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A boa-fé: conceito, evolução e caracterização como princípio constitucional

A boa-fé: conceito, evolução e caracterização como princípio constitucional

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Resumo: Com o presente artigo, procura-se analisar o histórico da boa-fé, diferenciar os conceitos de boa-fé objetiva e subjetiva e delimitar os limites do instituto em sua acepção como princípio constitucional em nosso ordenamento jurídico atual.

Palavras-chave: Boa-fé objetiva. Boa-fé subjetiva. Princípios constitucionais implícitos e explícitos. O princípio constitucional da boa-fé.


Introdução. A evolução da boa-fé

Embora o campo de atuação da boa-fé seja vasto, é grande a dificuldade em sua conceituação, visto que comporta uma série de significados, conforme seja analisada sob os prismas subjetivo ou objetivo, como princípio ou cláusula geral.

Em linhas gerais, pode se afirmar que a origem da expressão remonta aos primórdios dos tempos romanos, em que já se vislumbrava uma nítida dualidade de conceitos, na caracterização simultânea da "bona fides" e da "fides bona". Se, por um lado, analisava-se a crença de um sujeito para avaliar se este procedia conforme os ditames legais, por outro, todas as relações eram fundadas na confiança e o juiz, dentro do processo formulário, era remetido a critérios de decisão éticos, sociais e de eqüidade.

Entretanto, quando da Idade Média, houve uma verdadeira diluição da boa-fé objetiva. Com o domínio então exercido pela Igreja Católica, a boa-fé começou a se traduzir como a ausência de pecado, dentro do contexto dos ideais cristãos. A boa-fé não mais era aplicada à posse ou às obrigações, mas apenas aos acordos meramente consensuais.

Mais adiante, continuou-se intensamente o processo de subjetivação. Na Idade Moderna, com a ascensão da burguesia e todos os valores a esta relacionados, o princípio da boa-fé foi inteiramente absorvido pelo dogma da autonomia da vontade. Os contratos faziam lei entre as partes e a vontade destas era a lei suprema, não devendo o Estado interferir de qualquer modo.

Conforme afirma Rosenvald (2005, p. 77), "do ideário clássico da Revolução Francesa, ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, a burguesia se apossou dos dois primeiros valores e comodamente se esqueceu do dever de solidariedade".

Na época das codificações, o desenvolvimento da boa-fé objetiva continuou restrito, uma vez que esta pressupunha e existência de um sistema aberto, o que se contrapunha fatalmente com o absolutismo da lei.

Ou seja, em outras palavras, pode-se afirmar que a conjugação entre a redutibilidade positivista e os ideais da classe dominante, que ansiava apenas pela liberdade de contratar, acabaram por adiar o desenvolvimento da boa-fé objetiva, o que apenas se deu no direito germânico.

O § 242 do BGB marcou o início de uma nova época, sendo que, no pós 1ª Guerra Mundial, a doutrina e jurisprudência alemã se incumbiram de lograr concretude ao princípio da boa-fé.

No Brasil, pode-se considerar a Constituição Cidadã de 1988 como o primeiro grande passo para o reconhecimento da dualidade de conceitos em nossa legislação, haja vista que se utilizou de princípios como o da dignidade da pessoa humana e promoveu uma reinterpretação de todo o direito civil e processual civil.

Atualmente, a boa-fé é definitivamente encarada sob os seus diversos ângulos, sendo que, como princípio, atua, simultaneamente, como postulado ético inspirador da ordem jurídica e critério de aplicação das normas existentes.

Conforme o entendimento de Flávio Alves Martins (2000), tão grande é a importância deste instituto, que, embora não se possa afirmar que todas as normas jurídicas de um determinado ordenamento sejam derivadas de boa-fé, pode-se dizer que é um dos princípios que mais influencia o sistema, representando o reflexo da ética no fenômeno jurídico.


A discussão acerca da unidade ou dualidade de conceitos

A expressão "boa-fé" possui origem latina, em "fides", que, nos tempos romanos, significava honestidade, confiança, lealdade e sinceridade e sua existência decorre do primado da pessoa humana.

Uma corrente minoritária entende pela superação da distinção entre boa-fé objetiva e subjetiva, optando pela unidade de conceitos, como é o caso de Antônio Hérnandez Gil.

O conceito unitário fundar-se-ia em dois pilares: primeiramente, pelo fato de a boa-fé atuar sempre como pauta de comportamento ditada pela moral social e também porque, tanto a boa-fé subjetiva como a objetiva conteriam uma normatividade, embora em graus distintos.

Entretanto, a maioria da doutrina e da jurisprudência, hoje, admite a existência de dois prismas da boa-fé: um subjetivo e um objetivo, num entendimento de que a unificação das vertentes acabaria por elevar ainda mais o nível de abstração dos conceitos.

Nos dizeres de Martins (2000, p. 16):

"A boa-fé guarda em si uma antiga e (hoje) notória distinção entre a chamada boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. Aquela, considerada como a concepção na qual o sujeito ignora o caráter ilícito de seu ato, esta, um pouco mais exigente, considera-se como a que não protege o sujeito que opera em virtude de um erro ou de uma situação de ignorância o seu comportamento não é o mais adequado conforme a diligência socialmente exigível".

Em que pese os louváveis entendimentos contrários, todavia, no contexto atual, mormente com as disposições da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, não há que se olvidar da existência da dualidade de conceitos, com a visível superação da ótica individualista e necessidade de atuação de todas as partes pautada na confiança e na solidariedade.

Num primeiro momento, poder-se-ia dispor que a boa-fé subjetiva se refere a dados psicológicos, elementos internos, os quais conduzem o sujeito a uma ignorância do caráter ilícito de suas condutas, relaciona-se com a idéia de crença errônea, enquanto que, a boa-fé objetiva, refere-se a elementos externos, normas de conduta, que determinam a forma de agir de um indivíduo, conforme os padrões de honestidade socialmente reconhecidos.

A boa-fé objetiva seria uma regra de conduta imposta, mas não definida em lei, remetendo a princípios e normas sociais.

A subjetiva se caracterizaria como um estado e a objetiva, uma regra de conduta.

Insta salientar, todavia, que os dois significados não são antagônicos e sim complementares e devem nortear todo o comportamento humano dentro do universo jurídico.

Neste sentido, de acordo com as ponderações de Godoy (Godoy apud Rosenvald, obra cit., p. 80), podemos concluir que:

"Alguém pode perfeitamente ignorar o indevido de sua conduta, portanto obrando de boa-fé (subjetiva) e, ainda assim, ostentar comportamento despido da boa-fé objetiva, que significa um padrão de conduta leal, pressuposto da tutela da legítima expectativa daquele que se contrata. Daí dizer-se que pode alguém estar agindo de boa-fé (subjetiva), mas não segundo a boa-fé (objetiva)".


A boa-fé subjetiva

A boa-fé subjetiva é também denominada de boa-fé crença, isto porque, conforme já fora afirmado, refere-se a elementos psicológicos, internos do sujeito.

Sob este prisma, há a valoração da conduta do agente, uma vez que agiu na crença, analisando-se a convicção na pessoa que se comporta conforme o direito. O manifestante da vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui de um ato ou fato jurídico. Há a denotação de ignorância, crença errônea, ainda que escusável.

Nas palavras de Martins-Costa (2000, p. 411):

"A expressão boa-fé subjetiva denota o estado de consciência ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se "subjetiva" justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito na relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem".

Na aplicação dessa boa-fé, o juiz deverá se pronunciar acerca do estado de ciência ou de ignorância do sujeito. Utilizando-se dos ensinamentos de Menezes Cordeiro (2001, p. 515- 516), podem ser corroboradas tais afirmações:

"Perante uma boa-fé puramente fática, o juiz, na sua aplicação, terá de se pronunciar sobre o estado de ciência ou de ignorância do sujeito. Trata-se de uma necessidade delicada, como todas aquelas que impliquem juízos de culpabilidade e, que, como sempre, requer a utilização de indícios externos. Porém, no binômio boa-má fé, o juiz tem, muitas vezes, de abdicar do elemento mais seguro para a determinação da própria conduta. (...) Na boa-fé psicológica, não há que se ajuizar da conduta: trata-se, apenas de decidir do conhecimento do sujeito. (...) O juiz só pode promanar, como qualquer pessoa, juízos em termos de normalidade. Fora a hipótese de haver um conhecimento directo da má-fé do sujeito – máxime por confissão – os indícios existentes apenas permitem constatar que, nas condições por ele representadas, uma pessoa, com o perfil do agente, se encontra, numa óptica de generalidade, em situação de ciência ou ignorância."

Diz-se, que na boa-fé subjetiva, o sujeito está "em" ou "de" boa-fé.

Esta modalidade de boa-fé, por assim dizer, contrapõe-se à má-fé, remonta raízes na "bona fides" da "usucapio" romana e já se encontrava positivada em diversos dispositivos esparsos do Código Civil de 1916, mormente quando se referia a questões possessórias e regime jurídico de benfeitorias.

Apenas no que se refere à boa-fé subjetiva é que pode se utilizar do consagrado brocado de Stoco (2002, p. 37) de que "a boa-fé constitui atributo natural do ser humano, sendo a má-fé o resultado de um desvio de personalidade".


A boa-fé objetiva

Por sua vez, a boa-fé objetiva, ou simplesmente, boa-fé lealdade, relaciona-se com a honestidade, lealdade e probidade com a qual a pessoa condiciona o seu comportamento.

Trata-se, por derradeiro, de uma regra ética, um dever de guardar fidelidade à palavra dada ou ao comportamento praticado, na idéia de não fraudar ou abusar da confiança alheia. Não se opõe à má-fé nem tampouco guarda qualquer relação no fato da ciência que o sujeito possui da realidade.

Entretanto, apesar de se relacionar com o campo ético-social, a este não se restringe, inserindo-se no jurídico, devendo o juiz tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança existente entre as pessoas, sejam elas partes de um contrato, litigantes ou participantes de qualquer relação jurídica.

Caracteriza-se como um dever de agir, um modo de ser pautado pela honradez, ligada a elementos externos, normas de conduta, padrões de honestidade socialmente estabelecidos e reconhecidos.

Na verdade, trata-se de uma técnica que permite adaptar uma regra de direito ao comportamento médio em uso em uma dada sociedade num determinado momento. Parte-se de um padrão de conduta comum, do homem mediano, num determinado caso concreto, levando em consideração os aspectos e acontecimentos sociais envolvidos. Traduz o estabelecimento de verdadeiros padrões de comportamento no caso concreto. É a sinceridade que deve nortear todas as condutas humanas, negociais ou não negociais. Em outras palavras, o sujeito deve ajustar sua própria conduta ao arquétipo da conduta social reclamada pela idéia imperante.

Consoante a definição de Martins (2000, p. 73):

"A boa-fé, no sentido objetivo, é um dever das partes, dentro de uma relação jurídica, se comportar tomando por fundamento a confiança que deve existir, de maneira correta e leal; mais especificamente, caracteriza-se como retidão e honradez, dos sujeitos de direito que participam de um relação jurídica, pressupondo o fiel cumprimento do estabelecido".

E completa Negrão (2005, p. 85), que, "num primeiro passo, se refere à interpretação objetiva de qual comportamento seria o correto sem se avaliar a vontade das partes".

É uma norma cujo conteúdo não pode ser rigidamente fixado, dependendo sempre das concretas circunstâncias de determinado caso. Neste diapasão, cada ser humano deverá guardar fidelidade à palavra dada e não abusar da confiança alheia, sob pena de contrariar todo o ordenamento jurídico.

Conforme nos ensina Rosenvald (2005), esta modalidade de boa-fé encontra a sua justificação no interesse coletivo das pessoas pautarem seu agir na cooperação, garantindo a promoção do valor constitucional do solidarismo, incentivando o sentimento da justiça social e com repressão a todos a condutas que importem em desvio aos parâmetros sedimentados de honestidade e lisura.

Em nossa doutrina, o primeiro a estabelecer a distinção entre a boa-fé subjetiva e a objetiva, foi Alípio Silveira, utilizando-se de algumas características para identificar a boa-fé objetiva (Silveira, apud Martins, obra cit., p. 104):

"1) Em primeiro lugar, pressupõe que haja duas pessoas ligadas por uma relação jurídica, uma vinculação especial, que determine a confiança entre as partes; 2) Em segundo, que às partes seja exigível um comportamento de bom cidadão, diligente; 3) Em terceiro, considerando-se, ao mesmo tempo, a posição das partes envolvidas na relação jurídica, leva-se em conta que a parte deveria ter agido com lisura, como a outra parte, na medida em que tenha confiado no negócio que celebrara. (...) Na objetiva, à boa-fé não se contrapõe a má-fé ou o dolo, mas a ausência de boa-fé, que ocorrerá quando não se proceder em conformidade com os deveres de conduta, qualquer que seja o motivo da desconformidade".

Diz-se, na boa-fé objetiva, que o sujeito age "de acordo" com a boa-fé.

Esta boa-fé remonta origem na "fides bona" de Roma, ressalta o elemento confiança, e foi contemplada no novo Código Civil, com a admissão da existência dos deveres acessórios de conduta e a previsão como regra de interpretação e regra de contrato.

Por fim, não se pode deixar de se proceder a algumas observações deveras oportunas:

Há que se dispor que, apenas a boa-fé objetiva se relaciona ao princípio da boa-fé. Considerada como princípio, consoante ensina Célia Barbosa Abreu Slawinski (2002), será enquadrada dentre os princípios normativos, posto que serve de fundamento de efetivas soluções disciplinadoras.

Posteriormente, há que se considerar que um ponto muito mais tormentoso do que a admissão da unidade ou dualidade de conceito é a definição da natureza jurídica do prisma objetivo, quer como princípio, regra, standard jurídico ou cláusula geral.

E, por último, cabe salientar, ainda, que, a edição de conceitos como o da boa-fé, não repercute apenas no campo obrigacional, como muitos acreditam e que sim, atribui ao juiz um maior poder, cabendo-lhe adequar a aplicação judicial às modificações sociais, procedendo sempre a uma análise do caso concreto.

De acordo com a lição de Couto e Silva (1997; p. 42):

"O princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte. A principal função é a individualizadora em que o juiz exerce atividade similar a do pretor romano, criando o "direito do caso". O aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir um valor autônomo, não relacionado com a vontade. (...)"


A necessária classificação dos ordenamentos jurídicos em fechado e aberto

Os ordenamentos jurídicos podem ser classificados em sistemas abertos e fechados.

Em linhas gerais, pode se dizer que um ordenamento jurídico fechado é aquele em que há apenas e exclusivamente regras codificadas, a supremacia absoluta e incontestável da lei, enquanto que um ordenamento jurídico aberto é fundado em regras, mas também em princípios, sendo, portanto, flexível e mais adaptável aos anseios da vida.

Atualmente, encontra-se superada a fase das grandes codificações, sendo que, a imensa maioria dos ordenamentos jurídicos (incluindo o brasileiro) se insere dentro de um sistema aberto, no qual, conforme afirmado, é possibilitada a coexistência de normas e princípios jurídicos.

À medida em que se desponta uma divergência evidente entre o direito constituído e a realidade social em permanente mutação, de acordo com as lições de Rosenvald (2005), não pode mais ser admitida a suficiência das leis.

Bobbio (1909) nos ensina que o jurista deve retirar as regras jurídicas da dinâmica das relações entre as variadas forças sociais e não de regras mortas dos códigos, uma vez que o direito enuncia um fenômeno social. E, pondera, ainda, que o positivismo deve ser abandonado em muitos aspectos. O sistema deve ser dinâmico e, conseqüentemente, mutável, posto que mutável é a sua base de sustentação, quais sejam, as relações sociais.

Pode-se afirmar, sem exagero, que, dentro deste contexto, o pós-positivismo promoveu o encontro da norma com a ética, com a introdução aos ordenamentos de ideais de justiça e valores sociais materializados sobre a forma de princípios. Acrescente-se a isso que, no pós 2ª Guerra Mundial, as Constituições passaram a emitir decisões políticas fundamentais, determinando-se as prioridades dos ordenamentos jurídicos.

Os princípios jurídicos, ao mesmo tempo em que representam valores sociais, dão unidade ao sistema jurídico e também condicionam toda a interpretação e aplicação deste.

A boa-fé objetiva se caracteriza, em uma de suas facetas, como um princípio jurídico, mais precisamente, um princípio constitucional. Por derradeiro, para a melhor compreensão desta sua face, mister o entendimento do que são princípios e qual suas funções em nosso sistema.


A boa-fé no ordenamento jurídico aberto

Num sistema jurídico em que o Código não visa a perfeição ou a plenitude, há um direito mais flexível, em que se busca uma nova adequação à vida, operando como um instrumento para o cumprimento da função social. O sistema se encontra constantemente em construção. O Estado não é considerado como fonte única de produção jurídica, e sim, são valorizados costumes e crenças populares, as quais são retrabalhadas tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. Admitem-se fontes diversas, ainda que não sejam imediatamente legislativas.

Nas palavras de Negreiros (1998; p. 162-163):

"Sustentar a abertura do sistema jurídico significa admitir mudanças que venham de fora para dentro, ou, em termos técnicos, que provenham de fontes não imediatamente legislativas; significa, por outras palavras, admitir que o Direito, como dado cultural, não se traduz num sistema de "auto-referência absoluta"".

Completando, disse Couto e Silva (1997, p. 43):

"A concepção de sistema aberto permite que se componham valores opostos, vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura jurídica, de modo a chegar-se a uma solução que atenda a diversidade de interesses resultantes de determinada situação. (...) Somente o sistema aberto pode abranger todas as situações (...)".

Do sistema podem ser deduzidos princípios, os quais, em um momento posterior, servem de vetores do mesmo ordenamento jurídico. Há a concepção dos "princípios gerais do direito", recolhidos no código e com a função de suplementar as leis. Podem ser conciliados valores opostos. O juiz não é mero aplicador da lei, não devendo seguir um raciocínio lógico-dedutivo, próprio das ciências exatas, mas, pelo contrário, deve aplicar a lei após a realização de uma reflexão em sede do caso concreto, analisando a doutrina, a jurisprudência, os costumes, os princípios. Os doutrinadores ensinam o direito e não as leis, que podem ser eivadas de diversos vícios e incompletudes. Há maior abertura das decisões judiciais à doutrina. O legalismo não é predominante. É reduzida a importância do dogma da vontade. As regras não anseiam atingir o mais alto grau de exatidão, mas, pelo contrário, admitem ser complementadas.

De acordo com o entendimento de Martins-Costa (obra cit.), o sistema aberto possui uma espécie de "energia expansiva" capaz de exprimir ulteriores princípios e de preencher lacunas.

Ora, em razão dessas características, o raciocínio jurídico é diverso e a boa-fé pode se desenvolver. A boa-fé possui conteúdo próprio, não se encontra diluída ou subjetivada.

A Constituição e os princípios nesta embutidos condicionam a interpretação das demais normas e possibilitam o desenvolvimento de cláusulas gerais e outros princípios, como é o caso da boa-fé. A boa-fé pode ser encontrada como norma de conduta, como forma de preenchimento de lacunas na lei, como critério de interpretação de uma norma, etc.


Definição de princípio jurídico

A idéia de princípio, ainda que fora do âmbito do saber jurídico, sempre se relaciona a verdades fundamentais, alicerces, origens, causas, máximas, orientações de caráter geral, guia.

Preceitua Espíndola (1999; p. 45) que "para se analisar, com satisfatoriedade, o conceito de princípio no Direito, cumpre sejam levantadas, inicialmente as significações de princípio fora do âmbito do saber jurídico".

Seguindo esta lógica, concluiríamos que a expressão "princípio" é utilizada nas ciências em geral, como, por exemplo, na política, física, filosofia, entre outros, mas, sempre designando a estruturação de um sistema de idéias ou pensamentos por idéia mestra, tida como um verdadeiro alicerce.

Assim define Reale (1986; p. 60):

"Princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a da porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários".

E completa Rothenburg (1999; p. 51):

"Os princípios são compreendidos de acordo com uma concepção sistêmica do ordenamento jurídico. Por sua própria definição, eles reportar-se-iam a um conjunto concatenado, enquanto "mandamentos nucleares", base ou fundamento, "traves mestras jurídico-constitucionais"".

Negreiros (1998), ressalta a noção de que os princípios seriam guias, formas de orientação, normas providas de alto grau de generalidade e indeterminação, numa posição elevada de hierarquia, atuando como vetor para todo o sistema jurídico e dispõe que o próprio Superior Tribunal de Justiça já os considerou como "valores essenciais à perpetuação do Estado de Direito".

Por derradeiro, não pode subsistir a idéia o de que, em razão de sua suposta natureza transcendente, os princípios sejam considerados como mera exortações ou simples preceitos de cunho moral. Mas, pelo contrário, são portadores dos mais altos valores de uma sociedade, os quais são transformados em preceitos jurídicos e revelam as decisões políticas fundamentais.

Todavia, na ciência do direito, o termo não possui um sentido unívoco. Neste sentido, Espíndola (obra cit.; p. 49), o qual opina não ser nada benéfica tal polissemia:

"(...) Na Ciência Jurídica, tem-se usado o termo princípio ora para designar a formulação dogmática de conceitos estruturados por sobre o direito positivo, ora para designar determinado tipo de normas jurídicas e ora para estabelecer postulados teóricos, as proposições jurídicas construídas independentemente de uma ordem jurídica concreta ou de institutos de direito ou normas legais vigentes. Essa polissemia não é benéfica neste campo do saber, em que a confusão de conceitos e idéias pode levar à frustração da práxis jurídica ou à sonegação, por uma prática equívoca, de direitos ou de situações protegíveis pelo sistema jurídico posto".

Embora tais disposições não sejam deveras elucidativas, servem para concluirmos que os princípios tanto podem ser postulados éticos inspiradores da ordem jurídica, constantes nas normas (essência a que se mete a ordem jurídica como fonte do direito) ou próprios à interpretação das normas.

Conforme disciplina Martins-Costa (2000), os princípios em nosso ordenamento jurídico, hoje, podem se encontrar expressos por dicção legislativa ou inexpressos (implícitos), sendo formulados por dicção judicial (à vista da racionalidade do sistema ou do conjunto normativo aplicável a certo tempo), sempre com caráter fundante.


Princípios constitucionais. Princípios positivos do direito e princípios gerais do direito (ou princípios implícitos)

Existem doutrinadores que procedem a uma distinção entre os princípios positivos do direito e princípios gerais do direito. Os primeiros seriam aqueles que já pertencem à linguagem do direito, enquanto estes, os que seriam valorados segundo as análises descritivas da ciência jurídica, descobertos no ordenamento positivo (existem independentemente de expressão nas normas legais, porque nelas não se esgotam).

Neste contexto, é pertinente a posição de Gordilho Canãs (Gordilho apud Negreiros, 1998; p. 115) de que "o princípio ainda quando legalmente formulado, continua sendo princípio, necessitando por isso de desenvolvimento legal e de determinação casuística em sua aplicação judicial".

Para o presente estudo, interessa-nos saber que a Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que expressamente dispôs alguns princípios, também atua como fonte de inspiração de diversos outros princípios, ditos implícitos, em nosso ordenamento jurídico. Em outras palavras, a concepção de princípios, enquanto normas constitucionais, considera tantos os princípios assentados no texto da própria Magna Carta, quanto os princípios constitucionais implícitos ou deduzidos.

A maioria dos doutrinadores é unânime em reconhecer a existência dos princípios constitucionais implícitos, atribuindo-lhe caráter e força normativa.

Todavia, Espíndola (obra cit.), seguindo a linha de raciocínio de Canotilho, admite esta existência, mas questionando-a. Entende que sempre se deve partir de um ponto de vista positivo-nomativo, do texto da Constituição, para serem concluídos os princípios constitucionais expressos e implicitamente considerados, isto é, devem sempre ser consideradas possíveis extrações dos enunciados do texto. Os princípios constitucionais implícitos seriam somente aqueles reconduzíveis a uma densificação específica de princípios constitucionais positivamente plasmados (1999; p. 197):

"(...) Os princípios constitucionais devem ter uma referência positiva, reconduzindo-se ao bojo do sistema de normas postas. (...) Deve-se partir de um ponto de vista positivo-normativo, do texto da Constituição, para chegar aos princípios constitucionais, tanto os expressos quanto os implicitamente considerados. E a atitude metódica a ser levada em conta, deve ter como limite as disposições do texto constitucional; deve se levar em conta possíveis extrações dos enunciados do texto. E para isso, é claro, deve servir-se o intérprete de uma metódica constitucionalmente adequada. (...) A ressalva para esse ponto deve-se ao fato de que mesmo adotando a procura de princípio no sistema constitucional positivo, se não houver postura metódica adequada, o intérprete pode iludir-se ou iludir, no seguinte sentido: o princípio que encontrar pode não ser descoberto no texto constitucional, mas em instância valorativa fundada em subjetivismos, em posturas axiológicas, ideológicas, ou outras formas de subjetividade interpretativa, que frustrem a tendencial objetividade exigível na atividade de extração dos princípios da ordem constitucional positiva. Em outras palavras: não bastará, para o intérprete da Constituição, uma alusão de que sua postura é corolária de um ponto de vista normativo. É preciso que a metódica que a fundamente também o seja, e que os resultados alcançados a corroborem: princípios expressos ou implícitos, somente os consignados na Constituição".


Os princípios constitucionais como valores supremos e vértices norteadores de todo o ordenamento jurídico

Os princípios constitucionais são as normas a que o legislador constituinte concebeu como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui, decorrentes de verdadeiras opções políticas. São os valores mais relevantes de determinada ordem jurídica. Nas palavras de Barroso (1999; p. 147 a 149):

"O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie (...) A Constituição, como já vimos, é um sistema de normas jurídicas. Ela não é um simples agrupamento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sistema funda-se na de harmonia, de partes que convivem sem atritos. Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que "costuram" suas diferentes partes. Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos".

E pondera Zimmermann (2006):

"Podemos analogamente avaliar que os princípios fundamentais são como luzes irradiantes para a interpretação constitucional. Afinal, eles provêm o interprete com elementos axiológicos para uma razoável interpretação e, assim sendo, desenvolvem uma lógica sistêmica ao ordenamento constitucional. Indiferentemente ao grau de abstração revelada pelo ordenamento constitucional, cada princípio oferece uma capacidade de enquadramento valorativo de normas jurídicas do ordenamento constitucional, servindo a adequação de regras (ou normas jurídicas) aos casos concretos. Deste modo, a interpretação constitucional encontra-se operacionalizada por princípios que então procedem à justificação valorativa das regras do direito positivo. Por isso, os princípios constitucionais agiriam como ‘agentes catalisadores’ do ordenamento constitucional, definindo estratégias razoáveis de interpretação. Pois que cada princípio emanaria uma dose de legitimação à constituição, fazendo-se desta última muito mais do que um simples aglomerado de regras jurídicas desconexas umas com as outras. Antes de tudo, a desconsideração dos princípios constitucionais destruiria à própria integridade do corpo constitucional, em função da imperativa necessidade de reconhecimento de uma certa conexão elementar entre princípios e a própria normatividade do texto constitucional.(...) Estes princípios não se identificam apenas com um único caso concreto, mas com uma percepção mais genérica do ordenamento jurídico".

Considerando-se que toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade hierárquica da Constituição sobre os demais atos normativos, podemos concluir que são os valores supremos que garantem a validade de toda a legislação do Estado.


A Constituição como vértice axiológico do sistema jurídico aberto

Já fora afirmado em outras ocasiões, que o sistema jurídico brasileiro é aberto. Em outras palavras, isto significa dizer que é um sistema flexível, em que a lei não busca o status de completude. O ordenamento jurídico não é considerado completo, mas, como ensina Bobbio (1909), é completável. Não há a prevalência de uma determinada fonte do direito (lei) sobre todas as demais fontes, sendo admitidos os princípios, os costumes, as decisões do juiz, a eqüidade, entre outros.

Na modernidade, não pode ser admitida, de modo algum, a atuação arbitrária do Estado. Neste sentido, ainda que sejam admitidas outras fontes de direito que não somente a lei, a atuação sempre está limitada a um diploma maior. Este diploma, por óbvio, é a Constituição, tida como fundamental e que possui parâmetros e princípios que devem ser acatados por todas as demais fontes do direito. Ora, por conseguinte, tem-se que a Magna Carta se configura como verdadeiro vértice axiológico do sistema jurídico aberto.

Os princípios constitucionais seriam verdadeiros alicerces de todo o ordenamento jurídico e permitiriam uma constante evolução interpretativa. Poder-se-ia afirmar, que os princípios desempenham a função de dar fundamento material e formal aos subprincípios e às demais regras integrantes da sistemática normativa.

Segundo preceitua Sávio (2004), cabe ressaltar que nossa Carta Magna recebeu com grande iluminação a sistematização democrática, baseada em princípios que permitem uma constante evolução interpretativa, ligados pelos princípios universais de direitos humanos, processos e procedimentos democráticos constitucionalmente previstos, e pela livre expressão da vontade consciente dos cidadãos.

E assim completa Espíndola (obra cit, p. 74):

"(...) No Direito Constitucional é que a concepção de fundamento da ordem jurídica como ordem global se otimiza diante da teoria principialista do Direito. Assim, os princípios estatuídos nas Constituições – agora princípios constitucionais -, "postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento".

A Lei Maior, compreendendo a importância dos princípios em nosso ordenamento e também a sua função de vértice axiológico do sistema jurídico, ao mesmo tempo em que expressamente dispôs alguns princípios, admitiu ser fonte de inspiração de diversos outros princípios, expressamente dispondo em seu artigo 5º, § 2º, que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

Por esta razão, que se considera serem admitidos tanto os princípios positivos do direito quanto os princípios gerais do direito pela nossa Constituição. A conclusão não poderia ser diversa, sob pena de ser desconsiderada toda a explanação acerca da adoção de um sistema aberto (se fossem considerados apenas os princípios positivados, estaria se "engessando" o ordenamento jurídico, considerando-o como completo).

É pertinente a observação de Ruy Samuel Espíndola (obra cit, p. 71) que "sem dúvida, a teoria dos princípios é, antes de tudo, um capítulo deveras rico e inovador na teoria jurídica contemporânea, na era do pós-positivismo".


A aplicabilidade dos princípios constitucionais

Os princípios jurídicos são os fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica. Na verdade, não se configuram apenas como lei, mas como o próprio direito em toda a sua extensão e abrangência.

As regras jurídicas são criadas para ter vigência em situações fáticas concretas, para uma específica hipótese, com a superação das demais regras que disponham de maneira diversa, posto que o ordenamento não admite normas incompatíveis. Conseqüentemente, foram desenvolvidos critérios de resolução das possíveis antinomias do sistema (conflitos aparentes de normas), quais sejam, os métodos da especialidade, hierarquia e cronologia. Na imensa maioria das vezes, haverá a invalidade de uma das regras (excepcionalmente, tem-se como possível uma ponderação no plano da aplicação, conferindo-se valor maior a uma delas).

Todavia, tal sistemática não é, de modo algum, aplicável aos princípios.

É grande o número de princípios existentes em nosso ordenamento jurídico (sendo que, por óbvio, todos devem possuir fundamento na Lei Fundamental, sejam expressos ou implícitos, como já fora afirmado) e tais necessitam de convivência e conciliação, uma vez que são igualmente vigentes e operantes. Eventualmente, podem os princípios se encontrarem em uma situação colidente. Neste caso, não haverá a revogação ou invalidação de um deles, mas, pelo contrário, uma ponderação de valores, atribuindo-se um determinado peso a cada um deles diante do caso concreto.

Assim leciona Rosenvald (obra cit., p. 48):

"Os princípios colocam-se em estado de tensão, passível de superação no curso da aplicação do direito. O sentido dos princípios só será alcançado na ponderação com outros de igual relevância axiológica, pois operam em par, em complementariedade. Eles são prima facie, pois enquanto nas regras o comportamento já é objeto de previsão textual – elas pretendem gerar uma solução específica para o conflito – os princípios não portam consigo juízos definitivos do dever-ser, eles não determinam diretamente a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização demandará intensa atividade do aplicador do direito. O princípio não aspira a obtenção de uma solução específica, mas soma-se a outras razoes para a tomada de decisões. Assim, será na dimensão do peso que se realizará uma harmonização entre os princípios e suas diretrizes valorativas, a ponto de afastar um deles no caso concreto, solucionando-se o campo de tensão. Não se cogitará de invalidação, apenas de preponderância de determinada hipótese, visto que nada impedirá que, em outras circunstâncias, o princípio deslocado prevaleça em face da predominância de sua capacidade argumentativa".

Ora, de acordo com o método de harmonização, cada princípio específico poderá prevalecer numa dada circunstância. Na fase pós-positivista, a eficácia normativa conferida aos princípios não se assenta sobre imperativos lógicos ou critérios de validade das leis, mas de ordem valorativa.

Coloca-se à jurisprudência a tarefa de promover a real concretização dos princípios.


A boa-fé como princípio norteador de todo o ordenamento jurídico

A boa-fé objetiva pode ser vislumbrada como um valor, norteador de todo o ordenamento jurídico, isto porque, exprime-se como o princípio da confiança, da lealdade, que se relaciona com a honestidade e probidade com a qual toda pessoa deve condicionar o seu comportamento nas relações sociais.

Em seus dizeres Martins, define o princípio como modelo de conduta e releva as suas funções (obra cit., p. 21):

"O princípio da boa-fé, então, como modelo de conduta ou padrão ético que o agente deve possuir (lealdade, honestidade, etc) informa todo o ordenamento e, por conseqüência, tem presente em si uma função interpretativa das normas, e, pela mesma razão, uma função controladora de conduta e será critério apto para integrar as declarações de vontade (função integradora)".

Ora, o princípio da boa-fé traduz o estabelecimento de verdadeiros padrões de comportamento no caso concreto e atua como instrumento de uma interpretação constitucionalizada das relações interprivadas, sobre as quais incide.

Menezes Cordeiro (2001, p. 1249), dispõe que, com este princípio, é admitida "uma proteção genérica da confiança".


A Constituição de 1988 e o princípio da boa-fé

A Constituição de 1988 estabeleceu uma série de princípios, quer explícitos ou implícitos. De acordo com a opinião da maioria dos doutrinadores brasileiros, esta Carta consagrou um verdadeiro processo de abertura do nosso sistema, promovendo a modificação de valores fundamentais da ordem jurídica. Afirma Negreiros (1998), que existe um verdadeiro processo de transição em atuação, promovendo uma ressistematização jurídica. A principal modificação teria sido a substituição do indivíduo pela pessoa, sendo a dignidade da pessoa humana fundante de todo o sistema jurídico, público ou privado.

A Lei Fundamental prestigiou, ao lado do princípio da dignidade da pessoa humana, a solidariedade e a igualdade substancial, prestigiando exclusivamente o princípio da boa-fé, como corolário lógico. Diz-se que foi consagrada a "teoria dos direitos fundamentais", partindo-se de princípios efetivos e não simplesmente programáticos. Logo, a boa-fé é um princípio efetivo, o que pode tanto é verdade, que, em 1990, foi expresso no Código de Defesa de Consumidor (artigo 4º, inciso III da lei 8.078).

É pertinente a colocação de Moraes (em Prefácio da obra citada de Teresa Negreiros), de que "a consagração expressa da boa-fé objetiva explicita em termos muito significativos a virtualidade diretiva da Constituição".

A boa-fé, no estatuto consumerista, ao mesmo tempo em que se configura como a positivação de um princípio, atua também como cláusula geral, com profundo conteúdo normativo (faceta do instituto que será analisada em momento posterior).

Diante do novo texto constitucional, a boa-fé objetiva foi tida como um valor autônomo, não relacionado com a vontade e devendo ser aplicada, tanto nos ramos do direito público quanto no direito privado. A partir da promulgação da Constituição, a autonomia da vontade deve ceder, definitivamente, o seu lugar às exigências éticas da boa-fé. Todos os comportamentos sociais, regulamentados pelo direito, devem ser norteados pela lealdade e confiança. Assim como os demais princípios, a boa-fé atua como uma luz irradiante para a interpretação constitucional, premissa básica da ordem jurídica.

Ensina-nos Slawinski (2002; p. 105):

"(...) O princípio coincide com as diretrizes ditadas pelo Constituinte de 1988, no sentido de privilegiar as situações existenciais ou extrapatrimoniais, mediante a colocação da pessoa humana no centro do ordenamento jurídico (art. 1º, III, Constituição da República Federativa do Brasil), de outro, possui também um aspecto socioeconômico".

E, mencionando as lições de Aguiar Júnior, a doutrinadora conclui (obra cit; p. 105):

"Desse modo, vem sendo salientado que o art. 4º, III do Código de Defesa do Consumidor "traz à tona aspecto nem sempre considerado da boa-fé, consistente na sua vinculação com os princípios socioeconômicos que presidem o ordenamento jurídico nacional" (...)".

Assim, além do conteúdo eticizante das relações jurídicas (sejam elas obrigacionais ou não), com a exigência de um comportamento probo e a criação de diversos deveres (que serão analisados em momento oportuno), a boa-fé atua como fundamento de interpretação da ordem econômica.

Já foram deveras explanadas as diferenças entre os sistemas jurídicos aberto e fechado e também afirmado que, no que tange à boa-fé, o desenvolvimento desta é facilitado em um ordenamento aberto. Ora, neste diapasão, é fácil concluirmos que, diante da ressistematização promovida pela Constituição atual, abriu-se um campo fértil para o desenvolvimento e aprimoramento do princípio da boa-fé.


A aplicabilidade do princípio da boa-fé

A Constituição consagrou uma série de valores fundamentais, sobre a forma de princípios (expressos ou implícitos), dentre eles, o princípio da boa-fé. Sendo a Constituição o vértice norteador de nosso ordenamento jurídico, tal instituto deverá ter aplicabilidade nos ramos do direito público e do direito privado. Ao juiz caberá a interpretação do caso concreto e a promoção da sua efetividade ante o critério de ordem valorativa. Em outras palavras, o juiz, exercendo a função criadora que lhe fora atribuída pelo legislador civil de 2002, é responsável pela atuação do princípio confiança em todas as relações jurídicas. Deve sempre, contudo, observar o modo de aplicação dos princípios, qual seja, não há revogação, mas convivência, ponderação de valores em determinado caso.

O conteúdo do princípio da boa-fé, pela sua própria natureza principiológica, não pode ser aprioristicamente fixado, mas sim, depende da avaliação das circunstâncias do caso concreto.

Acrescente-se, ademais, que tudo o que foi dito em relação aos princípios em geral, pode ser aplicado ao da boa-fé, em especial, que funciona como postulado ético inspirador da ordem jurídica, pode ser constante nas normas (como acontece no Código de Defesa do Consumidor e também no novo Código Civil) e que pode ser próprio à interpretação das normas (por exemplo, as normas de direito contratual, as regras de responsabilidade pelo comportamento processual, etc).

Pode se afirmar que a Constituição, ao propiciar a ressistematização, conferiu aos princípios força normativa e aplicabilidade imediata, o que, conseqüentemente, possui implicações em todos os ramos do direito. Por derradeiro, alguns doutrinadores, dispõem que houve uma "constitucionalização" do direito civil e do direito processual civil.

Nesta constitucionalização, desempenha papel de destaque o princípio da boa-fé, ou seja, é tido como fundamento ou qualificação essencial da ordem jurídica.


Conclusão

A boa-fé objetiva, que se consubstancia em uma regra ética, um dever de guardar fidelidade à palavra dada ou ao comportamento praticado, na idéia de não fraudar ou abusar da confiança alheia, tendo como base o padrão do homem médio e independentemente de qualquer questionamento subjetivo, não é uma idéia nova, nem tampouco surgiu em nosso Código Civil de 2002 ou mesmo no Código de Defesa do Consumidor, mas, ao contrário, passou por uma lenta e gradativa evolução, desde os tempos romanos, sendo que, pelo legislador constituinte de 1988 foi reconhecida e eregida à condição de princípio, adquirindo o status de fundamento ou qualificação essencial da ordem jurídica. Isto significa dizer que atua como postulado ético inspirador de toda ordem jurídica e que, por derradeiro, sempre deverá ser aplicada no caso concreto. Nos dias atuais, não há como não se reconhecer a sua incidência em todos os temas de direito civil e direito processual civil.


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PRETEL, Mariana Pretel e. A boa-fé: conceito, evolução e caracterização como princípio constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1565, 14 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10519. Acesso em: 20 abr. 2024.