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A esdrúxula Medida Provisória nº 415/2008

A esdrúxula Medida Provisória nº 415/2008

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Sumário: 1 - Introdução. 2. - A Medida Provisória nº 415/2008 e seu decreto regulamentador. 3 - A legislação que rege a comercialização de bebidas. 4 - O Código de Trânsito Brasileiro. 5 - Competência da Polícia Rodoviária Federal. 6 - Violação dos princípios constitucionais. 7 - Manifestações do Judiciário. 8. Conclusão. 9 - Referências Bibliográficas.


1.Introdução

Diariamente a Imprensa noticia acidentes com mortes em estradas, em especial nos feriados e fins de semana. Pesquisas da OMS (Organização Mundial de Saúde), da SENAD (Secretaria Nacional Antidrogas) e do CONAD (Conselho Nacional Antidrogas), dentre outras entidades, indicam índices alarmantes da violência no trânsito, os quais crescem exponencialmente a cada ano.

Contudo, não é colocada de forma clara a verdadeira estatística da motivação da maioria dos acidentes, a saber, a imprudência dos motoristas, no mais das vezes alcoolizados, a sua imperícia, a má conservação e sinalização das estradas, veículos sem condição de transitar e, o que é pior, a ineficiência da fiscalização a cargo dos responsáveis.

Ainda de notar que o verdadeiro infrator é o motorista irresponsável que bebe antes de dirigir, quer tenha bebido em casa, leve bebida no carro ou se abasteça em uma via urbana.

A publicação do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997), que coíbe a ingestão de bebida alcoólica pelos motoristas, não foi suficiente para aplacar a imprudência dos condutores de veículos, principal causa dos acidentes e tragédias.

Visando combater o problema, foi editada a Medida Provisória nº 415/2008, regulamentada pelo Decreto nº 6.366/2008, que proíbe a comercialização de bebidas alcoólicas em rodovias federais e adjacências. Os infratores estão sujeitos ao pagamento de multa e, em casos de reincidência, à suspensão da autorização para acesso à rodovia pelo prazo de dois anos.

Qualquer iniciativa séria do Governo que se proponha a reduzir a violência no trânsito é elogiável e constitui aspiração de toda a sociedade. Contudo, a forma utilizada pela MPV 415 para solucionar problema tão complexo afigura-se totalmente inadequada, além de social e economicamente injustas. Ademais, não se pode impor aos estabelecimentos comerciais ônus irrazoáveis e desproporcionais, que nenhum benefício traga à sociedade brasileira.

Em verdadeira confissão de insuficiência dos meios fiscalizadores, o Governo Federal, ao editar a MPV 415, pensou haver encontrado a fórmula mágica de coibir excessos de motoristas no uso de bebidas alcoólicas e, numa atitude extravagante, impôs não aos motoristas, mas aos estabelecimentos comerciais, uma verdadeira "lei seca".

Embora o espírito da norma seja, em tese, que os motoristas tenham maior dificuldade em consumir bebidas alcoólicas em suas viagens, não se pode deixar de apontar que a Medida Provisória em questão, além de se encontrar eivada de flagrantes inconstitucionalidades, deixa de punir o principal responsável pelo crescente número de acidentes em rodovias: o motorista alcoolizado.

Ademais, como se sabe, apenas uma fração minoritária das pessoas que circulam em estradas é composta por condutores de veículos, sendo a grande maioria integrada por passageiros (ônibus, outros transportes coletivos e veículos particulares), cujo consumo de álcool não afeta a segurança do tráfego.

Assim, não se pode estender a vedação de venda de bebidas alcoólicas a todo universo de passageiros de veículos automotores que freqüentam os estabelecimentos comerciais localizados à beira das estradas ou em suas proximidades, sob pena de restrição às liberdades individuais.

Por igual razão de direito, não se pode impedir a venda de bebidas alcoólicas a moradores das cidades vizinhas às estradas que queiram freqüentar tais estabelecimentos ou queiram comprar bebidas para o seu consumo em casa, nas festas e comemorações.

Neste particular, assinale-se que o setor de alimentação "fora do lar" responde por 2,4% do Produto Interno Bruto no Brasil. De acordo com o estudo "Economia do Turismo: Análise das Atividades Características de Turismo", do IBGE, 81,49% das prestadoras de serviço no turismo são empresas de alimentação e respondem por 65,37% dos empregos. Esta realidade econômica realça ainda mais o fato de que a supressão completa da comercialização de bebidas alcoólicas em determinados locais ou regiões do território nacional é claramente abusiva, pois excede o poder regulamentar e normativo do Poder Público, que não pode simplesmente eliminar linearmente toda uma atividade econômica lícita praticada há muitas décadas, nos mesmos locais.

A Medida Provisória simplesmente tangencia o problema, pois o foco da questão está em reprimir o uso excessivo do álcool pelo motorista. Para resolver de fato a questão da violência rodoviária, a Presidência da República deveria propor ao Congresso Nacional uma significativa reformulação das penalidades impostas aos motoristas infratores e tão-somente a eles.

Por outro lado, o consumo irresponsável de bebidas alcoólicas por motoristas constitui um problema crônico, cuja solução demanda amplo debate parlamentar, com participação dos diversos segmentos da sociedade, em sessões públicas, ao invés de indevida ingerência do Poder Executivo nas funções do Congresso Nacional, de afogadilho e às vésperas do feriado de Carnaval.

E tanto assim o é que o próprio Ministro da Justiça reconhece que referida Medida Provisória, já agora em apreciação pelo Congresso Nacional, necessita de ajustes e alterações, "ante os interesses que estão se manifestando na sociedade, desde que mantido o espírito essencial da MP, que é o de reprimir a condução de veículos por motoristas alcoolizados" ("O Estado do São Paulo", de 08.02.2008).


2.A Medida Provisória nº 415 / 2008 e seu Decreto regulamentador

Inicialmente, importante destacar que o Decreto nº 6.366/2008 desborda dos limites de sua função regulamentadora, por impor penalidade não prevista na MPV nº 415/2008 (artigo 1º, § 2º). Dispõe o Decreto (artigo 6º) que "será determinada a imediata retirada dos produtos expostos à venda ou oferecidos para consumo e a cessação de qualquer ato de venda ou oferecimento para consumo deles", enquanto que a MPV autorizou apenas a aplicação de multa em dobro e a eventual suspensão da autorização para acesso à rodovia federal pelo prazo de dois anos, em caso de reincidência.

Ademais, de destacar que a MPV nº 415/2008 proíbe a venda varejista e o oferecimento para consumo de bebidas alcoólicas "na faixa de domínio de rodovia federal ou em local contíguo à faixa de domínio com acesso direto a rodovia". O Decreto nº 6.366/2008 (artigo 2º) utilizou os seguintes conceitos do Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997):

a) faixa de domínio - "superfície lindeira às vias rurais, incluindo suas vias arteriais, locais e coletoras, delimitada por lei específica e sob responsabilidade do órgão ou entidade de trânsito competente com circunscrição sobre a via" (grifamos);

b) via rural - "estradas e rodovias";

c) via urbana - "ruas, avenidas, vielas, ou caminhos e similares abertos à circulação pública, situados na área urbana, caracterizados principalmente por possuírem imóveis edificados ao longo de sua extensão".

d) perímetro urbano -"limite entre área urbana e área rural".

Importante ressaltar que a transposição de conceitos do Código de Trânsito Brasileiro para o Decreto nº 6.366/2008 implica que os mesmos passam a assumir feições próprias, integrando a nova norma editada.

Na lição do mestre hermeneuta CARLOS MAXIMILIANO, "a lei não contém palavras ou expressões inúteis ou nem estatuições desnecessárias", bem como que "as expressões de Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis" ("verba cum effectu, sunt accipienda") [1].

Embora o Código de Trânsito Brasileiro (artigo 60, II, alínea "a" e "b)) refira-se às vias rurais como sendo as estradas e rodovias, em nenhum momento restou definida a expressão "rural". Por sua vez, o Anexo I, como acima mencionado, enfatiza na conceituação de via urbana o de fato de serem "caracterizados principalmente por possuírem imóveis edificados ao longo de sua extensão".

Assim não há como se atribuir ao termo "rural" uma conceituação léxica ("aquilo que pertence ou relativo ao, ou próprio do campo, agrícola, pertencente ou relativo ao campo" [2] e outra legal (Decreto nº 6.366/2008, artigo 2º) ao conceituar faixa de domínio como "superfície lindeira às vias rurais", em flagrante ofensa ao princípio da não contradição ("Uma coisa, considerada sob o mesmo aspecto, não pode ser e não-ser ao mesmo tempo").

Estender o conceito de faixa de domínio das rodovias federais igualmente às áreas urbanas e rurais implicaria atribuir interpretação absurda à norma em análise.

Por óbvio que dentro do perímetro urbano não há que se falar em rodovia, pois no limite da urbe, o trecho das denominadas BR torna-se via urbana. Portanto, em relação aos estabelecimentos localizados em área urbana, o ato de autoridade é ilegal e abusivo, pois desborda da legislação de regência.

Conclui-se, desse modo, que os estabelecimentos situados dentro do perímetro urbano, assim definidos por norma municipal, não estão sujeitos ao âmbito normativo da Medida Provisória nº 415/2008 e do Decreto nº 6.366/2008.

Contudo, a Polícia Rodoviária Federal tem autuado indistintamente tanto os estabelecimento situados em áreas urbanas como aqueles localizados em áreas rurais. E esta infringência legal decorre do fato que a maioria das rodovias federais atravessa cidades, confundindo-se com as áreas urbanas.

De outra feita, a Medida Provisória nº 415/2008 (artigo 6º) fixou que, até 31.01.2008, os estabelecimentos comerciais se enquadrassem nas novas normas, ou seja, dez dias após sua publicação. Mas o Decreto nº 6.366/2008, que especifica o detalhamento das regras a serem cumpridas, foi publicado somente no Diário Oficial de 31.01.2008, sem qualquer prazo para adaptação às formas de cumprimento da proibição da venda de bebidas alcoólicas, especialmente com relação aos avisos aos consumidores. Ou seja, no mesmo dia em que a nova norma entra em pleno vigor, expõem-se os comerciantes às penalidades, o que se constitui obrigação impossível de ser cumprida, logo juridicamente inexistente.

Em igual sentido, a previsão de vigência imediata deixa claro que a norma ignora por completo o fato de as empresas terem em estoque mercadorias e que, se não as venderem, amargarão grandes prejuízos. Ademais, é certo que essas mercadorias foram adquiridas sob permissão legal, na vigência da lei anterior, não tendo os empresários efetuado as aquisições cometendo nenhuma irregularidade. Assim, ainda que essa vedação fosse aceitável, o que se admite apenas para argumentar, deveria ser assegurado o direito à comercialização dos estoques existentes em cada estabelecimento. O poder de polícia não é visto de forma tão abusiva que possa olvidar essa realidade.


3.A legislação que rege a comercialização de bebidas.

O comércio de bebidas alcoólicas é uma atividade lícita e, assim, as pessoas têm o direito de adquirir tal mercadoria livremente, sob pena de violação das liberdades individuais. A forma como os clientes irão fazer uso deste produto não é questão afeta ao comerciante, sim um problema exclusivo da fiscalização, que cabe unicamente ao Poder Público.

A produção e o consumo de bebidas já se encontram regulamentados pela Lei nº 8.918/1994 e pelo Decreto nº 2.314/1997, com alterações introduzidas pelo Decreto nº 3.510/2000, nos quais o legislador não optou pela limitação da comercialização, exceto em duas únicas hipóteses constantes nos artigos 62 e 63 da Lei de Contravenções Penais (DL 3.688/1941): (a) apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia e (b) servir bebidas alcoólicas a menor de dezoito anos, a quem se acha em estado de embriaguez, a pessoa que o agente sabe sofrer das faculdades mentais e a pessoa que o agente sabe estar judicialmente proibida de freqüentar lugares onde se consome bebida de tal natureza.

Por outro lado, a MPV 415 classifica como bebida alcoólica aquela que contenha álcool em sua composição, com grau de concentração igual ou acima de meio grau Gay Lussac (artigo 4º), ou seja, até os "coolers" e "ices" não poderão ser mais vendidos. Já a Lei nº 9.294/1996, que dispõe sobre restrições ao uso e à propaganda de bebidas alcoólicas, define-as como aquelas com teor alcoólico superior a treze graus Gay Lussac (artigo 1º, parágrafo único).

Assim, de maneira contraditória, o estabelecimento comercial está proibido de vender aquilo que o consumidor está legalmente autorizado a comprar e consumir. Com efeito, não pode haver o exercício do direito à compra se não houver a correlata possibilidade do direito à venda, face à inafastável natureza bilateral deste contrato.

E a contradição aumenta, ainda mais, se considerarmos que a causa da violência no trânsito é a excessiva ingestão alcoólica dos condutores de veículos, sendo que sobre eles é que deveria ser exercida a fiscalização, com a aplicação das sanções legais e regulamentares e não sobre terceiros, como os comerciantes.

Deve ainda ser considerada a função social das empresas ao gerarem postos de trabalho e tributos, o que restará prejudicado com a redução de suas atividades e, em conseqüência, de postos de trabalho.


4.O Código de Trânsito Brasileiro.

A Lei nº 9.503/1997, instituidora do Código de Trânsito Brasileiro, já coíbe a ingestão de bebida alcoólica pelos motoristas, contendo vários dispositivos que reprimem seu uso inadequado e abusivo. Caso fosse fiscalizado o cumprimento do referido Código, com a aplicação das várias sanções administrativas e criminais nele previstas, reduzir-se-ia drasticamente o índice de acidentes de trânsito:

"Art. 165.Dirigir sob influência de álcool, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica".

Infração: Gravíssima

Penalidade: Multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir.

Medida administrativa: Retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

Art. 269.A autoridade de trânsito ou seus agentes, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá adotar as seguintes medidas administrativas:

......................................................

X - realização de teste de dosagem de alcoolemia ou perícia de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;

Art. 276.A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor.

Art. 277.Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

........................................................................

.§ 2º No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.

Art. 302.Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas: detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único - No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:

................................................................

V - estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos.

Art. 306.Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.

Penas: detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor".

Contudo, em vez de se munir dos meios necessários à rígida aplicação do Código de Trânsito Brasileiro, inibindo infrações, a MPV adotou a solução que, no tocante aos motoristas contumazes no uso de álcool, mostra-se até mesmo inócua, pois certamente ou portarão frascos de bebida ou, o que é pior, já entrarão nas rodovias embriagados.

O legislador nacional já previu um amplo conjunto de sanções que acabaram por se revelar inúteis pela falta de uma fiscalização efetiva.

Diante disso, resta claro que o que se precisa é cumprir a norma existente e fiscalizar a mesma, e não criar novas normas violando o direito da livre iniciativa e da propriedade, princípios constitucionais. É a sabida constatação de que, num Estado Democrático de Direito, o mais importante não é editar leis indiscriminadamente, mas antes o integral cumprimento das já existentes.


5.Competência da Polícia Rodoviária Federal.

A Medida Provisória (artigo 3º) confere competência à Polícia Rodoviária Federal para fiscalizar a atividade econômica de estabelecimentos que comercializem bebidas alcoólicas e aplicar-lhes multa, em flagrante desvio de sua função constitucional.

Ocorre que a Constituição Federal (artigo 144, § 2º) atribui à Polícia Rodoviária Federal a função de "promover o patrulhamento ostensivo das rodovias", com o propósito de garantir obediência às normas de trânsito e manutenção da ordem e da segurança nas estradas. Por "patrulhamento ostensivo" deve ser entendido aquele realizado externamente, nas rodovias e estradas federais. Assim, extrapola a moldura fixada pela Carta da República conferir à Polícia Rodoviária Federal a dupla função de vigiar o tráfego de veículos nas rodovias e fiscalizar estabelecimentos comerciais, configurando desvio de sua atividade que é a segurança pública e a fiscalização das normas de trânsito.

A interdição da atividade de comércio de bebidas alcoólicas em estabelecimentos localizado as margens das rodovias e estradas federais não guarda qualquer relação com o policiamento ostensivo dessas vias ou mesmo com as competências descritas no rol do artigo 20 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997).

Este mesmo dispositivo, no inciso III, é taxativo em enfatizar que a Polícia Rodoviária Federal só pode "aplicar e arrecadar as multas impostas por infrações de trânsito, as medidas administrativas decorrentes e os valores provenientes de estada e remoção de veículos, objetos, animais e escolta de veículos de cargas superdimensionados ou perigosas".

Assim, é de se perquirir: se a Polícia Rodoviária Federal propaga na mídia não possuir efetivo suficiente para patrulhar as rodovias federais a contento, como esperar que se resolva, de fato, o problema da utilização de álcool pelos motoristas, apenas proibindo a comercialização nas rodovias?


6.Violação de princípios constitucionais.

Além desses aspectos fáticos, há inconstitucionalidades flagrantes na citada norma, pelo que se encontra eivada de nulidade ex tunc.

Sem adentrar na análise dos requisitos de relevância e urgência para edição de Medida Provisória (artigo 62 da CF), matéria sobre a qual o Excelso Pretório ainda mantém posicionamento oscilante, é de se notar que a MPV em análise afronta a vários princípios constitucionais.

Inicialmente, constata-se a lesão do princípio da razoabilidade - adequação aos meios e fins admitidos pelo texto constitucional, sob o aspecto de necessidade e exigibilidade (artigo 5º, inciso LIV, da Carta Política) - em razão do caráter substantivo que deve ser conferido a cláusula do "due process of law". Como assinalado pelo ilustre Ministro CELSO DE MELLO, "a essência do ´substantive due processo of law´ reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade". [3]

Com efeito, a proibição da venda de bebidas alcoólicas não constitui o meio menos gravoso para obter a redução de acidentes em rodovias.

Ademais, inobservado restou o requisito da proporcionalidade - relação de custo-benefício da medida - vez que o ônus imposto aos proprietários de estabelecimentos é desproporcional ao benefício pretendido. A medida revela-se desproporcional ao dano que causará, posto que, dependendo da natureza da atividade desenvolvida, a vedação de comercializar bebidas alcoólicas poderá acarretar a desativação do estabelecimento comercial.

Ainda deve ser lembrada a extrapolação de competência da Polícia Rodoviária Federal fixada no artigo 144, § 2º, da Carta da República, já anteriormente assinalado.

A MPV, ao incluir as áreas urbanas atravessadas por rodovias na proibição de comercializar bebidas em áreas urbanas, infringe igualmente o artigo 30, I, da Carta Política, que fixa a competência exclusiva do município de legislar em matérias que tenham vinculação com o interesse local. CELSO RIBEIRO BASTOS assinala que "os interesses locais dos Municípios são os que atendem diretamente as suas necessidades imediatas e, indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais." [4]

Cada Município tem definido em lei própria o limite de sua circunscrição territorial e o perímetro urbano de sua sede. No perímetro urbano das cidades, a faixa de domínio das rodovias federais ou estaduais são apenas confrontantes, tanto que, por medidas óbvias de segurança, devem estar separadas por canteiros ou obstáculos das vias públicas locais, cujos acessos diretos somente são permitidos através de trevos ou vias próprias.

Referida proibição da MPV menospreza a autonomia dos Municípios em contrariedade ao princípio de reserva legal do federalismo brasileiro, o que torna mais que atual a lição de ALÉXIS DE TOCQUEVILLE quando esclarece que "é na comuna que reside a força dos povos livres. As instituições municipais estão para a liberdade como as escolas primárias estão para a ciência: põem-na ao alcance do povo. Sem instituições comunais, uma nação pode dar-se um governo livre, mas não tem o espírito de liberdade". [5]

Outro aspecto a ser considerado é o malferimento do princípio da isonomia (artigo 1º da Constituição Federal), vez que a MPV, ao impedir a venda de bebidas alcoólicas às margens das rodovias federais, trata de forma desigual os comerciantes ali situados e os que possuem estabelecimento que comercializam tais produtos na mesma cidade, mas fora da faixa de domínio de rodovia federal ou em local contíguo com acesso direto à rodovia.

Apesar da dicção dos artigos 1º e 170 da Lei Maior, garantir o livre exercício da atividade econômica, o Estado, como regulador desta atividade, pode restringir e impor limitações ao seu exercício, desde que respeitados outros direitos constitucionais.

Neste contexto, a MPV violou as liberdades individuais e infringiu os princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência, da segurança jurídica e do direito de propriedade (artigo 5º, caput e inciso XXXVI), bem como deixou de observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.


8.Manifestações do Judiciário

O Poder Judiciário, ante todas estas violações a princípios constitucionais, mais uma vez cumpriu sua missão institucional, concedendo invariavelmente liminares com fundamento nas infringências constitucionais em que incorreu a Medida Provisória nº 415/2008, das quais, a título meramente ilustrativo, alinhamos as seguintes.

"No choque entre o poder de polícia do estado, traduzido na capacidade de limitar o exercício de uma atividade, no caso comercial, materializado na venda de bebidas alcoólicas e o direito adquirido de o comerciante transacionar com seu estoque de bebidas, aliado ao direito, erigido a norma constitucional, do livre exercício de qualquer atividade econômica fico, no momento, com o princípio do direito adquirido e do livre exercício de qualquer atividade econômica, freando o poder de polícia, a fim de evitar que, sob o seu manto o Estado, mesmo carregando sua atividade de bons propósitos, no sentido de evitar acidentes nas rodovias (federais), vá além desse poder, para ferir princípios que ordem constitucional adotou". (Desembargador Federal VLADIMIR SOUZA CARVALHO, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Liminar em Agravo de Instrumento em Manda de Segurança Coletivo, Processo 2008.05.006658-9);

"Todavia, entendo que a solução encontrada pelo Governo Federal através da Medida Provisória nº 415, de 21/01/2008 é inconstitucional por violar, a uma, o princípio da livre iniciativa e, a duas, por inviabilizar a atividade das empresas, além de reconhecer e comprometer a competência e a capacidade do Poder Público para coibir a condução de veículos automotivos por indivíduos alcoolizados. É, em última análise, uma declaração de incapacidade da administração, a não se dizer uma síndrome da incompetência do poder público, com a falência progressiva dos seus órgãos públicos, de combater e fiscalizar a prática de condutas ilícitas, ainda que de natureza administrativa". (Juiz Federal ALFREDO FRANÇA NETO, 30ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo, Processo 2008.51.04.000469-4);

"Verifica-se que a União, em verdadeira confissão de insuficiência de meios fiscalizadores, tentou através de MP 415/08 encontrar uma fórmula mágica de proibir os excessos cometidos por motoristas no uso de bebidas alcoólicas e, numa forma desmedida impôs, não aos condutores de veículos, mas sim aos comerciantes, o ônus de fiscalizar as rodovias federais" (Juíza Federal LILEA PIRES MEDEIROS, 22ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança, Processo 2008.51.01.011917-3);

"A legislação ora impugnada mostra, ao revés, todos os sinais falaciosos típicos da denominada "legislação de emergência" em que a última preocupação efetiva é a de tentar resolver o problema que se está a enfrentar via legislativa, sendo o propósito mais imediato, o de simplesmente dar-se uma satisfação qualquer e imediata à sociedade, e assim, fugir o Administrador ou o Legislador às suas responsabilidades, inclusive pelas omissões em que até então incorreu". (Juiz Federal ALBERTO NOGUEIRA JÚNIOR, 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo, Processo 2008.51.01.012099-0);

"E, no caso concreto, tenho que a MP 415, de 21 de janeiro de 2008 afronta os requisitos da necessidade ou exigibilidade e o da proporcionalidade em sentido estrito........... Ou seja, por um motivo ou por outro "necessidade ou exigibilidade ou proporcional - a MP 415/2008 afronta o princípio da razoabilidade, que se inscreveu expressamente no inciso LIV, artigo 5º, da CRFB/88, que vem a ser a cláusula do due procecess of law, pois a razoabilidade das leis se torna exigível por força do caráter substantivo que se deve dar à cláusula". (Juíza Federal VELLÊDA BIVAR SOARES DIAS NETA, 24ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo, Processo 2008.51.01.012082-5);

"Ao invés de intensificar a fiscalização aos motoristas que trafegam em rodovias federais, penalizando aqueles que fossem pegos conduzindo veículo automotor sob efeito de álcool, possibilitando que o Judiciário os julgassem por suas atitudes criminosas, preferiu o Executivo Federal, através de MP 415/2008, combater o mal, não pela raiz, mas pelo caminho supostamente "mais fácil", embora de contestável eficácia, penalizando aos que se dedicam à venda varejista e o oferecimento para o consumo de bebidas alcoólicas, repito, de forma lícita, pois a venda de bebidas não configura ilícito, tão-somente sua utilização quando na condução de veículo automotor". (Juiz Federal NAIBER PONTES DE ALMEIDA, 1ª Vara Federal do Distrito Federal, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo);

"A constatação de que os direitos à vida, saúde e integridade física dos cidadãos preponderam sobre os direitos da livre atividade econômica previsto no artigo 170 da Constituição da República não basta para inibir o controle de abusos legislativos contidos na espécie, e não afasta a necessidade de a matéria ser tratada e regulada pelas casas legislativas, com critérios da razoabilidade, como o prazo para a adaptação dos estabelecimentos normas restritivas" (Juiz Federal FREDERICO VALDEZ PEREIRA, 1º Vara Federal de Cascavel, Liminar em Mandado de Segurança, Processo 2008.80.00.000506-3).


9. Conclusão.

O primeiro aspecto a ser salientado é que o foco da MPV encontra-se totalmente equivocado, pois, em vez de punir os motoristas alcoolizados na forma prevista no Código de Trânsito Brasileiro, penaliza os comerciantes que apenas exercem uma atividade lícita e aos quais não cabe fiscalizar o uso de bebidas alcoólicas pelos clientes.

Mesmo vedados a venda varejista e o oferecimento para consumo de bebidas alcoólicas nas rodovias federais e adjacências, tal medida não impedirá que os mesmos condutores criminosos continuem a dirigir sob a influência do álcool, bastando que levem consigo bebida alcoólica adquirida antes de adentrar nas rodovias federais.

A rigor, a MPV constitui uma solução ingênua e superficial que não ataca o núcleo central do problema de acidentes em rodovias e, por certo, encontra-se fadada ao insucesso. Um exemplo de que o combate à condução de veículos por motoristas alcoolizados não se efetua através de novos atos legislativos nos é concedido pela total inobservância da Lei nº 4.885/1985, do Estado de São Paulo, que fixa que os estabelecimentos comerciais situados nos terrenos contíguos às faixas de domínio do DER somente poderão obter autorização de acesso direto às estradas estaduais se se comprometerem a não vender ou servir bebida alcoólica.

Por certo, a solução da violência nas rodovias passa pela integral aplicação das penas previstas no Código de Trânsito Brasileiro aos motoristas imprudentes, pelo fortalecimento da fiscalização, com o uso de bafômetros e retirada dos motoristas alcoolizados das vias públicas, pela concessão de maiores recursos para a manutenção das estradas e das sinalizações rodoviárias, além de oferecer melhores condições de trabalho para os agentes policiais rodoviários e aprofundar iniciativas que propaguem a conscientização dos condutores de veículos através de campanhas educativas.

Recomendável seria que o Poder Executivo se preocupasse em implementar efetivamente a fiscalização nas rodovias federais dos condutores de veículos que nela trafegarem, e uma vez constatado estarem com taxa de teor alcoólico superior à permitida, aplicar as penalidades previstas em lei. Só assim estar-se-ia coibindo tal prática.

Torna-se imperativo punir aqueles condutores de veículos violam as normas e não criar novas normas que restrinjam os direitos de terceiros, como de todos os passageiros que trafegam pelas rodovias, das comunidades locais e dos próprios comerciantes, posto existirem meios alternativos para se chegar ao mesmo resultado - segurança na rodovias, com menor ônus a direitos individuais.

Talvez consciente de que utilizou a fórmula jurídica equivocada, posto que atentatória à Carta Magna brasileira, busca agora o Governo Federal o caminho correto. Como noticia a imprensa ("O Globo", de 01.02.2008), o Ministério da Justiça está elaborando anteprojeto de lei, pelo qual pretende elevar a multa máxima por infração de trânsito de R$ 572,40 para R$1.575,00. Por outro lado, o motorista que for flagrado, por 2 vezes, em velocidade 50 km/h acima da permitida sofrerá multa de R$ 1.575,00, suspensão da carteira e pena de prestação de serviços à comunidade. Em caso de crimes de trânsito, o juiz poderá, no momento da condenação, calcular a multa a partir do valor do veículo. E, no que tange à embriaguez, pretende-se baixar de 6 decigramas para 3 decigramas a tolerância de álcool no sangue.

Tais alterações legais, se aprovadas, alinham-se em perfeita harmonia com o texto constitucional e, por certo, irão contribuir para a redução de acidentes rodoviários.

Contudo, caso a Medida Provisória nº 415/2008 seja convertida em lei, o que se admite apenas para argumentar, posto que diversos Parlamentares já se manifestaram contrários a tal ato normativo, teremos a esdrúxula constatação de que

"o motorista dirige alcoolizado e o comerciante é punido".


10.Referências Bibliográficas.

[1]MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 13ª ed., Rio, Ed. Forense, 1993, pag. 250).

[2]HOLANDA, Aurélio Buarque de, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed., Rio, Ed. Nova Fronteira, 1986).

[3]STF, Pleno, voto no ADIMC nº 1158, DJU de 26.05.95, pag. 15.154.

[4]BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Ed. Saraiva, pag. 301.

[5]TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América, 3ª ed., São Paulo, Universidade de São Paulo, 1987, pag. 202.



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ALVES, Claudio Roberto Alves de. A esdrúxula Medida Provisória nº 415/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1756, 22 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11182. Acesso em: 17 maio 2024.