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O art. 3º da Lei do Crime Organizado e a imparcialidade do juiz criminal

O art. 3º da Lei do Crime Organizado e a imparcialidade do juiz criminal

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A lei do crime organizado criou uma nova faculdade para o juiz criminal, não prevista constitucionalmente: realizar diligências pessoalmente, quando ocorrer possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou pela lei.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1.BREVE ESCORÇO SOBRE OS SISTEMAS ACUSATÓRIO E INQUISITORIAL; 1.1.Conceitos; 2. O ART. 3º, DA LEI 9.034/95; 3. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, A ADI-1570 E O ART. 3º DA LEI 9034/95; CONCLUSÃO SISTEMATIZADA; BIBLIOGRAFIA


INTRODUÇÃO.

Cuidaremos, aqui, de tema delicado, e que muitas vezes passa despercebido pela doutrina e jurisprudência pátrias, qual seja, a questão referente ao art. 3º, da Lei 9.034, de 3 de maio de 1995, no ponto em que concede poderes ao Juiz Criminal de realizar diligências, lavrar auto circunstanciado, relatando as experiências colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória.

Atentos para os novos paradigmas do Direito Penal, cuja inauguração em nosso ordenamento em muito se deve à Constituição Federal de 1988, pensamos haver extrema necessidade de uma revisitação desse artigo de lei, quiçá um estudo mais aprofundado sobre o mesmo, a fim de decidir, inclusive, se existe lugar, no plano de um sistema acusatório, constitucionalmente definido, para disposições como tais.

Como cediço, embora se defenda, classicamente, que o Juiz criminal, no seu mister de decidir sobre a liberdade ou cárcere de determinado indivíduo, deve ser imparcial, e levar em consideração apenas os elementos concretos, sem juízos de valor, quaisquer que sejam, uma pergunta se faz: será possível manter tal imparcialidade?

De fato, a resposta parece óbvia. Ademais, a questão não se encerra simplesmente em si mesma, mas traz consigo uma necessidade de valorizar o sistema acusatório, excluindo da processualística penal qualquer figura relacionada ao vestuto juiz inquisidor.

No mais, o relevante é não olvidar da necessidade premente de se aplicar o Direito sempre sob uma ótica garantista, buscando afinar a ciência com os ditames da nova ordem constitucional, e tentando abrir essa "caixa de pandora" que se tornou a ciência jurídica penal para a nova realidade do mundo.


1. BREVE ESCORÇO SOBRE OS SISTEMAS ACUSATÓRIO E INQUISITORIAL.

1.1. Conceitos.

O processo penal persecutório visa apurar a responsabilidade de uma pessoa face à ordem jurídico-constitucional, em face de uma conduta que se alega tenha violado um dos bem jurídicos da sociedade.

Tal persecução pode se realizar das mais diversas formas e com os mais variados atores.

Dá-se o nome de sistema inquisitorial àquelas formas de persecução em que alguns atores concentram, em si mesmos, mais de uma função no procedimento. Seria a hipótese de o Juiz, além de sua função típica de julgar, congregar a responsabilidade de investigar o fato delituoso.

À prima facie, denota-se que tal sistema vai de encontro ao nosso atual sistema constitucional, uma vez que existe delimitação expressa de funções e vedações.

O sistema acusatório, por sua vez, seria o que guarda maior consonância com a Constituição Federal, pois prevê a rígida separação de atribuições entre os atores envolvidos na persecução penal.

Ou melhor, no dizer de Salo de Carvalho, o modelo acusatório é caracterizado

pelo posicionamento passivo do juiz enquanto sujeito processual, tanto no que concerne à iniciativa da ação quanto à gestão da prova. Está rigidamente separado das partes (imparcialidade), principalmente do órgão acusador. A peça vestibular compete exclusivamente à acusação, e a produção probatória cabe tão-somente à acusação e à defesa. Neste juízo oral e público, a decisão está restrita ao juiz segundo seu livre convencimento – impossível, portanto, sua manifestação para abertura do processo e a investigação ex officio. A radical separação entre juiz e acusação é o mais importante de todos os elementos do modelo acusatório. [01]

Sob esta égide, o magistrado apenas se preocupa em julgar, mantendo seu distanciamento inefável entre as partes e, por conseguinte, permanecendo imparcial. Colocando na fronte da racionalidade a Constituição Federal, percebe-se que o mesmo não pode nem deve partir espontaneamente para colheita de provas, uma vez que se trata de atribuição exclusiva da polícia judiciária.

Vejamos o que dita a Constituição Federal de 1988 sobre o assunto:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

(...)

§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Com se percebe, o sistema acusatório se coaduna muito melhor com a sistemática constitucional vigente, uma vez que existe rígida separação de poderes entre os órgãos integrantes do Estado, inclusive como forma de combater o mau uso do poder e o autoritarismo.

Já é senso comum, inclusive com muitos exemplos na política nacional, que a concentração de poder corrompe, não somente pela fraqueza de valores dos seus detentores, mas muito mais por um imperativo da condição humana, psicologicamente explicável.

O sistema acusatório, com sua rígida separação de funções, presta importante serviço para democracia. Neste sentido, as palavras de Geraldo Prado:

O processo penal não pode fugir, na essência, à estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar.(...) A estrutura democrática se contrapõe à forma autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal democrático as funções acabam distribuídas entre órgãos distintos obedecendo está mesma lógica. [02]

A Constituição Federal não diz expressamente, nem precisaria dizer, que adotou o sistema acusatório. Esta constatação deriva da própria análise sistemática de seus princípios. Sobre o tema, assim se manifestou o Prof. Álvaro Mayrink:

A Carta não precisaria expressamente dizer: "Adotamos o sistema acusatório". Bastaria por quê? Porque os princípios elencados na Carta de 1988 são claros e transparentes para que qualquer novel estudante de direito possa saber que ela adotou o sistema acusatório. Se abrirmos nosso velho e ultrapassado Código de Processo Penal, observaremos, no art. 129, inc. I, da Constituição Republicana, quando trata das funções institucionais do Ministério Público, que cabe a ele, privativamente, promover ação penal de iniciativa pública. [03]

Portanto, como decorrência do sistema acusatório, o Juiz deve se colocar em posição exterior às partes, vale dizer, o litígio se desenvolverá de forma alheia ao magistrado e ele nunca pode se envolver naquele nível para interferir, pena de desequilibrar a balança e tornar-se suspeito. Em suma, deve ser um terzietá (terceiro estranho às partes), qualquer disposição infraconstitucional que venha de encontro a isto deverá ser rechaçada do ordenamento jurídico.


2. O ART. 3º, DA LEI 9.034/95.

Como alvo principal deste estudo, e fazendo um paralelo com o sistema acusatório e inquisitorial, nos deparamos com o art. 3º, da Lei 9.034, de 3 de maio de 1995, também conhecida como "lei do crime organizado". Sua epígrafe assim versa: "Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas."

O texto do art. 3º, da sobredita lei, tem o seguinte teor:

CAPÍTULO II

Da Preservação do Sigilo Constitucional

Art.3º Nas hipóteses do inciso III do art. 2º desta lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça.

§ 1º Para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo.

§ 2º O juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória, podendo para esse efeito, designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc.

§ 3º O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos caso de divulgação.

§ 4º Os argumentos de acusação e defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz.

§ 5º Em caso de recurso, o auto da diligência será fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão, que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça.

Portanto, é inegável que a lei criou uma nova faculdade para o Juiz Criminal, não compreendida entre suas atribuições constitucionais, qual seja, a de realizar diligências pessoalmente, quando ocorrer possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou pela lei.

Houve por bem, também, permitir a lavratura de auto circunstanciado da diligência, com posterior relatório das informações colhidas oralmente, procedendo-se à juntada de cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória.

Do cotejo entre a nomenclatura do capítulo (da preservação do sigilo constitucional) e o caput do art. 3º, depreende-se que a intenção do legislador ordinário não foi franquear, indiscriminadamente, a investigação criminal nas mãos do magistrado. Ao que parece, a mens legislatoris foi a de preservar o sigilo constitucional dos dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais.

Entendeu-se que a concentração dos atos inquisitoriais nas mãos de uma única pessoa colaboraria para a manutenção da privacidade das informações coletadas. A previsão de que o auto de diligência deverá ser conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, colabora para confirmar isso.

Contudo, o equívoco parece ter incidido ao apontar "aquele" que receberia o supracitado encargo.

De fato, ao magistrado, cabe apenas e tão-somente o ofício de julgar. Dizemos isso, de forma tão categórica, tendo em vista sua submissão ao princípio da imparcialidade.

A contaminação do juízo decisório pelas provas que o mesmo se encarregou de trazer aos autos, no caso do art. 3º, é muito evidente.

Repare-se que o §2º determina que o juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória. Ou seja, em última análise, o primeiro ator processual que determinará se a prova colhida tem relevância suficiente para ingressar nos autos será aquele a quem caberia valorá-la, em posterior juízo decisório.

Pergunta-se: como seria possível impugnar a licitude ou legitimidade de uma prova, dado que a impugnação será julgada pela mesma pessoa que produziu o documento? Acatando, por hipótese, a impugnação, o próprio magistrado estaria atestando seu desrespeito às leis da República. É o risco inevitável da concentração de funções em um mesmo órgão: a quebra da imparcialidade.

Ademais, o que dizer diante de contraprova suficiente para elidir a convicção formada pelos documentos carreados pelo juiz, em sua diligência? O mesmo possuiria isenção suficiente para admitir que "sua" prova foi superada, em termos de convicção, por outra mais específica produzida pelas partes?

Por fim, a quem incumbe a fiscalização dos atos investigatórios levados à cabo pelo próprio juízo?

Como se pode notar, a inconstitucionalidade é flagrante.

Partindo da mesma premissa, o Prof. Rômulo Moreira tece os seguintes comentários:

Vê-se, portanto, que se permitiu uma perigosa e desaconselhável investigação criminal levada a cabo diretamente pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo caracterizado, como diz Ferrajoli, por "una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad", ou seja, este sistema "confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga". [04]

E continua o preclaro mestre:

É evidente que o dispositivo é teratológico, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como "necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração da justiça. (...) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’".

Esta nos parece ser a posição majoritária na doutrina.

Reforçando o entendimento, colacionamos o posicionamento de Guilherme de Souza Nucci, comentando o afamado artigo:

Não há viabilidade constitucional para viabilizar a figura do Juiz inquisidor, aquele que busca pessoalmente a prova, realizando diligências, em rigoroso segredo de justiça, guardando consigo o que colheu e somente exibindo os documentos às partes na sua presença. [05]

De fato, é inegável que disposições deste teor violam o princípio do juízo natural, preconizado no art. 5º, incisos LIII e XXXVII, da CF, reforçado pela necessária imparcialidade do juiz como direito universalmente reconhecido (art. 10, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; e art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).


3. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, A ADI-1570 E O ART. 3º, DA LEI 9034/95.

Em 12 de fevereiro de 2004, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, deu provimento parcial à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1570), ajuizada pelo Procurador-Geral da República, declarando a inconstitucionalidade do art. 3º, na parte que se refere à quebra dos sigilos fiscal e eleitoral.

Eis a ementa do r. acórdão:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. "JUIZ DE INSTRUÇÃO". REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e § 4o). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte.

O voto do Min. Relator Maurício Corrêa expressou o entendimento de que o dispositivo impugnado confere ao Juiz competência para diligenciar, pessoalmente, a obtenção de provas pertinentes à persecução penal de atos de organizações criminosas, o que, de fato, gera uma relação de causa e efeito entre as provas coligidas contra o suposto autor do crime e a decisão a ser proferida pelo mesmo. Afirmou-se, ainda, que ninguém pode negar que o magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique envolvido psicologicamente com a causa, contaminando sua imparcialidade.

Em verdade, tal voto muito representou na busca da imparcialidade do Juiz Criminal e na reafirmação de um sistema verdadeiramente acusatório.

Entretanto, como foi dito, a ação foi surpreendentemente julgada procedente "em parte", somente extirpando da aplicabilidade do dispositivo as atuações que envolvessem o sigilo fiscal e eleitoral. Tudo isto unicamente por razões de conflito com a Lei Complementar 105/01, que, por possuir hierarquia superior à lei ordinária 9.034/95 e ser-lhe posterior, teria revogado implicitamente as questões envolvendo os sigilos fiscal e eleitoral, além de estabelecer disciplina diversa.

É desnecessário dizer que o Pretório Excelso deixou passar por entre os dedos uma excelente oportunidade de dar maior efetividade ao entendimento consubstanciado no voto do Exmo. Relator, o que geraria um reforço surpreendente ao princípio da imparcialidade do juiz criminal.

Haveria possibilidade jurídica para a exclusão total da norma consubstanciada no art. 3º, pois as bases ideológicas para tanto já estavam lançadas.

Infelizmente, a ação não foi julgada totalmente procedente e ainda remanesce, em nosso ordenamento, o art. 3º, pelo menos na parte em que não diz respeito aos sigilos fiscais e eleitorais.

No entanto, existe certo entendimento na doutrina de que houve revogação total do dispositivo. Desta opinião, partilha Guilherme de Souza Nucci:

Isto significa que o pedido não estaria prejudicado quanto aos mencionados sigilos bancário e financeiro. Em conclusão, no entanto, com equívoco ou sem ele, pode-se deduzir não mais estar em vigor o art. 3° da lei 9.034/95. [06]

A divergência no julgamento da ação pertenceu, em parte, ao Ministro Nelson Jobim, que se manifestou da seguinte forma:

Todavia, não encaro de forma ortodoxa essa posição. Nesta Casa, recentemente, citei exemplo, formulado comumente pelo eminente Ministro Sepúlveda Pertence: se amanhã o Ministério Público receber uma carta com documentos, contendo uma acusação que possibilite a instauração de ação penal, ele o faz, dispensando o inquérito. Mais: se é procurado em seu gabinete por um cidadão com uma denúncia, ele não pode tomar o seu depoimento? É claro que pode. Seria desarrazoado o entendimento sustentando o contrário. O que o Ministério Público não pode fazer é baixar portaria e instaurar inquérito policial, que isto é da competência da polícia, está na Constituição. Quero dizer mais: o fato de ser da polícia a atividade principal da investigação não significa que não poderia o juiz, em caráter excepcional, realizar uma diligência. Como juiz de primeiro grau, fiz muitas inspeções, que foram relevantes na busca da verdade material.

Com todas as vênias e respeito ao entendimento do Insigne Ministro, a atuação investigatória do Ministério Público é carregada de matizes totalmente diferentes quando se atribui o mesmo poder ao magistrado. A colisão de funções é muito mais perniciosa e grave nesta hipótese do que naquela.

Quer-se dizer: as funções de investigar e acusar podem coexistir, dado que, em certo casos, existe, entre ambas, certa complementaridade. O mesmo não se pode dizer da função de julgar, que é ofício naturalmente solitário.


CONCLUSÃO SISTEMATIZADA.

Do exposto, podemos extrair as seguintes conclusões, aproveitando, também, para retomar o assunto tratado:

1. Dá-se o nome de sistema inquisitorial àquelas formas de persecução em que alguns autores concentram, em si mesmos, mais de uma função no procedimento.

2. O sistema acusatório, por sua vez, seria o que guarda maior consonância com a Constituição Federal, pois prevê a rígida separação de atribuições entre os atores envolvidos na persecução penal.

3. A concentração de poder corrompe, não somente pela fraqueza de valores dos seus detentores, mas muito mais por um imperativo da condição humana, psicologicamente explicável.

4. A Constituição Federal não diz expressamente, nem precisaria dizer, que adotou o sistema acusatório. Esta constatação deriva da própria análise sistemática de seus princípios.

5. A lei do crime organizado criou uma nova faculdade para o Juiz Criminal, não compreendida entre suas atribuições constitucionais, qual seja, a de realizar diligências pessoalmente, quando ocorrer possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou pela lei.

6. Ao magistrado, cabe apenas e tão-somente o ofício de julgar, pois está submetido ao princípio da imparcialidade A contaminação do juízo decisório pelas provas que o mesmo se encarregou de trazer aos autos, no caso do art. 3º, é muito evidente.

7. O art. 3º, da lei 9.034/95, viola o princípio do juízo natural, preconizado no art. 5º, incisos LIII e XXXVII, da CF, reforçado pela necessária imparcialidade do juiz como direito universalmente reconhecido (art. 10, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; e art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).

8. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, deu provimento parcial à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1570), ajuizada pelo Procurador-Geral da República, declarando a inconstitucionalidade do art. 3º, na parte que se refere à quebra dos sigilos fiscal e eleitoral.

9. É desnecessário dizer que o Pretório Excelso deixou passar por entre os dedos uma excelente oportunidade de dar maior efetividade ao entendimento consubstanciado no voto do Exmo. Relator, o que geraria um reforço surpreendente ao principio da imparcialidade do juiz criminal.

10. Infelizmente, a ação não foi julgada totalmente procedente e ainda remanesce, em nosso ordenamento, o art. 3º, pelo menos na parte em que não diz respeito aos sigilos fiscais e eleitorais.


BIBLIOGRAFIA.

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MARCATO, Antonio Carlos. A imparcialidade do juiz e a validade do processo. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 57, jul. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3021>. Acessado em: 22.07.06.

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NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Ed. RT, 2ª Edição, 2007.

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2004.

PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro, 2006.


NOTAS

01 CARVALHO, Salo de. Da necessidade de efetivação do Sistema Acusatório no Processo de Execução Penal. in CARVALHO, Salo de (org.). Crítica à Execução Penal. RJ: Lumen Juris, 2002. Disponível em: <http://www.direitocriminal.adv.br/pdfs/artigo2.pdf>. Acessado em: 10.08.2007.

02 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro, 2006.

03 DA COSTA, Álvaro Mayrink. Limitações da atuação do Juiz no sistema acusatório. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, RJ, (24), 2006.

04 MOREIRA, Rômulo de Andrade. O Processo Penal como Instrumento de Democracia. Disponível em <www.amab.com.br/emab/artigos/OProcessoPenalcomo.doc>. Acessado em: 10/08/2007.

05 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Ed. RT, 2ª Edição, 2007.

06 Ob. Cit.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MODESTO, Danilo Von Beckerath. O art. 3º da Lei do Crime Organizado e a imparcialidade do juiz criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1513, 23 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10307. Acesso em: 19 abr. 2024.