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O problema do depositário infiel persiste.

Reflexões acerca da interpretação do art. 5º, §3º, da Constituição Federal

O problema do depositário infiel persiste. Reflexões acerca da interpretação do art. 5º, §3º, da Constituição Federal

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Apesar de à época o Pacto de San José da Costa Rica ter sido aprovado com quorum de lei ordinária, é de ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico.

1. Introdução: democracia e direitos humanos

Hodiernamente, a proteção internacional dos direitos humanos estrutura-se em diversos níveis. No plano regional, destacam-se as convenções européia e interamericana, ambas robustecidas pelo amparo institucional de um tribunal. Pactos de alcance global foram o resultado de iniciativas diversas no seio da Organização das Nações Unidas, desenvolvendo o princípio da promoção dos direitos humanos incluído na respectiva Carta, já no primeiro parágrafo do preâmbulo, quando os signatários dizem "reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano" e no artigo 1.3, ao estabelecer como objetivo da Organização a cooperação para "promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião". [01]

Como resultado do movimento pelos direitos humanos, os Membros das Nações Unidas aprovaram dois importantes pactos, um sobre os direitos políticos e civis e outro sobre direitos econômicos e sociais. O Brasil, que os assinou ao tempo do regime militar, não deu seqüência à sua internalização, por sua visível incoerência com as práticas do período. Foi preciso, portanto, que a redemocratização criasse o ambiente para a formulação das garantias jurídicas necessárias à proteção dos direitos humanos. O primeiro grande passo deu-se com a aprovação da nova Constituição Federal, em 1988. Uma parte muito significativa dos direitos consagrados nos dois referidos pactos e também no Pacto de São José da Costa Rica, que estrutura a proteção no plano interamericano, foi incluída no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, especialmente no artigo 5º da Constituição de 1988.

De forma coerente com o novo ambiente democrático, a promoção com os direitos humanos receberia do Brasil um compromisso fundamental com a aprovação pelo Congresso e posterior promulgação dos mencionados pactos, em 1991. [02] A importância fundamental destes tratados internacionais está no fato de que seu vínculo se estabelece não somente entre o Estado brasileiro e seus cidadãos, elo constituído pela Constituição que cria um Estado democrático de Direito, mas também consubstancia uma obrigação assumida perante a comunidade internacional. Este último gesto perfectibiliza o compromisso do País, executando as três etapas da proteção jurídica dos direitos humanos, que segundo Bobbio, são a positivação (a Constituição), generalização (são abolidas as distinções de raça, sexo, cor e idade) e internacionalização (passo dado com a aprovação dos direitos humanos). [03] Paz, democracia e direitos humanos foram mesmo objetivos programados pelo constituinte, como se depreende da leitura dos princípios fundamentais constantes do artigo 4º. A ligação inextricável entre esses valores é lançada por Bobbio, para quem "a paz é condição sine qua non para uma proteção eficaz dos direitos humanos e ao mesmo tempo a proteção dos direitos humanos favorece a paz." [04] Embora com outro enfoque, Alexy igualmente a defende, ao sustentar que a justificação racional do sistema jurídico depende da garantia dos direitos humanos fundamentais e da institucionalização de procedimentos democráticos e conformes ao Estado de Direito. [05] É, pois, neste contexto do almejo de paz, democracia e consecução de um Estado de Direito que devem ser lidas as cláusulas constitucionais de proteção aos direitos humanos.


2. A controvérsia relativa à aplicação dos pactos internacionais

A introdução no ordenamento interno brasileiro dos tratados acima referidos, em especial o Pacto de São José da Costa Rica e o Pacto dos Direitos Políticos e Civis, levou os tribunais brasileiros ao dever de decidirem sobre o status desses acordos internacionais na estrutura constitucional brasileira, sobretudo em função da proibição neles contida de haver prisão por dívidas, única exceção feita aos casos de inadimplemento de pensão alimentícia. [06] No Brasil, pelo menos desde 1934, a prisão por dívidas, resquício da responsabilização pessoal do devedor encontrada no Direito Romano, sofre restrições impostas pela Constituição. [07] Porém, como é consabido, a Constituição Federal atual proíbe a prisão por dívidas, mas contempla duas exceções: aquela mesma relativa a alimentos e a do depositário infiel (art. 5º, LXVII). [08] O texto constitucional permitiu ao legislador infraconstitucional a instituição de pena de prisão para o depositário infiel. Assim, foram aprovados o Decreto-lei 911-69 [09] e o novo Código Civil brasileiro, em 2002. Neste último, a prisão está autorizada pelo artigo 652. [10] Dentre os casos mais comuns de devedores ameaçados pela pena de prisão estão os devedores de financiamento de bem móvel com alienação fiduciária, os devedores cujos contratos incluem a garantia pignoratícia e os depositários que recebem os bens para desempenhar obrigação legal [11] ou por motivo de força maior (depósito necessário). Em todos os casos, o procedimento é regulado pelos artigos 901 a 906 do Código de Processo Civil. [12]

A proibição contida pelos dois pactos opõe-se à permissão constitucional. Em razão da prática jurisprudencial brasileira anterior, os tratados internacionais ingressam no Brasil com força de lei ordinária. Este é o precedente do famoso Recurso Extraordinário n. 80004, caso em que estava em jogo a nulidade do aval dado em título de crédito, quando não registrado no órgão público determinado pelo Decreto Lei n. 427/69. [13] A Convenção de Genebra, em vigor no Brasil, [14] não fazia essa exigência para a validade do aval ou do título de crédito. Os ministros, após longas discussões sobre diversos aspectos teóricos e práticos do problema chegam à definição da equiparação de tratados e leis ordinárias, por uma maioria concordante quanto ao dispositivo, mas não em relação aos fundamentos da decisão. [15]

Não obstante as peculiaridades desse caso, a jurisprudência posterior alinha-se a essa tendência e prossegue na equiparação hierárquica de tratados e leis ordinárias. [16] Havendo conflito, aplica-se o critério da posterioridade: vale o tratado se for posterior à lei ordinária. O momento para se avaliar a posterioridade se entendia ser marcado pela introdução do tratado no País e não o da sua assinatura. Comparam-se os respectivos momentos de entrada em vigor no ordenamento pátrio. Foram raros os desvios desse padrão anteriormente à problemática trazida pelos pactos de direitos humanos. As exceções se restringiram a pedidos de extradição [17] e questões tributárias, por conta do artigo 98 do CTN. [18]

Os pactos foram aprovados depois da elaboração do Decreto-lei 911/69, mas antes da entrada em vigor do novo Código Civil. O critério hierárquico não resolveria a questão, tampouco o temporal dava muitas luzes. Pode-se indagar, antes, como decidiram os tribunais nesse ínterim, quando os dois pactos foram introduzidos no Brasil e não havia lei posterior que os derrogasse. As decisões dos tribunais superiores produziram-se em sentidos opostos. Enquanto no Supremo Tribunal Federal uma parte dos ministros defendia a primazia dos tratados de direitos humanos, [19] ou sua compatibilização com a Constituição, com o mesmo resultado, [20] a maioria sustentou a aplicação das leis internas. [21]

Já no Superior Tribunal de Justiça, embora com preponderância de outros fundamentos, havia uma maioria que entendia ser proibida a prisão do depositário infiel, ao menos nos contratos de alienação fiduciária, por ter havido um desvirtuamento do contrato de depósito no Decreto-lei 911/69. Entendia-se que não havia realmente depósito, tendo o legislador de 1969 se valido de uma ficção que merecia ser banida do ordenamento pátrio, pois "[p]ôs um rótulo em frasco com conteúdo diverso." [22] Por este fundamento, o STJ passou a considerar ilícita a prisão. [23] Vozes minoritárias permaneceram, sobretudo na segunda turma, mantendo as ordens de prisão. [24]

Do relato anterior, depreende-se que, entre 1992 e 2002, um comprador de um veículo automotor que adquiriu seu bem por um contrato de alienação fiduciária estava sujeito à ação de depósito, com possibilidade de receber uma ordem prisão se se tornasse inadimplente, a qual seria possivelmente anulada pelo STJ e mantida pelo STF, desde que os advogados obtivessem sucesso em alcançar essas instâncias, superando os óbices de prequestionamento e dos detalhes da instrução recursal.

A introdução do Código Civil complicou a situação, reforçando a tese majoritária no STF de possibilidade de prisão. Afinal, fosse o tratado de São José equiparado a lei ordinária, agora havia uma que lhe era posterior e derrogava-o. De outra parte, uma profícua doutrina foi se formando a latere de tais decisões, reforçando o argumento de que o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição dava status constitucional aos direitos humanos. [25]


3. A introdução da Emenda Constitucional n. 45

Jurisprudência dividida, doutrina em oposição à tese majoritária, legislação oscilante, o problema do depositário infiel requereu uma intervenção de maior monta do Parlamento nacional. Acreditou-se que a controvérsia sobre os tratados de direitos humanos poderia ser resolvida apenas com uma alteração constitucional, redefinindo a hierarquia dos tratados no País. Desta forma, em dezembro de 2004, aprovou-se a alteração de diversos dispositivos constitucionais, com importantes inovações no campo dos direitos humanos. [26] Previu-se a possibilidade de deslocamento da competência para a Justiça Federal dos crimes contra os direitos humanos (art. 109, §5º), [27] registrou-se a adesão a tribunal penais internacionais com competência para julgar o descumprimento de deveres internacionais relativos a direitos humanos, como a condenação do genocídio e dos crimes contra a humanidade (art. 5º, §4º), [28] e determinou-se que "[o]s tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais." (art. 5º, § 3º). Imediatamente, vários problemas de aplicação surgiram.

No que toca a primeira alteração, o sintomático caso do assassinato de Dorothy Stang, com alvoroçado acompanhamento da imprensa internacional, expôs as primeiras dificuldades na interpretação do dispositivo. O Procurador-Geral da República, a quem incumbe fazer o pedido, requereu o deslocamento, baseado no receio de ineficiência das instituições estaduais. Porém, o STJ, cuja competência é originária para esse procedimento, indeferiu o pedido. O acórdão definiu os requisitos para o IDC: 1) grave violação dos direitos humanos; 2) assegurar o cumprimento pelo Brasil de suas obrigações internacionais; 3) incapacidade de o Estado-Membro levar a cabo a instrução penal. O risco de descumprimento do tratado tem de decorrer de negligência, descaso ou falta de condições materiais ou pessoais para proceder ao julgamento dos réus, fatos que o tribunal julgou não estarem comprovados. [29] Avalia-se, pelos votos dos ministros, que o recurso ao incidente somente será aceito em situações muito excepcionais, em respeito e confiança às instituições estaduais. A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) ingressou com a ação de inconstitucionalidade n. 3486, ainda em trâmite, alegando, em síntese, que o dispositivo confere um poder discricionário de extrema latitude ao Procurador-Geral da República e não define o que são "graves violações aos direitos humanos", ferindo princípios como o do juiz natural e o do devido processo legal. [30]

Todavia, desde o início, a grande questão a ocupar doutrinadores e juízes foi a interpretação o parágrafo terceiro acima transcrito, que produziu no País um sistema de hierarquização dos compromissos internacionais em função da matéria. Noutros termos, pode-se dizer que o Brasil passou a ter uma hierarquia móvel, ratione materiae. Os tratados de direitos humanos podem ter status constitucional, os de matéria tributária podem ter o nível de leis complementares, em conformidade com o artigo 98 do CTN, enquanto outras matérias teriam o de lei ordinária. Estando no mesmo nível, os conflitos se resolveriam pela posterioridade, exceto quando aplicável o princípio da especialidade (aparentemente apenas em casos de extradição).

As questões postas foram as seguintes: 1) dado que uma Emenda pode ser inconstitucional, havia afronta à intangibilidade das cláusulas pétreas da Constituição?; 2) se houvesse conflito entre um tratado com força de Emenda e um dispositivo constitucional, a qual dos dois deveria ser conferida primazia?; 3)quais seriam os tratados abrangidos pelo novo status constitucional?

Outra questões "operacionais" foram postas, principalmente a de saber a quem incumbe decidir se um tratado deve ser analisado como Emenda, com o respectivo rito diferenciado, para o fim de alcançar o status superior

Se a resposta à última questão de mérito excluísse os tratados anteriores a 2004, caberia ainda indagar se um tratado poderia ser reenviado ao Congresso Nacional para passar pelos novos trâmites previstos pela EC 45. Tais temas são objeto dos próximos tópicos.


4. Os problemas de interpretação dos novos dispositivos constitucionais

A primeira das questões acima, referente às cláusulas pétreas, não carece maior detalhamento. A simples leitura do artigo 60, §4º torna evidente que o constituinte preocupou-se com a adoção de uma concepção progressiva dos direitos humanos. Eles não podem ser abolidos, criando um estado de exceção. A interdição visa evitar um retrocesso na proteção das garantias fundamentais. Somada aos artigos 4º, II, (prevalência dos direitos humanos), e 5º, §2º, [31] determina que os direitos humanos são suscetíveis de ampliação, não sendo taxativo o leque de previsões contidas no capítulo respectivo da Constituição.

Este argumento da progressividade dos direitos humanos interfere já na segunda pergunta e está incluído na justificação da opinião doutrinária que dava aos pactos primazia sobre leis ordinárias posteriores mesmo antes da introdução da EC 45, porque se a introdução de tais acordos trouxe novos direitos fundamentais, não poderia nova lei ordinária reduzir o conjunto de direitos, retirando a proteção antes concedida. Em termos mais concretos, se os pactos conferiram aos brasileiros o direito de não ser preso por dívidas decorrentes de infidelidade no depósito, o Código Civil de 2002, mesmo sendo posterior, não poderia eliminar esse direito.

A julgar pela sistemática atual, a introdução de uma Emenda tem a finalidade de alterar a Constituição, prevalecendo o texto inovador sobre o dispositivo constitucional anterior. Destarte, um tratado aprovado como Emenda poderá revogar dispositivos da Constituição. Os limites são aqueles já abordados, aplicáveis a todas as Emendas e previstos no artigo 60.

O problema relativo aos tratados anteriores a 2004 gerou maior divergência de opiniões. Por isso e por sua importância para a aplicação do Direito Internacional pelas cortes brasileiras, os próximos tópicos dedicam-se à sua análise.


5. A interpretação restritiva

No STJ, o Ministro Teori Albino Zavascki já esposou a tese da interpretação restritiva do §3º. Segundo ele, a exigência do rito qualificado é aplicável mesmo aos tratados anteriores a 2004. Como nenhum dos pactos internacionais ratificados pelo Brasil foi aprovado dessa forma, eles não têm status de emendas constitucionais. Mantêm-se ao nível das leis ordinárias, seguindo a tradicional posição do STF. Ao comentar o parágrafo objeto de análise, afirma:

O dispositivo, na verdade, ratifica o entendimento segundo o qual aquelas normas de direito internacional não possuem, em princípio, a força interna de norma constitucional. Tal força somente será adquirida quando, na sua introdução ao direito nacional, for atendida a votação qualificada referida no parágrafo transcrito. No caso, não implementada a condição, permanece incólume o entendimento de que "o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5o., LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel" (RE 293.378-MG, 1a T., Min. Moreira Alves, DJ de 10.08.2001).

Por conseguinte, a decisão admite a prisão do depositário infiel. [32]

No Tribunal de Justiça de Santa Catarina, decisão idêntica havia sido proferida alguns meses antes. Diz o voto do relator, sobre o art. 5º, §3º: [33]

Tenho que, com isso, o próprio Congresso Nacional deixou bem claro a prevalência do mandamento constitucional sobre os tratados internacionais homologados antes da emenda citada, e após a vigência desta, se, e quando, observado o mesmo rito para a aprovação de emendas à Constituição previsto no § 2°, do art. 60.

Portanto, em pleno vigor a autorização da prisão civil de depositário infiel, prevista no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal.

Finalmente, o projeto de alteração regimental de número 204/2005, ao tentar definir as questões operacionais acima ventiladas, inclui no seu bojo a mesma interpretação restritiva aqui comentada. [34] Consectário necessário da alteração constitucional, a alteração do Regimento da Câmara dos Deputados referente ao trâmite de tratados internacionais pretende explicar a quem cabe definir se a matéria é de direitos humanos e se merece trâmite e aprovação como emenda constitucional. Com efeito, ao criar o artigo 203-A no Regimento, a proposta atribui ao Presidente da República (responsável pela negociação e assinatura dos tratados) ou à iniciativa de um terço dos deputados a responsabilidade de decidir se um tratado deve ou não ser submetido ao rito previsto pelo artigo 5º, §3º. Mais adiante, oferece outra resposta importante. Se o tratado for encaminhado e recebido pela Câmara para ser analisado como emenda constitucional e não for obtido o quorum mínimo para aprovação, pode haver sua conversão em processo de análise de tratados comuns, subentendendo-se que sua aprovação redundaria na sua introdução no ordenamento com status de lei ordinária.

No que toca à opinião descrita neste tópico, a proposta a reverbera quando apresenta um §10º no mesmo artigo, dispondo que os tratados antes aprovados "poderão ser objeto do requerimento" previsto pelo Projeto. Ao mencionar os tratados anteriores, evidentemente a intenção é poder alçá-los ao status privilegiado, adequando-os à nova sistemática. Contudo, segundo a opinião de diversos doutrinadores já acolhida no STJ, tais tratados já lá estão. Se assim for, a Proposta é inconstitucional, além de representar um retrocesso em termos políticos. Veja-se, pois, a seguir, quais são os argumentos que sustentam essa outra opinião.


6. A interpretação extensiva

A justificação da constitucionalização dos tratados de direitos humanos, com automática recepção dos acordos anteriores a 2004 sobre a mesma matéria desenvolve-se a partir dos seguintes argumentos: 1) o artigo 5º, §2º, já havia erguido esses tratados ao nível constitucional; 2) esta interpretação é coerente com o princípio da progressividade dos direitos humanos, insculpido em na Constituição; 3) da mesma forma, a noção de indivisibilidade dos direitos humanos, traduzida na idéia de complementaridade, apóia a interpretação baseada no parágrafo 2º; 4) ainda que nenhuma das três assertivas anteriores seja aceita, houve a recepção do conteúdo dos tratados por parte da nova norma constitucional, independente do cumprimento de requisito de validade formal não existente à época de sua aprovação. Os três primeiros argumentos já foram lançados ao longo deste artigo. O espaço final é então dedicado ao quarto.

A base deste último argumento consiste numa analogia à recepção do Código Tributário Nacional como lei complementar. Promulgado antes da edição da Constituição de 1967, o CTN foi aprovado como Lei. A nova denominação, "lei complementar", somente foi introduzida pela então nova constituição de 1967. Por esta razão, o CTN não poderia, à luz da Constituição de 1946, ter recebido a identificação que a diferenciaria das leis ordinárias. Por decisões judiciais, a forma foi superada pelo conteúdo, porque em função de o CTN tratar de matéria reservada a lei complementar pela Constituição, considerou-se que ele tinha sido materialmente recepcionado como lei complementar, embora permanecesse, formalmente, como lei ordinária. As mudanças constitucionais posteriores não afetaram essa interpretação. [35]

Da mesma maneira como se procedeu com o CTN, a questão dos tratados aprovados antes de 2005 remete à distinção entre recepção formal e material. As garantias contidas nesses tratados, por serem complementares ao sistema constitucional de garantias, contribuindo para sua progressividade, são matéria de índole constitucional e como tal devem ser recebidas. Repare-se que são recepcionadas as garantias em si, cujo conteúdo é constitucional, e não os tratados em sua integridade.

No julgamento do HC 18.799-RS, o STJ decidiu favoravelmente à tese aqui exposta. O acórdão afirmou inclusive que o artigo 5º, §3º, "tem força retroativa": [36]

A tramitação de lei ordinária conferida à aprovação da mencionada Convenção, por meio do Decreto n. 678/92 não constituirá óbice formal de relevância superior ao conteúdo material do novo direito aclamado, não impedindo a sua retroatividade, por se tratar de acordo internacional pertinente a direitos humanos. Afasta-se, portanto, a obrigatoriedade de quatro votações, duas na Câmara dos Deputados, duas no Senado Federal, com exigência da maioria de dois terços para a sua aprovação (art. 60, §2º).

A justificativa concentra-se, como visto, na recepção do conteúdo do Pacto por parte da Constituição modificada em seu artigo 5º. Finalmente, merece transcrição um derradeiro trecho do mesmo acórdão:

Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido aprovado com quorum de lei ordinária, é de ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De acordo com o citado §3º, a Convenção continua em vigor, desta feita com força de emenda constitucional. A regra emanada pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do país como normas de hierarquia constitucional.

Quanto ao PRC 204/2005, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania já atentou para o problema aqui levantado. Seu parecer esclarece que não se pode reabrir a discussão acerca de "tratados de direitos humanos já ratificados, incorporados e aplicados no Brasil", criando temerária insegurança jurídica. O fundamento é a interpretação sistemática dos parágrafos 2º e 3º do artigo 5º, aliado à tese da recepção material aqui ventilada. Opina pela aprovação do Projeto com a supressão do §10º. [37]

Em conclusão, a melhor interpretação ao dispositivo em questão é aquela que dá ao dispositivo constitucional a maior abrangência, em consonância com os princípios de progressividade e indivisibilidade dos direitos humanos, com os princípios constitucionais de promoção dos mesmos direitos, recebendo com status constitucional todos os tratados de direitos humanos já ratificados pelo Brasil, com a conformação do maior leque de direitos e garantias possível a partir dos compromissos já assumidos pelo País. Para o persistente problema do depositário infiel, o novo dispositivo corrobora a tese da prevalência do dispositivo contido nos pactos internacionais, proibindo sua prisão.


Referências:

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_____. Recurso Especial 811.693 - SP. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Primeira Turma, julgamento de 8 de abril de 2006. DJ de 08.06.2006. p. 145.

_____. Incidente de Deslocamento de Competência n. 1/PA. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. Terceira Seção. Julgamento de 08.06.2005. DJ de 10.10.2005. p. 217.

_____. Habeas Corpus 18.799-RS. Rel. Min. José Delgado. Julgamento de 09 de maio de 2006. Primeira Turma. DJ de 08.06.2006. p. 120.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 80.004-SE. Rel. Min. Xavier de Albuquerque. Diário da Justiça, 29.12.1977.

_____. Habeas Corpus n. 58.727-DF. Relator Min. SOARES MUNOZ. Tribunal Pleno. Diário da Justiça, 03.04.1981.

_____. Extradição n. 662-PU. Relator Min. Celso de Mello. Diário da Justiça, 30.05.1997.

_____. Habeas Corpus n. 74.383-8-MG. Segunda Turma. Relator para o acórdão Min. Marco Aurélio de Mello. Diário da Justiça, 27.06.1997.

_____. Carta Rogatória n. 8279. Relator. Min. Celso de Mello. Diário da Justiça, 14.05.1998.

_____. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1480-DF. Diário da Justiça, 18.05.2001.

_____. Habeas Corpus n. 72.131-RJ. Relator para o acórdão Min. Moreira Alves. Diário da Justiça, 01.08.2003.

_____. Ação direta de inconstitucionalidade n. 3486. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Petição inicial da AMB. Disponível em www.stf.gov.br. Acesso em 17.07.2006.

TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de Direito Tributário. Florianópolis: Momento Atual.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Habeas corpus n. 2005.033182-1, de Balneário Camboriú. Rel. Juiz Paulo Roberto Camargo Costa. Decisão de 23 de fevereiro de 2006. Disponível em www.tj.sc.gov.br. Acesso em 14 de julho de 2006.


NOTAS

01 CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. Promulgada no Brasil pelo Decreto 19.841, de 22 de outubro de 1945. In: RANGEL, Vicente Marotta. Direito e Relações Internacionais. 7. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

02 BRASIL, República Federativa do. Decreto Legislativo n. 226 de 12 de dezembro de 1991. Aprova os textos do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados, junto com o protocolo facultativo relativo a esse último pacto, na XXI Sessão (1966) da Assembléia-Geral das Nações Unidas. Diário Oficial da União, 13.12.1991. p. 28838.

03 BOBBIO, Norberto. Il terzo assente. Torino: Sonda, 1989. p. 113.

04 No original: "La pace è la condizione sine qua non per una efficace protezione dei diritti dell’uomo e nello stesso tempo la protezione dei diritti dell’uomo favorisce la pace." Ob. cit., p. 96.

05 ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos humanos. Trad. Luis Villar Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1995. p. 53.

06 "Ninguém será detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar." BRASIL, República Federativa do. Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União, 9.11.1992. Também o do Pacto dos Direitos Políticos e Civis, traz disposição semelhante: "Artigo 11. Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual." Doc. cit.

07 A redação do dispositivo na Constituição de 1934, artigo 113, era a seguinte: "30) Não haverá prisão por dívidas, multas ou custas." BRASIL, República Federativa do. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. 06.07.1934. A redação mais próxima da atual é de 1946 (artigo 141) "§ 32 - Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel e o inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei." BRASIL, República Federativa do. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. 18.09.1946. Esta redação foi mantida no artigo 150, §17 da Constituição de 1967 e no artigo 153, §17 da Constituição de 1969. BRASIL, República Federativa do. Constituição do Brasil. 24.01.1967; BRASIL, República Federativa do. Constituição da República Federativa do Brasil. 17.10.1969.

08 "LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel". BRASIL, República Federativa do. Constituição da República Federativa do Brasil. 05.10.1988.

09 BRASIL, República Federativa do. Decreto-lei n. 911, de 1º de outubro de 1969. Altera a redação do artigo 66 da Lei n. 4728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sobre alienação fiduciária e dá outras providências. Diário Oficial da União, 03.10.1969.

10 "Artigo 652. Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e ressarcir os prejuízos." BRASIL, República Federativa do. Lei n. 10406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, 11.01.2002.

11 Exemplo de depósito necessário decorrente de obrigação legal é o previsto no artigo 1º da Lei 8.866, de 1994, que determina ser depositário aquele que a legislação tributária ou previdenciária atribua a obrigação de recolher ou reter valores de terceiros que devem ser repassados aos cofres públicos. BRASIL, República Federativa do. Lei n. 8.866, de 11 de abril de 1994. Dispõe sobre o depositário infiel de valores pertencentes à Fazenda Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União, 13.04.1994.

12 BRASIL, República Federativa do. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17.01.1973.

13 BRASIL, República Federativa do. Decreto-lei nº 427, de 22 de janeiro de 1969. Dispõe sôbre a tributação do impôsto de renda na fonte, registro de letras de câmbio e notas promissórias e dá outras providências. DOU, 29.01.1969. p. 1001. Dispunha o artigo 2º do DL: "Art 2º No prazo de 60 (sessenta) dias, da data da publicação dêste Decreto-lei, deverão ser registradas na repartição competente, definido pelo Ministério da Fazenda, tôdas as notas promissórias e letras de câmbio emitidas até a publicação dêste Decreto-lei, sob pena de nulidade dêsses títulos de crédito."

14 BRASIL, República Federativa do. Decreto n. 57663 de 24 de janeiro de 1966. Promulga as convenções para adoção de uma lei uniforme em matéria de letras de câmbio e notas promissórias. Diário Oficial da União, 02.03.1966. p. 2292.

15 A ementa, contudo, assinala a orientação que seria seguida: "Embora a Convenção de Genebra que previu uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias tenha aplicabilidade no Direito Interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do País". STF. Recurso Extraordinário n. 80.004-SE. Rel. Min. Xavier de Albuquerque. Diário da Justiça, 29.12.1977. p. 9433. Doc. cit. Uma abordagem crítica desse acórdão pode ser encontrada em MAGALHÃES, José Carlos de. O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional: uma análise crítica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 57-68. A posição anterior chegou a adotar orientações diametralmente opostas, como relata FRAGA, Mirtô. O conflito entre o tratado e o Direito Interno. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 99-114.

16 É exemplar a decisão da ADIN 1480-DF: "Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa." STF. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1480-DF. Diário da Justiça, 18.05.2001. p. 429. No mesmo sentido: STF. Habeas Corpus n. 72.131-RJ. Relator para o acórdão Min. Moreira Alves. Diário da Justiça, 01.08.2003, fls. 8664 e 8739; STF. Extradição n. 662-PU. Relator Min. Celso de Mello. Diário da Justiça, 30.05.1997.

17 STF. Habeas Corpus n. 58.727-DF. Relator Min. SOARES MUNOZ. Tribunal Pleno. DJ, 03.04.1981. p. 2854. Da ementa, destaca-se o seguinte trecho: "Extradição. Prazo da prisão. Conflito entre a lei e o tratado. Na colisão entre a lei e o tratado, prevalece este, porque contém normas específicas."

18 "Artigo 98. Os tratados e convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhe sobrevenha." A súmula 71 do STJ ("O bacalhau importado de país signatário do GATT é isento do ICM") continua em vigor, de acordo com julgados recentes da Primeira Seção deste Tribunal. Neste sentido: STJ. Agravo Regimental no Recurso Especial 109210-RJ. Relatora Min. Laurita Vaz. Segunda Turma. DJ, 14.04.2003. p. 207. É preciso registrar que entre os tributaristas há quem sustente a inconstitucionalidade deste artigo, quando este pretende dar aos tratados a prevalência sobre legislação posterior que lhes seja contrária. Neste sentido, CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 13. ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 163.

19 STF. Habeas Corpus n. 74.383-8-MG. Segunda Turma. Relator para o acórdão Min. Marco Aurélio de Mello. Diário da Justiça, 27.06.1997; vide também o voto do Ministro Celso Mello no HC 72.131-RJ (doc. cit.).

20 HC 74.383-MG, voto do Min. Rezek, fls. 647-649. Neste sentido o voto do Min. Eduardo Ribeiro no seguinte julgado: STJ. Corte Especial. Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 149.518-GO. Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar. 05.05.1999. Diário da Justiça de 28.02.2000. p. 2.

21 A decisão do pleno fundamentou-se na utilidade do instituto da prisão civil, que repercute na ampliação da concessão de créditos, sendo, portanto benéfico para o movimento da economia do País. Cf. os votos dos Ministros Moreira Alves no HC 72.131-RJ, fls. 8683-8684, Ilmar Galvão no HC 74.383-MG, fls. 705, e Néri da Silveira, idem, fls. 640.

22 EDRESP n. 149.518-GO. Doc. cit., p. 3.

23 Neste sentido, STJ. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 489278, DF. Corte Especial. Relator Min. Hamilton Carvalhido, de 27.11.2003. DJ de 22.03.2004. p. 187. Cf. precedentes recentes da Terceira e da Quarta Turmas do STJ, confirmando a ilicitude da prisão do devedor de contrato de alienação fiduciária: Recurso Especial n. 480704-MT. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 23.06.2002. p. 382; Habeas Corpus n. 29284-SP. Relator Min. César Asfor Rocha, DJ 02.08.2004. p. 394; Recurso em Habeas Corpus n. 16235-SP. Relatora Min. Nancy Andrighi, DJ 30.08.2004. p. 279; Recurso em Habeas Corpus n. 35970-PB. Relatora Min. Nancy Andrighi, DJ 30.08.2004. p. 280; Habeas Corpus n. 17638-SP. Relator Min. Castro Filho, DJ de 29.10.2001. p. 199. O precedente anterior, acompanhando o julgamento do Pleno do STF no HC 72.131-RJ, é o RMS 3623 (DJ de 29.10.1996).

24 STJ. Recurso Especial n. 276817-SP. Relator Min. Franciulli Netto. DJ de 07.06.2004. p. 179; STJ. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 14691-SC. Relator Min. Franciulli Netto. DJ de 24.11.2003. p. 234.

25 Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 6. ed. São Paulo: Max Limonad, 2004; MAZZUOLI, Valério. Direitos Humanos & Relações Internacionais. Campinas: Agá Juris, 2000.

26 BRASIL, República Federativa do. Emenda Constitucional n. 45. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103-B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Promulgada em 08.12.2004. D. O. U. de 08.12.2004. [Doravante EC 45].

27 O dispositivo mantém a tendência da Lei n. 10.446/2002 que autoriza a Polícia Federal a investigar crimes de direitos humanos aos quais o Brasil se comprometeu por tratados internacionais. BRASIL, República Federativa do. Lei 10.446, de 8 de maio de 2002. Dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para os fins do disposto no inciso I do § 1º do art. 144 da Constituição. Diário Oficial da União, 09 de maio de 2002. p. 2.

28 Cf. art. 5º, 1 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que atribui àquela Corte a competência para julgar crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. BRASIL, República Federativa do. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. D. O. U. de 26.09.2002. p. 3; cf. tb. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 167-186.

29 STJ. Incidente de Deslocamento de Competência n. 1/PA. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. Terceira Seção. Julgamento de 08.06.2005. DJ de 10.10.2005. p. 217. Sobre o tema, vide ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Disponível em www.jusnavigandi.com.br. Acesso em 17.07.2006.

30 STF. Ação direta de inconstitucionalidade n. 3486. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Petição inicial da AMB. Disponível em www.stf.gov.br. Acesso em 17.07.2006.

31 O texto do dispositivo é o seguinte: "§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." Doc. cit.

32 STJ. Recurso Especial 811.693 - SP. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Primeira Turma, julgamento de 8 de abril de 2006. DJ de 08.06.2006. p. 145.

33 TJSC. Habeas corpus n. 2005.033182-1, de Balneário Camboriú. Rel. Juiz Paulo Roberto Camargo Costa. Decisão de 23 de fevereiro de 2006. Disponível em www.tj.sc.gov.br. Acesso em 14 de julho de 2006.

34 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Resolução n. 204/2005. Autor: Dep. Fernando Coruja. 3 de março de 2005. Disponível em www.camara.gov.br. Acesso em 29 de junho de 2006.

35 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 10 ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1998; TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de Direito Tributário. Florianópolis: Momento Atual. p. 86-88. Com a superveniência de uma nova constituição, o direito pretérito é recepcionado pelo novo texto constitucional o qual, por sua vez, passa a ser o seu novo fundamento de validade (Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 1996). O fenômeno da recepção normativa exige que o conteúdo dos comandos da norma pretérita seja compatível com a nova constituição, enquanto que o procedimento e os demais aspectos formais relativos ao processo legislativo obedecem às prescrições vigentes à época de sua edição, segundo o princípio tempus regis actum (Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: UnB, 1999.).

36 STJ. Habeas Corpus 18.799-RS. Rel. Min. José Delgado. Julgamento de 09 de maio de 2006. Primeira Turma. DJ de 08.06.2006. p. 120.

37 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Parecer do relator. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Dep. Iriny Lopes. 29 de junho de 2006. Disponível em www.camara.gov.br. Acesso em 18.07.2006. Aparentemente, o parecer foi antes publicado sem atentar para o problema aqui levantado, sofrendo emenda e sendo republicado. A relatora apóia-se sobretudo nos escritos de Celso Lafer, cuja opinião é também aqui endossada. LAFER, Celso. A internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais. São Paulo: Manole, 2005.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUPI, André Lipp Pinto Basto. O problema do depositário infiel persiste. Reflexões acerca da interpretação do art. 5º, §3º, da Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1570, 19 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10530. Acesso em: 18 abr. 2024.