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Direito sucessório na união homossexual

Direito sucessório na união homossexual

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Com freqüência, em face da morte de seu companheiro homossexual, pessoas vêem-se ameaçadas de perder para a família do falecido todo um patrimônio para cuja construção contribuíram.

1 - INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo analisar a problemática relativa ao destino hereditário do patrimônio constituído por um casal de pessoas do mesmo sexo. Não raro, demandas têm sido propostas perante o Poder Judiciário para que decida se o companheiro homossexual sobrevivo teria ou não direito à herança de seu consorte, ou se teria, pelo menos, direito à partilha do patrimônio deixado pelo de cujus.

Com certa freqüência, batem à porta do Judiciário pessoas que, em face da morte de seu companheiro homossexual, vêem-se desprotegidas pela lei e ameaçadas de perder para a família do de cujus, herdeiros ex lege [01] do falecido, todo um patrimônio para cuja construção tenham contribuído direta ou indiretamente [02].

A morte leva forçosamente à abertura da sucessão e à deflagração do processo de inventário, onde, face ao vácuo legislativo e à costumeira ausência de disposições testamentárias, batalhas judiciais infindáveis são travadas entre o companheiro sobrevivente e a família do de cujus. Nesse conflito, que se revela financeiramente dispendioso e, por vezes, moralmente degradante, repousa o objeto desta pesquisa: o reconhecimento de algum direito sucessório.

Sob esse aspecto, o presente trabalho propõe-se a encetar uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial, a fim de definir e avaliar os paradigmas argumentativos utilizados no sentido de reconhecer a força jurígena da união homoafetiva no direito brasileiro. A pesquisa pretende focar, ainda que não exclusivamente, os direitos patrimoniais ensejados pela abertura da sucessão hereditária: os direitos sucessórios.

Nesse sentido, organizou-se a obra com base nos paradigmas argumentativos que doutrina e tribunais pátrios têm utilizado para analisar os litígios relativos à sucessão na união homossexual, ora concedendo direitos, ora negando qualquer pretensão patrimonial ao companheiro supérstite.

A doutrina está atenta para a perniciosa divergência de tratamento jurisprudencial que se tem dado a tema socialmente tão relevante:

As soluções judiciais polarizam-se entre as que negam serem as uniões homossexuais merecedoras de consideração pelo Direito até as que aplicam as normas referentes à união estável e ao casamento. O que não pode é o magistrado deixar de julgar. Ainda que a lei seja omissa, deve-se fazer uso da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito, buscando atender ao fim social e às exigências do bem comum (DIAS, 2006, p. 23).

Em face desta lacuna no direito positivo brasileiro, toda solução dada a conflitos oriundos da união entre pessoas do mesmo sexo tem sido dirimida pelos tribunais com base em recursos hermenêuticos e analógicos, calcados nos princípios constitucionais e em institutos com os quais a união homoafetiva pode assimilar-se, tais como a sociedade de fato, o casamento e a união estável.

Em seguida, faz-se um estudo do paradigma jurisprudencial dominante no país no que tange à concessão de direitos patrimoniais ao companheiro homossexual: a teoria da sociedade de fato. Privilegiando a boa-fé dos companheiros durante o período de convivência, os tribunais têm procurado evitar o locupletamento dos herdeiros do falecido, deferindo ao sobrevivo direito à partilha do patrimônio que, embora construído pelo esforço comum, encontrava-se em nome apenas do que morreu. Não fosse a adoção da teoria da sociedade de fato, o companheiro sobrevivo perderia a parte dos bens que ajudou a amealhar para os herdeiros do falecido, que tudo receberiam a título de direito sucessório deferido por lei.

A união estável é o próximo modelo a ser estudado. Doutrina e jurisprudência de vanguarda têm se apoiado analogicamente neste instituto para conferir ao parceiro homossexual sobrevivente não só direito à meação do patrimônio comum, mas também direito à herança, nos moldes da lei civil. A partir deste estudo, pretende-se contribuir para definição das linhas de pensamento jurisprudencial e doutrinário no Brasil, no que toca à força jurígena da união homossexual, buscando identificar quais são os paradigmas argumentativos mais utilizados para a tutela dos direitos sucessórios oriundos da homoafetividade.


2 - O PARADIGMA DA SOCIEDADE DE FATO

Ao enfrentar o desafio da sucessão quando o de cujus vivia uma relação homoafetiva, a doutrina e a jurisprudência mais conservadoras buscam dirimir os conflitos hereditários evocando o instituto negocial da sociedade de fato, cujo pressuposto é a conjugação de esforços para a manutenção, formação ou aumento de um patrimônio único. Essa tese começou a ser utilizada no Direito pátrio para lidar com os conflitos oriundos da união estável entre homem e mulher quando ainda não havia lei regulando tal entidade familiar. Ainda hoje mostra-se como corrente majoritária nas Cortes brasileiras, quando se trata de dar solução a conflitos patrimoniais relativos à extinção de uma comunidade familiar homossexual.

Ao findar uma união estável, pela morte ou vontade de uma das partes, não raro a outra parte era deixada ao desamparo, uma vez que o patrimônio adquirido geralmente encontrava-se registrado sob o nome de apenas um dos companheiros, normalmente o homem. Aos olhos da [03]doutrina e jurisprudência das décadas de 40 a 60, esse fato configurava enriquecimento ilícito unilateral de um dos companheiros, ou, em se tratando de morte, de seus herdeiros em prejuízo do companheiro sobrevivo (RODRIGUES, 1995, p.253).

A doutrina da sociedade de fato foi, então, ainda que sem a devida precisão técnica, adotada pelos Tribunais pátrios por referir-se a uma sociedade que se formava sem registro, sem capital, cujo patrimônio seria constituído, futuramente, por tudo que os sócios adquirissem a título oneroso ou gratuito, responsabilizando-se apenas pelas dívidas que proviessem após a constituição do laço societário.

Tal artifício jurídico, entretanto, não vem a ser novidade no tratamento de relações afetivas de caráter oficioso, visto que nos primórdios das discussões relativas à tutela jurídica da união estável entre homem e mulher a mesma solução foi trazida à baila, tendo inclusive o STF [04] editado a Súmula 380 com base neste mesmo instituto societário (MATOS, 2004, p. 71).

2.1 Sociedade de fato e esforço comum: aspectos da dificuldade probatória

Quanto ao aspecto probatório da sociedade de fato, divide-se a jurisprudência quanto às espécies de prova a serem produzidas, a fim de que se conceda ao parceiro homossexual direito à partilha dos bens comuns. Nesse sentido despontam duas correntes: há uma corrente que privilegia provas de contribuição financeira direta e outra que se satisfaz com provas de contribuição indireta, como o auxílio na atividade laboral do companheiro ou a realização de serviços domésticos.

2.1.1 A teoria da contribuição direta

Ao capitularmos a união homoafetiva como sociedade de fato, sob a Teoria da Contribuição Direta, imputamos ao parceiro sobrevivo o pesado ônus de comprovar sua participação efetiva na construção do patrimônio hereditário, através de aportes financeiros diretos.

Esta corrente doutrinária e jurisprudencial exige a robustez da prova de contribuição direta para a partilha do acervo condominial, em caso de ruptura da união por vontade ou por morte de uma das partes. Esta prova configura-se de difícil produção, pondo o companheiro supérstite em desvantajosa posição processual, mormente se o patrimônio amealhado durante o tempo de convívio foi registrado apenas em nome do parceiro falecido [05], e não houve a confecção de um testamento em seu favor.

Adotando a "Teoria da Contribuição Direta", muitos posicionamentos são taxativos no sentido da possibilidade de caracterização da sociedade de fato somente mediante prova inequívoca de efetiva contribuição para a formação do patrimônio sub judice:

Sob o prisma jurídico, não há efeitos jurídicos propriamente distintos das uniões concubinárias e das uniões homossexuais, já que ambas, fora do Direito de Família, somente podem ser cuidadas como sociedades de fato, desde que evidentemente sejam preenchidos os requisitos para a configuração de tais entidades, possibilitando o reconhecimento do direito do partícipe da relação – que for prejudicado em decorrência da aquisição patrimonial em nome tão-somente do outro – ao partilhamento dos bens adquiridos durante a constância da sociedade de fato, na medida da sua efetiva contribuição para a formação ou o incremento patrimonial (grifo nosso) (GAMA, 1998, p. 491).

Depreende-se, do trecho referido, a importância da atividade processual probatória que competirá ao companheiro sobrevivo, caso queira fazer jus a alguma parcela do patrimônio hereditário. Tendo em vista a duração do relacionamento, a instrução probatória pode tornar-se tarefa hercúlea, senão impossível. Caso não seja feita prova satisfatória de sua participação, não terá o sobrevivente direito ao patrimônio amealhado, nem mesmo a título de sócio. Essa preocupação é apontada na doutrina sobre a família homossexual:

Dessa maneira, como decorrência da idéia do Direito das Obrigações, transposta para a união homoafetiva, outras questões podem surgir, quais sejam, a prova do percentual de contribuição para a "sociedade de fato" (que poderá não corresponder a 50%) e a perquirição da eventual contribuição indireta na prestação de serviços para o outro companheiro (MATOS, 2004, p. 77).

2.1.2 A teoria da contribuição indireta

Por outro lado, existe uma corrente defensora da Teoria da Colaboração Indireta, igualmente aplicável aos casos de dissolução de união estável heterossexual, para a qual seria bastante a prova da contribuição indireta do parceiro homossexual sobrevivo a fim de que lhe fosse deferida a meação do patrimônio. Por contribuição indireta, pode-se entender qualquer prestação, que não seja aporte financeiro direto, mas que, de alguma forma, contribua para a configuração do "esforço comum" entre os companheiros.

Segundo Matos (2004, p. 78), podem ser considerados exemplos de contribuição indireta: "o apoio espiritual, a troca de afeições, os trabalhos domésticos, os cuidados com os membros da família de seu companheiro (podendo englobar filhos)".

Já se percebe que esta segunda corrente humaniza a relação homoafetiva e ressalta a existência de relações interpessoais, facilitando a efetivação de direitos para o companheiro sobrevivo que não tenha provas suficientes da participação no enriquecimento do casal. Embora não chegue a conceder à homoafetividade os direitos típicos da entidade familiar, essa posição doutrinário-jurisprudencial intermediária tem o mérito de reconhecer que, antes de se tratar de sociedades de fato, as uniões homossexuais são também comunidades de afeto.

Decisão pioneira na comarca de Juiz de Fora/ MG reconheceu direito à meação ao parceiro sobrevivo não só com base nas provas de contribuições patrimoniais diretas, mas com fulcro na configuração de esforço comum pela via indireta, o que foi confirmado pelo TJMG, conforme se lê a seguir:

Comprovada a existência de um relacionamento de ordem afetivo/sexual entre pessoas do mesmo sexo, e demonstrada a colaboração recíproca dos parceiros para a formação do patrimônio, numa inequívoca comunhão de esforços e recursos, configurando participação na ordem direta e indireta, reconhece-se como presente uma sociedade fática, com todas as conseqüências jurídicas que lhe são inerentes, em especial o direito à partilha de bens, em caso de vir a mesma a ser dissolvida pelo falecimento de um dos sócios ou o rompimento espontâneo da relação que lhe deu origem (TJMG. Apelação Cível Nº 309.092-0. Relatora Des. Jurema Brasil Marins. j. 27.02.2002. Disponível em <http:www.tjmg.gov.br>. Acesso em: 14 ago. 2006).


3 - O PARADIGMA DA SUCESSÃO BASEADA NA UNIÃO ESTÁVEL

Com o advento da nova ordem constitucional de 1988, a união estável entre homem e mulher passou a ser reconhecida como entidade familiar, e, como tal, passou a gozar de especial proteção do Estado.

Até então, o companheirismo não era constitucionalmente reconhecido pelo direito positivo, sendo apenas protegido pela jurisprudência, a fim de que um dos conviventes não fosse prejudicado patrimonialmente quando da morte daquele em cujo nome foram adquiridos os bens do casal. Neste caso, o patrimônio construído pelo casal acaba sendo destinado à família do falecido, deixando em desamparo o convivente sobrevivo [06].

A união estável começa então a receber atenção do direito, merecendo a tutela dos tribunais. Atravessando décadas de entraves jurídicos e judiciais, o companheirismo ganha status constitucional de família, sendo posteriormente objeto de regulamentação através das leis nº 8.971/94 e 9.278/96, hoje tidas como revogadas pelo novo Código Civil.

Nesse capítulo, quer-se esclarecer com que objetivo o paradigma da união estável é trazido à baila para serem resguardados os direitos dos conviventes homossexuais. Seria a união estável base analógica para o simples deferimento de meação dos bens adquiridos em comum, quando, então, não se estaria conferindo aos companheiros direitos sucessórios propriamente? Ou seria ela trazida à baila para alçar o companheiro à categoria de herdeiro, recolhendo parte do patrimônio de acordo com a ordem de vocação hereditária?

Vale ressaltar que, neste trabalho, adota-se um conceito de união estável consentâneo com a nova lei civil. Trata-se da convivência pública, contínua, duradoura, com o objetivo de constituir família, entre homem e mulher que não sejam casados, nem apresentem impedimentos ao casamento, conforme art. 1521 do Código Civil. Note-se que, no atual estágio de desenvolvimento da Ciência Jurídica, não há prazo temporal mínimo na lei para a configuração de uma união estável.

A título de precisão conceitual, a fim de que não se confunda com a união estável, se um ou ambos os conviventes forem casados ou impedidos para o matrimônio, configura-se o concubinato, conceito positivado pelo próprio Código Civil, em seu artigo 1727, verbis: "As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato".

Feita a ressalva, passamos a analisar a evolução legislativa da união estável em face, especificamente, dos direitos sucessórios. Anteriormente à previsão constitucional, a união estável galgou a duras penas os degraus da escada do reconhecimento jurídico perante os tribunais pátrios, em um calvário que, agora, tem se repetido no tocante à união entre pessoas do mesmo sexo (DIAS, 2006, p. 88). Quanto aos direitos oriundos da ruptura da relação more uxorio [07], devido à morte ou à vontade mesma de um ou de ambos os companheiros, pode-se precisar realmente uma linha evolutiva.

3.1 Analogia entre união estável e união homossexual: direito à meação ou à herança?

Se o Direito parece conforme em não estender os efeitos jurídicos do casamento à união homossexual, o mesmo não tem acontecido com relação à possibilidade de analogia em face da união estável, em nível doutrinário e jurisprudencial.

Vale frisar que, mesmo assim, vozes conservadoras ainda ecoam pelos tribunais pátrios. Calcado em uma interpretação literal da dicção do §3º da CF/88, o desembargador Manoel Ricardo Rebello Pinto assim se manifestou no julgamento do Agravo de Instrumento nº 266.853.4/8, tramitado perante o TJSP:

Nos termos do art. 226, §3º, da CF, e da legislação infraconstitucional que o regulamentam (leis federais nº 8971/94 e 9278/96) os direitos sucessórios ali estabelecidos estão restritos ao companheiro sobrevivente de união estável entre homem e mulher. Verifica-se, assim, que, nos termos da legislação vigente sobre direitos sucessórios relativos à união estável, o agravante não pode ser admitido como meeiro e herdeiro do de cujus, embora tenha demonstrado "a condição de dependente habilitado perante o INSS, porquanto, como a afirmado no agravo, ele manteve união homossexual com o de cujus (TJSP. Agravo de Instrumento nº 266.853.4/8. Relator Des. Manoel Ricardo Rebello Pinto. Disponível em <http:www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 05 set. 2006).

Tão similares são os fatos jurídicos que o próprio Projeto de Lei nº 6.960/02 almeja introduzir parágrafo único no art. 1727 do Código Civil [08], a fim de equiparar, de lege lata, a união homossexual à união estável, e suprir a lacuna legislativa acerca do tema. Justificando tal necessidade, no próprio corpo do projeto de lei, o então Deputado Ricardo Fiúza assim se manifestou:

É imperioso que se acrescente dispositivo que reconheça direitos patrimoniais às uniões fáticas de duas pessoas capazes, mesmo porque a própria jurisprudência já vem atribuindo a essas uniões os mesmos efeitos jurídicos das sociedades de fato. Entendo que pelo menos a questão patrimonial entre parceiros civis deve ser disciplinada no Direito de Família (FIÚZA, Justificativas ao PL n. 6.960/02. Disponível em <http:www.congresso.gov.br>. Acesso em: 28 set. 2006).

Em lapidar e pioneira decisão, o Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconhece, de forma veemente, a possibilidade de analogia entre os institutos sob análise:

EMENTA: UNIAO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMONIO. MEACAO PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio adquirido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica (grifo nosso). Apelação Provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (TJRS. Apelação Cível Nº 70001388982. Sétima Câmara Cível. Relator Des. José Carlos Teixeira Giorgis. j. 14.03.2001. Disponível em <http:www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 04 out. 2006).

Por certo, o direito à meação não se confunde com o direito hereditário. Reconhecer-se direito à metade dos bens comuns não é conferir ao companheiro homossexual o status de herdeiro.

Quando se trata de direito à meação, o meeiro, desde sempre, é titular do patrimônio ora indiviso. Quanto à herança, o direito ao patrimônio só exsurge quando do evento morte, havendo previsão legal ou testamentária em favor do companheiro. Assim, não se podem considerar vanguardistas as tutelas judiciais restritas à meação, vez que tal direito pode ser garantido até mesmo pelo instituto da sociedade de fato. Posturas mais arrojadas vão mais além, e ousam atribuir ao companheiro homossexual o próprio direito à sucessão.


4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A união entre pessoas do mesmo sexo é fato social que está a desafiar o Direito brasileiro, propondo-lhe questões que ainda estão longe de serem respondidas satisfatoriamente. Em descompasso com as ciências médicas e psicológicas, que modernamente já retiraram a homossexualidade do nicho das patologias, o Direito ainda trata com parcimônia e preconceito os conflitos e demandas oriundos das relações entre pessoas do mesmo sexo.

Neste trabalho, procurou-se analisar especificamente as controvérsias quanto ao direito sucessório, surgidas quando da morte de um dos companheiros homossexuais. Neste particular, pôde-se verificar que a doutrina e os tribunais têm seguido duas correntes fundamentais.

A primeira, mais antiga e conservadora, e ainda majoritária, quando se depara com um inventário em que se habilita um companheiro homossexual, simplesmente ignora o aspecto afetivo do vínculo rompido em função da morte e procura apenas identificar se o suposto companheiro contribuiu direta ou indiretamente para a constituição do patrimônio comum. Trata-se da corrente da sociedade de fato, que não confere ao parceiro direitos sucessórios propriamente, apenas – e quando muito – direito à meação dos bens comuns, na proporção em que houver contribuído para a construção do patrimônio do casal, o que demanda tormentoso lastro processual probatório.

A segunda corrente posiciona-se no sentido de estender analogicamente à união homossexual os efeitos jurídicos da união estável, ora conferindo apenas direito à meação, ora enquadrando o companheiro supérstite na ordem de vocação hereditária, tudo mediante prova inequívoca da estabilidade e ostensibilidade da união. Esta corrente tem por mérito não olvidar os vínculos de amor presentes na união entre iguais, além de também, em alguns casos, conferir direitos sucessórios ao companheiro sobrevivo.

Resta-nos, agora, aguardar para que o Legislativo brasileiro tenha coragem e vontade política suficiente para promulgar uma lei que, de uma vez por todas, espanque séculos de discriminação e proteja a célula familiar homoafetiva, garantindo-lhe os direitos cujo gozo manso e pacífico é imprescindível para a dignidade da pessoa humana, independentemente de sua orientação sexual.


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Notas

01 Na ausência de testamento, a sucessão defere-se na seguinte ordem: aos descendentes em concorrência com o cônjuge, aos ascendentes em concorrência com o cônjuge, ao cônjuge somente, aos colaterais até 4º grau, e, por fim, ao Poder Público, não havendo sucessores daquelas classes. Cf. art. 1829 do Código Civil.

02 Entende a doutrina e a jurisprudência que a contribuição do companheiro será direta quando houver aportes financeiros comprovados de sua parte, e será indireta quando sua contribuição consistir em serviços, como os de natureza doméstica, prestados à outra parte.

03 À guisa de esclarecimento, o enriquecimento ilícito, ou locupletamento, recebe vedação expressa do ordenamento jurídico pátrio, cabendo ao prejudicado, na ausência de outra ação mais eficaz, a actio in rem verso, vide CC, arts. 884 a 886.

04 STF, Súmula 380. Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.

05 No casamento, ocorre o oposto: vigora a presunção de que o patrimônio adquirido na constância da união matrimonial, mesmo que em nome de um cônjuge apenas, pertencerá a ambos, em condomínio. Cf. CC, art. 1660. Entram na comunhão: I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges.

06 No casamento, por outro lado, os cônjuges têm proteção legal contra esse locupletamento, pois, consoante o art. 1660, I, a lei civil determina que entrem na comunhão os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, mesmo que em nome de um só dos cônjuges.

07 Convivência como marido e mulher, tal qual a affectio maritalis no casamento.

08 1727-A: As disposições contidas nos artigos anteriores aplicam-se, no que couber, às uniões fáticas de pessoas capazes que vivam em economia comum, de forma pública e notória, desde que não contrariem as normas da ordem pública e os bons costumes.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Fábio de Oliveira. Direito sucessório na união homossexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1622, 10 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10742. Acesso em: 16 abr. 2024.