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Demissão de servidor público por prática de ato de improbidade administrativa sob a ótica da jurisprudência dos tribunais superiores e da doutrina

Demissão de servidor público por prática de ato de improbidade administrativa sob a ótica da jurisprudência dos tribunais superiores e da doutrina

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Não se chancela o entendimento de que a aplicação das penalidades da Lei 8.429/1992 não caberia à Administração Pública, mas apenas ao Judiciário.

A questão da aplicabilidade de pena expulsória pela Administração Pública a servidor incurso em ato de improbidade é tema dos mais importantes do moderno direito administrativo brasileiro.

A Lei 8.112/1990, em seu artigo 132, inciso IV, preceitua que será punida com demissão a conduta praticada por servidor público, se tipificada como improbidade administrativa.

Ora, os atos atentatórios da moralidade na Administração violam os fins superiores de atuação no serviço público e rendem ensejo, em nome do interesse coletivo, à punição dos servidores infratores pela autoridade administrativa competente, ao término de processo administrativo disciplinar em que respeitadas as garantias constitucionais e legais empenhadas aos acusados.

É poder-dever do administrador público reprimir os desvios de conduta dos servidores e aplicar-lhes as penalidades previstas em lei quando os atos transgressionais sejam tipificados no estatuto disciplinar do funcionalismo, como é o caso da improbidade administrativa, falta gravíssima, passível de demissão.

É direito da Administração Pública – e sobretudo seu dever – expulsar de seus quadros o servidor que incorre em improbidade do exercício funcional, comprometendo a dignidade, a moralidade, o bom procedimento, a lealdade e os valores superiores em cujo nome deveria o agente administrativo se pautar.

Por conseguinte, é legal a demissão de servidor incurso em transgressão que se classifique como improbidade administrativa, na fase decisória de processo administrativo disciplinar, no qual tenham sido provados os fatos constitutivos da falta funcional de extrema gravidade, após ter sido franqueado pleno direito de defesa ao funcionário acusado.

A Administração não está obrigada a manter em seus quadros aquele que comprometeu a retidão de conduta, comprovadamente, no desempenho funcional, fugindo ao cumprimento de seus deveres e proibições como agente público, consoante previsão das regras legais e constitucionais de atuação no ofício administrativo.

Sendo infração disciplinar, é inegável o direito da Administração Pública de exercer seu poder sancionador sobre o agente faltoso, demitindo-o, antes mesmo da abertura ou desfecho de eventual ação judicial de improbidade pelo Ministério Público ou pela própria pessoa jurídica de direito público legitimada.

Nesse diapasão, a doutrina pátria e a jurisprudência de nossos tribunais entendem, de forma dominante, que a Administração Pública pode, sim, demitir servidor, ao considerar que ele tenha cometido ato de improbidade administrativa (falta disciplinar passível de demissão, nos termos do art. 132, IV, da L. 8.112/90), independentemente de prévia instauração ou julgamento de processo judicial pelo mesmo fato.

Nesse diapasão, sedimentou o Superior Tribunal de Justiça em precedentes uniformes (destaques não originais):

Conforme já decidido pela Eg. Terceira Seção, a independência entre as instâncias penal, civil e administrativa, consagrada na doutrina e na jurisprudência, permite à Administração impor punição disciplinar ao servidor faltoso à revelia de anterior julgamento no âmbito criminal, ou em sede de ação civil por improbidade, mesmo que a conduta imputada configure crime em tese. Precedentes do STJ e do STF (MS. 7.834-DF). Comprovada a improbidade administrativa do servidor, em escorreito processo administrativo disciplinar, desnecessário o aguardo de eventual sentença condenatória penal. Inteligência dos arts. 125 e 126 da Lei 8.112/90. Ademais, a sentença penal somente produz efeitos na seara administrativa, caso o provimento reconheça a não ocorrência do fato ou a negativa da autoria. [01]

A sanção administrativa é aplicada para salvaguardar os interesses exclusivamente funcionais da Administração Pública, enquanto a sanção criminal destina-se à proteção da coletividade. Consoante entendimento desta Corte, a independência entre as instâncias penal, civil e administrativa, consagrada na doutrina e na jurisprudência, permite à Administração impor punição disciplinar ao servidor faltoso à revelia de anterior julgamento no âmbito criminal, ou em sede de ação civil, mesmo que a conduta imputada configure crime em tese. [02]

Doutrina e jurisprudência são unânimes quanto à independência das esferas penal e administrativa; a punição disciplinar não depende de processo civil ou criminal a que se sujeite o servidor pela mesma falta, nem obriga a Administração Pública a aguardar o desfecho dos mesmos".(MS 7.138/DF, Relator Ministro Edson Vidigal, in DJ 19/3/2001). [03]

A Administração Pública, ao aplicar reprimenda de cassação de aposentadoria, com fulcro no inciso IV do art. 132 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis ("improbidade administrativa"), exerce poder disciplinar, próprio seu, dentro do âmbito estritamente administrativo, não excedendo sua competência, nem usurpando a do Poder Judiciário, a quem cabe, na esfera civil, o processamento e julgamento do agente público, pela prática de atos de improbidade administrativa, na forma da Lei n. 8.429/92. [04]

No Supremo Tribunal Federal, em julgamento recente, a própria 1ª Turma endossou a possibilidade de a Administração Pública demitir servidor que incorreu em ato de improbidade administrativa, independentemente da propositura de ação judicial, como transcrito a seguir (destaques não originais):

RECURSO - MINISTÉRIO PÚBLICO - FISCAL DA LEI. A interposição do recurso pelo Ministério Público, após haver emitido, na origem, parecer que não veio a ser acolhido, pressupõe a configuração de ilegalidade. PROCESSO ADMINISTRATIVO - DIREITO DE DEFESA - OBSERVÂNCIA. Instaurado o processo administrativo e viabilizado o exercício do direito de defesa, com acompanhamento inclusive por profissional da advocacia, descabe cogitar de transgressão do devido processo legal. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA E PENAL. As esferas são independentes, somente repercutindo na primeira o pronunciamento formalizado no processo-crime quando declarada a inexistência do fato ou da autoria. PROCESSO ADMINISTRATIVO - IMPROBIDADE - PENA. Apurada a improbidade administrativa, fica o servidor sujeito à pena de demissão - artigo 132, inciso IV, da Lei nº 8.112/90. Decisão. A Turma negou provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança, nos termos do voto do Relator. Unânime. 1ª Turma, 04.10.2005. [05]

Ainda, a colenda 1ª Turma do excelso Supremo Tribunal Federal encampou o mesmo entendimento, consoante acórdão assim ementado (destaques não originais):

EMENTA: ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO POR ATO DE IMPROBIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PENA MENOS SEVERA. O órgão do Ministério Público, que oficiou na instância de origem como custos legis (art. 10 da Lei nº 1.533/51), tem legitimidade para recorrer da decisão proferida em mandado de segurança. Embora o Judiciário não possa substituir-se à Administração na punição do servidor, pode determinar a esta, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, a aplicação de pena menos severa, compatível com a falta cometida e a previsão legal. Este, porém, não é o caso dos autos, em que a autoridade competente, baseada no relatório do processo disciplinar, concluiu pela prática de ato de improbidade e, em conseqüência, aplicou ao seu autor a pena de demissão, na forma dos artigos 132, inciso IV, da Lei nº 8.112/90, e 11, inciso VI, da Lei nº 8.429/92. Conclusão diversa demandaria exame e reavaliação de todas as provas integrantes do feito administrativo, procedimento incomportável na via estreita do writ, conforme assentou o acórdão recorrido. Recurso ordinário a que se nega provimento. Decisão: A Turma negou provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança. Unânime. 1ª Turma, 26.10.2004. [06]

O próprio Pleno do Supremo Tribunal Federal assentou em vários precedentes:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO: POLICIAL: DEMISSÃO. ILÍCITO ADMINISTRATIVO e ILÍCITO PENAL. INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA: AUTONOMIA. I. - Servidor policial demitido por se valer do cargo para obter proveito pessoal: recebimento de propina. Improbidade administrativa. O ato de demissão, após procedimento administrativo regular, não depende da conclusão da ação penal instaurada contra o servidor por crime contra a administração pública, tendo em vista a autonomia das instâncias. II. - Precedentes do Supremo Tribunal Federal: MS 21.294- DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence; MS 21.293-DF, Relator Ministro Octavio Gallotti; MMSS 21.545-SP, 21.113-SP e 21.321-DF, Relator Ministro Moreira Alves; MMSS 21.294-DF e 22.477-AL, Relator Ministro Carlos Velloso. III. (...)" (MS 23401/DF, Relator o  Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, Julgamento em  18/03/2002, DJ de 12-04-2002, p. 55)

A ausência de decisão judicial com trânsito em julgado não torna nulo o ato demissório aplicado com base em processo administrativo em que foi assegurada ampla defesa, pois a aplicação da pena disciplinar ou administrativa independe da conclusão dos processos civil e penal, eventualmente instaurados em razão dos mesmos fatos. Interpretação dos artigos 125 da Lei nº 8.112/90 e 20 da Lei nº 8.429/92 em face do artigo 41, § 1º, da Constituição. Precedentes. 3. Mandado de segurança conhecido, mas indeferido, ressalvando-se ao impetrante as vias ordinárias." (MS 22534/PR, Relator o Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, Julgamento em 19/05/1999, DJ de 10-09-1999, p. 03)

Mandado de segurança. - É tranqüila a jurisprudência desta Corte no sentido da independência das instâncias administrativa, civil e penal, independência essa que não fere a presunção de inocência, nem os artigos 126 da Lei 8.112/90 e 20 da Lei 8.429/92. Precedentes do S.T.F.. - Inexistência do alegado cerceamento de defesa. - Improcedência da alegação de que a sanção imposta ao impetrante se deu pelo descumprimento de deveres que não são definidos por qualquer norma legal ou infralegal. Mandado de segurança indeferido. (MS-AgR 22899/SP, Relator o Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, Julgamento em  02/04/2003, DJ de 16-05-2003, p. 92)

A doutrina segue a mesma linha da orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. José Armando da Costa enuncia:

A improbidade administrativa perpetrada pelos agentes públicos constitui delito de natureza disciplinar, o qual, depois de ser devidamente apurado em processo administrativo disciplinar idôneo, configura justo título para lastrear a inflição da pena capital de demissão ao servidor considerado e julgado culpado. [07]

Juarez Freitas assenta a possibilidade de o servidor público ser demitido por prática de ato de improbidade administrativa mediante o devido processo administrativo disciplinar, antes do eventual ajuizamento ou do trânsito em julgado de ação deduzida com fulcro na Lei 8.429/92. [08]

Marcelo Figueiredo observa que o disposto no art. 20, da Lei 8.429/92, o qual estipula que a perda da função pública somente ocorrerá com o trânsito em julgado da sentença condenatória proferida na ação de improbidade, incide somente no que concerne à esfera judicial da predita ação por improbidade, o que não inibe a Administração Pública de exercitar seu poder disciplinar e punir o servidor, incurso em conduta amoldada aos ditames da Lei nº 8.429/92, com a penalidade administrativa de demissão: "Existem vários veículos para a perda do cargo; o judicial não é o único. Assim, v.g., há demissão por improbidade nas hipóteses estatutárias (Lei 8.112, de 1990)". [09] O doutrinador explica que a disposição do art. 20, da L. 8.429/92, é originária da velha regra de direito penal determinante da perda do cargo público como efeito acessório da sentença condenatória proferida pelo juízo criminal.

Marcelo Figueiredo ressalta que o agente público pode sofrer punições nas esferas civil, penal e administrativa também por improbidade, de forma que a aplicação da sanção de perda do cargo público por sentença, prolatada nos autos do processo judicial fundado na Lei 8.429/92, pode restar prejudicada se, antes disso, a Administração Pública tiver demitido o réu mediante processo administrativo disciplinar. [10]

Wallace Paiva Martins Júnior rememora que a Lei 8.429/92 não revogou a Lei 8.112/90, nem os estatutos municipais e estaduais do funcionalismo público, quanto ao regime disciplinar pertinente, inclusive no que respeita à reprimenda por improbidade, visto que as instâncias judicial e administrativa são independentes e distintas no aspecto da consentânea repressão às condutas ilegais cometidas por agentes públicos: "As hipóteses de atos de improbidade administrativa não excluem a conceituação legal do fato delineada nos estatutos do funcionalismo federal, estadual e municipal". O autor sublinha que a previsão da imposição judicial das sanções por improbidade administrativa, nos autos da ação própria, não significa que a Lei 8.429/92 tenha instaurado uma instância única para julgar os atos ímprobos e nem que se tenha retirado a competência administrativa, no mesmo particular, derivada do poder disciplinar. [11]

A Procuradoria-Geral do Distrito Federal proferiu entendimento no mesmo sentido:

A jurisprudência também permite que a Administração Pública demita o servidor, por considerar que ele tenha cometido ato de improbidade administrativa (falta disciplinar passível de demissão, nos termos do art. 132, IV, da L. 8.112/90), independentemente de prévia instauração ou julgamento de processo judicial pelo mesmo fato. [12]

Cumpre, pois, elogiar o melhor juízo perfilhado pela mesma 1ª Turma do colendo Supremo Tribunal Federal (no precedente do RMS 24901/DF, relator o Ministro Carlos Britto, DJ de 11-02-2005, p.13), harmônico com a corrente tradicional no direito brasileiro, em cujos termos se considerou legítima a demissão por ato de improbidade administrativa, enquadrado no artigo 132, IV, da Lei nº 8.112/90, após tipificação da conduta cometida pelo servidor no artigo 11, VI, da Lei nº 8.429/92.

Esse entendimento é corroborado pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, que denegou mandado de segurança impetrado por servidor público demitido em face do enquadramento de sua conduta com improbidade administrativa, por incursão no tipo previsto no art. 11, V, da Lei nº 8.429/92, em combinação com o art. 132, IV, da Lei nº 8.112/90, consoante trecho da ementa do acórdão, a seguir transcrita (destaques não originais):

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRISÃO EM FLAGRANTE DE ADVOGADO DA UNIÃO QUE PRETENSAMENTE SE FEZ PASSAR POR OUTRA PESSOA EM CONCURSO PÚBLICO. PLEITO DE TRANCAMENTO. TESE DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DO PROCESSO POR ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. PREVISIBILIDADE DA CONDUTA EM TESE NA LEGISLAÇÃO DISCIPLINAR APLICÁVEL. NULIDADE DA PORTARIA. NÃO-OCORRÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO EVIDENCIADO.

1. Não se vislumbra a atipicidade da conduta que, em tese, pode perfeitamente assumir adequação típica, amoldando-se ao disposto nos arts. 116, inciso IX e 132, inciso IV, ambos da Lei n.º 8.112/90, este último c.c. o art. 11, inciso V, da Lei n.º 8.429/92. [13]

Como bem explicitado pelos julgados dos Tribunais Superiores, a Administração Pública, quando exercita seu direito de punir a infração administrativa cometida, não usurpa a competência judiciária para impor as sanções previstas na Lei nº 8.429/92, porquanto, fora a perda do cargo público, que pode decorrer, sim, de processo administrativo disciplinar em que seja assegurada a ampla defesa ao acusado (art. 41, §1º, II, Constituição Federal de 1988, na redação determinada pela Emenda nº 19/98), inclusive em virtude da prática de ato de improbidade, classificado como transgressão funcional no Estatuto dos Servidores Públicos da União (art. 132, IV), as demais penas estatuídas na Lei de Improbidade Administrativa somente poderão ser aplicadas pelo Poder Judiciário.

Além disso, o direito brasileiro consagrou a independência das instâncias administrativa e criminal, de sorte que o agente público que comete ilícito-penal contra a Administração pode responder a processo criminal, em cujo desfecho lhe pode ser imposta pena privativa de liberdade, somada com pena acessória de perda do cargo público, ao mesmo tempo em que contra ele pode ser instaurado processo administrativo disciplinar, o qual pode findar com a possível demissão.

Vê-se, pois, que a sanção da perda do cargo público tanto pode resultar de uma pena imposta pelo Poder Judiciário, no julgamento de processo criminal pelo mesmo fato, como pela Administração Pública, ao decidir feito administrativo sancionador (demissão). A diferença é que, no primeiro caso, o Estado reprime um ilícito penal, enquanto, no segundo, um ilícito administrativo. Nem por isso os Tribunais Pátrios ou a doutrina deixam de abrigar, de forma pacificada, a independência das instâncias administrativa e criminal, de modo que a autoridade administrativa pode classificar uma conduta como crime contra a Administração e punir essa falta de natureza também disciplinar (art. 132, I, L. 8.112/90), independentemente de prévia condenação em processo-crime pelo mesmo quadro fático.

Sob essa ótica, tivemos ocasião de enfrentar o tema em artigo de nossa autoria, publicado nos sites na Associação dos Procuradores do Distrito Federal (www.apdf.org.br/artigos) e no Jus Navegandi (http://jus.com.br/artigos/402): "Contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punições de servidores públicos: uma paralela reflexão crítica sobre os conceitos de tipicidade e discricionariedade das faltas administrativas para fins do art. 142, § 2º, da Lei 8.112/90":

Crime contra a Administração Pública, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, para fins administrativos, é infração disciplinar, se tipificado na lei administrativa como causa de demissão, juízo compartilhado por Marcelo Caetano: "O crime contra a Administração Pública é considerado especificamente na lei administrativa como infração disciplinar" [14]. José Armando da Costa ajunta: "A prática de delito contra a Administração Pública pelo funcionário constitui ilícito disciplinar ensejador da pena disciplinar capital (demissão). O justo título gerador da reprimenda demissória é, nesses casos, a prática de crime contra a administração. [15]

Ora, grife-se: se a prática de crime contra a Administração Pública é capitulada como falta funcional no estatuto do funcionalismo, é inequívoco o poder-dever da Administração de punir essa transgressão administrativa cometida por servidor integrante de seus quadros, aplicando-lhe a competente penalidade demissória cabível, antes mesmo de julgamento de processo penal ou de ação de improbidade pelos mesmos fatos.

Nesse diapasão, enfatize-se, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica:

Demissão de funcionário estável, mediante processo administrativo, por crime contra a administração pública: validade: análise de jurisprudência e doutrina. 1. Se o fato único imputado ao funcionário constitui crime contra a administração pública, essa é também a única e exclusiva capitulação legal, que lhe corresponde, no rol das infrações disciplinares sujeitas à pena de demissão. 2. Não obstante, é firme a jurisprudência do STF, com o melhor respaldo doutrinário, no sentido de que a demissão do funcionário público motivada pela prática de crime funcional pode fazer-se mediante processo administrativo, decidido antes da solução do processo penal pelo mesmo fato; esse entendimento não é afetado pela superveniência da presunção constitucional de não culpabilidade (CF, art. 5º, LVII). (MS 21294/DF, Relator o Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, Julgamento em  23/10/1991, DJ de 21-09-2001, p. 42)

(...) Finalmente, não procede a alegação de que a decisão do processo administrativo deveria aguardar a do penal, dado entendimento da independência das instancias civil e penal, quando não se discute a inexistência material do fato ou a sua autoria. - Mandado de segurança indeferido (MS 21113/DF, Relator o Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, Julgamento em 12/12/1990, DJ de 14-06-1991, p. 8082)

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO: DEMISSÃO. ILÍCITO ADMINISTRATIVO E ILÍCITO PENAL. INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA: AUTONOMIA. PRESCRIÇÃO: Lei 8.112/90, art. 142. I. - Ilícito administrativo que constitui, também, ilícito penal: o ato de demissão, após procedimento administrativo regular, não depende da conclusão da ação penal instaurada contra o servidor por crime contra a administração pública, tendo em vista a autonomia das instâncias. (...) (MS 23242/SP, Relator o Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, Julgamento em 10/04/2002, DJ de 17-05-2002, p. 59)

(...) A instância disciplinar não está sujeita à prévia conclusão do processo criminal instaurado contra o requerente. 8. Mandado de segurança indeferido. (MS 22059/SP, Relator o Min. Néri da Silveira, Tribunal Pleno, Julgamento em 19/10/1995, DJ de 05-05-2000, p. 21)

(...) A autonomia das instancias administrativa, civil e penal autoriza, em princípio, a imposição de sanção disciplinar, independentemente da conclusão do processo criminal. Fatos tão-só do âmbito disciplinar, considerados na decisão administrativa de demissão, após processo administrativo regular. Não cabia, pois, liminarmente, suspender o ato governamental a partir da afirmativa de que se fazia mister previa decisão do juízo penal. A liminar concedida, a tal fundamento, constitui ameaça de grave lesão a ordem pública, enquanto nesta se compreende, também, a ordem administrativa em geral, o devido exercício das funções da Administração pelas autoridades constituídas (...) (SS-AgR 284/DF, Relator o Min. Néri Da Silveira, Tribunal Pleno, Julgamento em 11/03/1991, DJ de 30-04-1992, p. 5722)

A única ressalva, já consagrada no direito brasileiro, é que, aplicada pena de demissão ou de cassação de aposentadoria/disponibilidade a servidor, ao fundamento da prática de crime contra a Administração Pública, a superveniência de sentença penal absolutória que declara a inexistência do fato ou a negativa de autoria pelo acusado, desde que não subsista falta residual capaz de fundamentar a manutenção da penalidade imposta (Súmula 18, Supremo Tribunal Federal), implica o desfazimento do ato administrativo sancionador e a reintegração do agente ao cargo de que foi demitido.

O mesmo raciocínio se aplica no caso de incidência em ato de improbidade, que constitui ilícito de repressão estatal no âmbito administrativo e penal, haja vista que o cometimento dessa transgressão igualmente constitui falta disciplinar tipificada no art. 132, IV, da Lei 8.112/90, passível de pena de demissão, após o curso regular do processo administrativo apenador.

Não procede, demais, data venia, a tese de que o conceito de improbidade administrativa não poderia ser extraído dos tipos elencados na Lei 8.429/92, para fins de enquadramento respectivo no correspondente art. 132, IV, da Lei 8.112/90, na medida em que é pacífica a tese de que a Administração Pública pode punir com demissão a prática de fato tipificado como crime contra ela praticado, cuja definição não é buscada nem sequer no Estatuto dos Servidores Públicos Federais (isso porque a competência legiferante sobre direito penal é privativa da União e os regimes disciplinares do funcionalismo estadual, distrital e municipal não poderiam tratar da matéria: art. 22, I, Constituição Federal de 1988), mas sim nos ilícitos capitulados no Código Penal, o qual arrola várias condutas que são consideradas crimes contra a Administração Pública (arts. 312 a 326), além de regras de leis especiais como a Lei 6.766/79 (Lei Federal do Parcelamento do Solo Urbano: arts. 50, I a III e par. único, I e II; 51 e 52).

Logo, sendo a Lei 8.429/92 de caráter nacional, aplicável a todos os entes da Federação, é mais que apropriado e lícito haurir desse diploma legal, paralelamente ao cotejo com o estatuto disciplinar do funcionalismo público local, o conceito das condutas definidas na LIA como caracterizadoras de improbidade administrativa, consoante previsto em seus artigos 9º, caput, I a XII; 10, caput, I a XV; 11, I a VII, para fins de punição de servidores nos autos de processo administrativo disciplinar.

Tanto que o Superior Tribunal de Justiça firmou em recentíssimo acórdão:

MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. REVOGAÇÃO DO REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES FEDERAIS. NÃO-OCORRÊNCIA.

1. A chamada "Lei de Improbidade Administrativa", Lei 8.429/92, não revogou, de forma tácita ou expressa, dispositivos da Lei 8.112/90, que trata do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais. Aquele diploma legal tão-somente buscou definir os desvios de conduta que configurariam atos de improbidade administrativa, cominando penas que, segundo seu art. 3º, podem ser aplicadas a agentes públicos ou não. Em conseqüência, nada impede que a Administração exerça seu poder disciplinar com fundamento em dispositivos do próprio Regime Jurídico dos Servidores, tal como se deu no caso vertente. [16]

Por essas razões que não se chancela o entendimento de que a aplicação das penalidades da Lei 8.429/1992 não caberia à Administração Pública, na sede do processo administrativo disciplinar, mas apenas ao Poder Judiciário, porquanto a defesa da moralidade no serviço público interessa diretamente ao desempenho das atividades administrativas e deve ser apurado e reprimido na esfera do processo disciplinar, haja vista que o ilícito em comento é capitulado, na Lei 8.112/1990 (art. 132, IV), como infração funcional passível de demissão, pena da alçada do administrador público, sim, e aplicável após a observância das formalidades processuais previstas em lei.


Notas

01 MS 7861/DF; 2001/0101898-7, DJ 07/10/2002, p. 169, relator Min. GILSON DIPP, decisão de 11/09/2002, 3ª Seção.

02 ROMS 16981/SP; 2003/0157848-5, DJ 17/05/2004, p. 245, relator o Min. GILSON DIPP, decisão de 6-4-2004, 5ª Turma.

03 ROMS 12827/MG; 2001/0004031-4, DJ 02/02/2004, p. 362, relator o Min. HAMILTON CARVALHIDO, decisão de 25/11/2003, 6ª Turma.

04 MS 7330/DF; Mandado de Segurança 2000/0144499-9, relator o Min. HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, 3ª Seção, julgamento em 09/11/2005, DJ de 06.03.2006, p. 149.

05 RMS 24293/DF, relator o Ministro Marco Aurélio, Julgamento em 04/10/2005, 1ª Turma, DJ de 28-10-2005, p. 50.

06 RMS 24901/DF – relator o Ministro Carlos Brito, Julgamento em 26/10/2004, 1ª Turma, DJ de 11-02-2005, p. 13.

07 Contorno jurídico da improbidade administrativa. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 121.

08 O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3ª. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 17.

09 Probidade administrativa: comentários à Lei 8.429/92 e legislação complementar. 4ª. ed. atual. e. ampl., São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 272.

10 Ob. cit., p. 114.

11 Probidade administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 179-180.

12 Processo n.º 020.004.178/2003.

13 MS 11035/DF, relatora a Ministra Laurita Vaz, 3ª Seção, Julgamento em 14/06/2006, DJ de 26.06.2006, p. 116.

14 Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 391.

15 Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 510.

16 MS 12262/DF, relator o ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, 3ª Seção, julgamento em 27/06/2007, DJ de 06.08.2007, p. 461.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Demissão de servidor público por prática de ato de improbidade administrativa sob a ótica da jurisprudência dos tribunais superiores e da doutrina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1582, 31 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10567. Acesso em: 24 abr. 2024.