súmula 174, STJ)?

É importante salientar que a divergência doutrinária e jurisprudencial não afetará a compreensão, vigência e aplicabilidade do crime em estudo.

Se a arma de brinquedo foi apenas instrumento no cometimento do crime de roubo, ou seja, o agente não deu utilidade ao objeto para fins criminosos, apenas empregou efetivamente em um crime de roubo, o fato é atípico, não se encaixa no art. 10, § 1º, inc. II, da Lei de Armas. Assim, o agente responderá pelo roubo, com aumento de pena para aqueles que admitem a Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

Por outro lado, se demonstrado pelas provas do processo que o agente utilizava, havia dado anterior utilidade em sua empreitada criminosa com o objeto parecido com a arma de fogo, não para o crime de roubo, mas para esse e qualquer outro que viesse a cometer, estamos diante do crime de utilizar arma de fogo com finalidade criminosa. Nesse caso há concurso deste com o crime de roubo.

A única discussão é se nesse último caso o concurso é com o roubo simples ou com pena aumentada pelo emprego de arma. Alguns podem dizer que será bis in idem se houver concurso do crime em estudo com o art. 157, § 2º, inc I, do Código Penal.

Já foi dito que tal discussão não tem relevância para nosso estudo, pois de uma maneira ou de outra o crime previsto para quem utiliza arma de brinquedo (ou simulacro) com finalidade criminosa é autônomo e continua intocável, independente da corrente adotada para o caso de concurso com o crime de roubo.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NORCIA, André Luiz Rodrigo do Prado. Arma de brinquedo (art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9437/97). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1028. Acesso em: 25 abr. 2024.