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Hermenêutica filosófica como condição de possibilidade para o acontecimento (Ereignen) constitucional

Hermenêutica filosófica como condição de possibilidade para o acontecimento (Ereignen) constitucional

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Sumário:1 INTRODUÇÃO; 2 O SENTIDO (SENSO) COMUM TEÓRICO BRASILEIRO; 3 O ESTADO BRASILEIRO NO TEMPO; 4 AS DIRETRIZES PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 88; 5 HERMENÊUTICA JURÍDICA; 5.1 HERMENÊUTICA TRADICIONAL/CLÁSSICA; 5.2 HERMENÊUTICA CRÍTICA; 6 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA; 6.1 A VIRAGEM LINGÜÍSTICA: INTERPRETAR É COMPREENDER; 6.2 O CÍRCULO HERMENÊUTICO; 6.3 A APPLICATIO GADAMERIANA; 6.4 O ACONTECIMENTO CONSTITUCIONAL (EXISTÊNCIA E FATICIDADE); 7 CONCLUSÃO; 8 REFERÊNCIAS.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende discutir a Hermenêutica Filosófica como condição de possibilidade para superar paradigmas jurídicos advindos de nossa cultura individualista, ainda, calcada na metafísica e na razão pura. Deveras, há muito tempo o operador jurídico vive atrelado a velhos paradigmas, o que ocasiona um atraso interpretativo que impede a compreensão das mudanças geradas pela Constituição Federal de 1988.

Não se trata de mera retórica, a ineficiência estatal é patente em nossa sociedade, seja na saúde, na educação, no trabalho, enfim, em todos os principais direitos consagrados na Carta Magna de 1988.

Tal ineficiência pode ser combatida, ou ao menos minimizada, pelo operador jurídico que, se abandonar velhas práticas, com o uso da Hermenêutica Filosófica, pode superar paradigmas do Estado Liberal e, de fato, adentrar no Estado Democrático de Direito.


2. O SENTIDO (SENSO) COMUM TEÓRICO

Chamamos de senso comum o conjunto de idéias compartilhadas por uma comunidade, de forma unânime e sem prévia ponderação. São pré-juízos imutáveis, repetidos irrefletidamente, sem fundamentação racional, que consolidam conhecimentos padronizados.

Pode-se dizer que são "conhecimentos ingênuos", caracterizados pela espontaneidade e vulgaridade; manifestados, muitas vezes, pelos ditos populares e crenças que permeiam o imaginário do ser humano. O senso comum é uma espécie de recipiente intelectual onde são postas as experiências (conjunto de conhecimentos adquiridos entre gerações, sem base crítica) do indivíduo e do grupo social.

O senso comum atua em diversas áreas das ciências humanas, influenciando as práticas, coisificando o mundo com representações provenientes de conhecimentos teológicos, científicos, políticos, morais, entre outros. Tais representações ensejam a criação de entidades com aceitabilidade obrigatória.

Seu leque alcança, dessarte, a prática jurídica. O senso comum, no Direito, atua como um paradigma, uma entidade acima de qualquer questionamento. O operador jurídico age engessado a um sentido já atribuído, símbolos pré-moldados que são aceitos como verdades absolutas.

Luiz Alberto Warat cunhou a expressão "sentido (senso) comum teórico" para explicar tal "fenômeno". Aduziu que o senso designa condições implícitas de criação e aplicação das verdades produzidas pelos operadores jurídicos. Os juristas, segundo Warat:

encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação [01].

O sentido (senso) comum teórico dos juristas tem perspectiva unilateral e onipotente de interpretação aos diferentes casos concretos. Isso enseja a "reprodução" de postulados, caracterizando-os como verdades absolutas, de aceitabilidade obrigatória.

Esses postulados adquirem um caráter metafísico formado por signos prontos, sem a adequada verificação da realidade. São emaranhados de textos, "entidades" intertextuais formadas por enunciações jurídicas.

Com isso, forma-se uma para-linguagem que contribui para perpetuar "alguma realidade jurídica". Tal linguagem vem sendo usada pelo Estado como forma de dar continuidade a sua ideologia. Como criador do Direito, o Estado fica adstrito aos instrumentos lógicos e as representações ideológicas, sociais e funcionais que propiciam as fantasias da verdade e da realidade. Formam-se pré-noções que, teórica e praticamente, servem de instrumento para garantir a institucionalização da produção judicial a partir de um discurso jurídico dominante.

O senso comum teórico "estatal" não pretende produzir/construir conhecimentos sobre a realidade social, quer, por outro lado, proporcionar a subsistência da idéia de segurança jurídica, fechando o espaço crítico de maneira que a "produção" fique sob a exclusividade do "técnico legislador" que é, na verdade, um operador ideológico.

A formação do senso comum teórico, então, deve-se à tentativa de institucionalizar a produção normativa e, conseqüentemente, seus efeitos na sociedade. Dessa forma, o Estado - como detentor do poder de criar normas/linguagens – amputa a capacidade interpretativa dos operadores jurídicos, impondo, mascaradamente, sua ideologia.

Ao instituir institutos jurídicos, o poder dominante se utiliza de um conjunto de crenças, fetiches e hábitos para "administrar" as comunidades, estatizando o mundo, sufocando as possibilidades interpretativas através de uma racionalidade positivista que atua conforme os mandamentos políticos-econômicos-governamentais.

O controle da produção dos discursos jurídicos, como salienta Warat [02]: "fica preso em cofres de sete chaves". São discursos imprecisos e enigmáticos que guardam uma enorme carga ideológica mascarada pela letra da lei.

A lei é usada como forma de dominação, uma ilusão de igualdade num Estado de Direito garantidor. É uma utopia perfeita expressada por um sistema de significações.

O Estado de Direito, caracterizado pela neutralidade axiológica de Hans Kelsen, condiciona o "eu", ficando preso ao mundo das crenças sociais. Fixa-se um sentido totalitário que nega o novo com uma verdadeira aversão às mudanças sociais.

Essas vozes morais, impregnadas na lei, manipulam e padronizam desejos. O discurso jurídico é o dono da perfeição, atua no psicológico coletivo, não como instrumento de transformação social, mas para favorecer identidades fragmentadas de um saber instituído. Escamoteia-se, dessa forma, o processo de compreensão, criando a idéia de segurança coletiva no imaginário humano.

Esse domínio psíquico-coletivo obstaculiza a criação de novos sentidos. O saber jurídico fica inerte e mecânico, os paradigmas se tornam insuperáveis e impedem uma "reação social".

O modelo positivista de Kelsen - somado à metafísica Aristotélica e aos ideais iluministas da "razão pura" - gerou uma dependência do Direito, condicionando o mundo jurídico a entidades pré-constituídas (presentes na lei) que são encaradas como verdades perfeitas, puras.

Baseando-se num raciocínio silogístico, estabelecendo como uma de suas premissas o senso comum teórico, a dogmática jurídica aparece como uma das formas de interpretação/aplicação mais usadas no Direito. Os juristas – adeptos a tal escola – acreditam num Direito estático que não pode sofrer qualquer mudança senão pelas mãos do legislador.

As regras metodológicas e os instrumentos lógicos da dogmática – comumente utilizados pelos legisladores - escondem um (in)consciente que constitui verdadeira servidão às ideologias do poder de Estado. As razões são substituídas pela ordem ideológica de crenças que preservam a política do Estado e, por conseqüência, do Direito.

Dessarte, o poder dominante utiliza-se da dogmática como um instrumento de aplicação do Direito, trabalhando tão-somente com normas instituídas que, na verdade, são entidades/discursos planejados para a continuação do domínio-coletivo (inconsciente).

Streck [03] chama esse discurso dogmático de "fetichização do discurso jurídico", explicando que, por meio de tal discurso, "a lei passa a ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstraída das condições (de produção) que a engendraram, como se a sua condição-de-lei fosse uma propriedade natural".

O processo interpretativo/hermenêutico fica, assim, adstrito à reprodução de postulados metafísicos, fetiches inquestionáveis advindos do poder dominante, sem investigações.

O discurso jurídico atual, dessa forma, representa uma falta de investigação acerca das entidades jurídicas existentes, ocasionada pela combinação: senso comum teórico e dogmática.

Nesse diapasão, a Ciência do Direito, apoiada na referência/binômio "lei e ordem", participa da criação normativa e do controle coercitivo, como forma de "organização social". Ela ajuda a deslocar os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-os quase invisíveis aos olhos da sociedade.

Angariada na herança iluminista a ciência jurídica (saber jurídico) apregoa a racionalidade, o "ser" metafísico, como forma de garantir o poder e governar a produção de entidades jurídicas.

Tal ciência se comunica através de signos, com significados ilusórios gerados por um senso comum que ignora a realidade. A função de tais significados é tão-somente o "fazer crer" social, ou seja, produzir a linguagem "segura" do direito.

Essa linguagem, definida por Warat como linguagem oficial,

se integra com significados tranqüilizadores, representações que têm como efeito impedir uma ampla reflexão sobre nossa experiência sócio-política. Idéias dispersas e efeitos fabuladores que contêm omissões intencionais sobre o saber jurídico, a lei e o poder [04].

Destarte, o Estado como detentor do poder de "dizer o Direito" é, conseqüentemente, o produtor da linguagem acima referida. Trata-se de uma produção mística, indutora de pensamento, apoiada no discurso de disciplina social e vigilância, censurando o imaginário das pessoas para formar/constituir uma cultura oficial.

Isso é produzir senso comum, ambientes subjetivos, modelados pela instituição social que amputa as possibilidades interpretativas de justiça.

O pensamento jurídico, consoante Warat [05], "omite manifestar-se sobre os modos em que a gramática de produção, circulação e recepção de seus discursos desvincula as verdades que constrói de sua realidade política", visto que a racionalidade do saber jurídico e, por óbvio, da lei impõem interesses obscuros e discretos de desejos e submissões. Nesse ponto se localiza a "razão" do Estado, pois com o saber jurídico e com a lei positiva ele impõe interesses e desejos coletivos (agora legalizados).

Produzir e reproduzir linguagem oficial (discurso) é o objetivo estatal para vigiar e disciplinar as condutas humanas. O Estado é um "ente", integrado por relação de poder e espaço político, que opera mistificando discursos, censurando e manipulando o imaginário coletivo. Tem-se, assim, uma relação intertextual totalitária que estatiza a cultura e normatiza os indivíduos, definindo em lei valores e sistemas hierárquicos.

O resultado disso é a vinculação a uma metafísica, vigorante no pensamento dogmático do Direito, que leva ao predomínio do método, da terceirização do Direito, entificando o ser.

Streck, em duras críticas a esse sistema, afirma que:

os operadores do Direito (professor, advogado, juiz, promotor, estudante de direito) se conforma(ra)m com aquilo que é (e, portanto, estava) pré-dito acerca do Direito na sociedade brasileira. Não ocorreu, pois, uma insurreição contra essa fala falada, submergindo o jurista no mundo de uma tradição inautêntica, onde os pré-juízos (inautênticos) provoca(ra)m um (enorme) prejuízo [06].

Essa fala falada, referida por Streck, vincula todo o ordenamento jurídico a mandamentos pré-constituídos. Impede-se, dessa forma, que o aplicador do Direito interprete a norma de acordo com o caso concreto posto em análise.

No Brasil, ainda vigora a (antiga) idéia do Estado de Direito, fruto da Revolução Francesa, ocorrida no séc. XIX, onde a burguesia insurgiu-se contra uma nobreza opressora e ilimitada. Àquela época, sentiu-se a necessidade de legalizar as condutas estatais, criando leis a partir dos conceitos advindos do período iluminista, quer dizer, o racionalismo deveria ser visto como a mola propulsora da natureza humana. Disso resultou a criação das entidades, do "ser" metafísico, estudado até meados do séc. XX pela filosofia da consciência.

O modo de fazer o direito no Brasil ainda é fruto da referida revolução. Não houve uma mudança de paradigma nas práticas jurídicas, o que resulta sérias conseqüências na sociedade, eis que indefesa frente à regulação estatal. Dito de outra forma, o Estado (ajudado pelo operador jurídico que ainda não saiu do séc. XIX) usa o Direito como instrumento de dominação (imposição) da sua linguagem. As entidades intertextuais (pode-se chamar de linguagens), proferidas pelo Estado, são criadas/aplicadas de forma que mantenham a regulação dos indivíduos.

Percebe-se que o senso comum teórico encontra conforto no cenário jurídico brasileiro, pois ele se dissemina em forma de entidades dotadas de essências próprias. Sempre atuante, ele compensa as chamadas lacunas do direito como se houvesse espaços a serem preenchidos por algum objeto. Nesse ponto, verifica-se a facilidade de regulação encontrada no Brasil, pois o Estado cria suas linguagens de dominação (locais secretos), gera senso comum teórico (dotado de ideologia) e "preenche" os espaços encontrados na sociedade (processos judiciais).

O processo judicial é tratado como um objeto, um "ser" incompleto que necessita de paradigmas metafísicos para se completar. Tais paradigmas são gerados sob a influência do senso comum teórico dos operadores jurídicos, que, (ainda) calcados na ficção da interpretação a partir da vontade do legislador ou espírito do legislador, monopolizam interpretações, fazendo justiça "à distância".

Seus discursos - entenda-se súmulas, ementas, acórdãos - são formulados e aplicados sem o conhecimento do caso concreto, sem viver o dia-a-dia da comunidade, suas crenças e seus costumes. Formam-se, apenas, idéias de "fidelidade à lei".

Tal fidelidade fica adstrita a aplicar leis criadas sem compreensão, e tão-pouco pré-compreensão, da atualidade. Como bem questiona Paulo de Tarso Brandão:

se é preciso contextualizar os institutos para uma perfeita compreensão sobre as causa que determinaram a sua existência, também é preciso que se renove sempre o olhar crítico para sua operação cotidiana, especialmente quando a realidade das Sociedades contemporâneas muda cada vez mais rapidamente.

Toda e qualquer mutação na concepção ou na realidade do Estado determina, necessariamente, a modificação, transformação, criação ou até extinção de institutos jurídicos [07].

Não se concebe (ou não se quer conceber) que a modernidade jurídica é latente no país. O modelo liberal-individualista entrou em crise e uma (nova) teoria jurídica pública faz-se necessária.

Sob uma perspectiva liberal-individualista-normativa os operadores jurídicos atuam influenciados pelos ideais pós-revolução francesa de legalidade e de segurança jurídica. Angariado nisso, o poder dominante transforma a linguagem, criando linguagens populares, ao alcance de seus dominados, moldando as aspirações sociais com leis. Quer dizer, as necessidades sociais são aquelas que o Estado quer e não as realmente necessárias. Tal instrumento ideológico (linguagem popular) aparece sob diversas roupagens: leis, decretos, programas sociais, programas televisivos, entre outros. Ingressa-se, assim, num universo silencioso, do discurso/linguagem que sabe tudo, que diz tudo.

Ainda não houve, mesmo após o advento do Estado Democrático de Direito, a necessária compreensão acerca da função social, da necessária viragem hermenêutica para combater paradigmas dominantes.

Streck [08] salienta que "presos às velhas práticas, mergulhados em um habitus (sentido comum teórico), os juristas continuaram seu labor cotidiano como se nada acontecera." É bem dizer que os juristas estão contaminados por tal senso comum, onde a tarefa interpretativa é simplesmente colocar no "mercado jurídico" um discurso já produzido, sem origens sociais e sem vinculação histórica.


3. O ESTADO BRASILEIRO NO TEMPO

A evolução do Estado brasileiro, hoje conhecido como Democrático de Direito, deu-se paralelamente ao desenvolvimento dos demais Estados do mundo. Desde o seu descobrimento o Brasil vem tentando acompanhar/adotar as estruturas e formas de governo dos países mais desenvolvidos.

Com efeito, as dificuldades foram (e são) enormes, eis que, além de ser um país novo (507 anos apenas), o Brasil ainda vive atrelado a velhos paradigmas que o levam à dependência das nações ricas. Essa regulação se deve a diversos motivos, alguns, de índole constitucional, serão aqui tratados.

A primeira Constituição do Brasil, de 1824, foi elaborada por um o Conselho de Estado, composto de dez membros, que tinha a finalidade de criar um texto constitucional para o "novo" país. Tal projeto foi apresentado a Dom Pedro I em dezembro de 1823. Seria a primeira Constituição Política do Império do Brasil.

A partir da Constituição Imperial até o ano de 1889 o Estado brasileiro esteve sob a forma de governo imperial. Tal Constituição estabeleceu um Estado centralizado, com grandes poderes nas mãos do imperador. A tripartição de poderes proposta por Montesquieu não foi inteiramente observada, eis que, além dos três poderes citados pelo filósofo (Executivo, Legislativo e Judiciário), a Constituição criou o poder Moderador. Por esta Constituição, o chefe do poder Executivo era também titular do dito poder, responsável, principalmente, pela manutenção da independência e equilíbrio harmônico dos demais poderes.

A monarquia constitucional do império, de cunho oligárquico, mas ainda com raízes absolutistas, durou cerca de 65 anos, caracterizando-se numa ausência de descentralização governamental e desintegração política. Foi um período marcado por fortes lutas dos liberais contra a centralização do poder e sufocamento das autonomias regionais. Ocorreram diversas rebeliões regionais como a Sabinada, Balaiada, entre outras que tentaram, por diversas vezes, implantar um regime federalista, com descentralização de poderes.

Em 1889 as forças descentralizadoras alcançam seus objetivos, tomam o poder e implantam o Federalismo como princípio constitucional de estruturação do Estado e a Democracia como regime político. As influências, nesse período, deixam de ser européias e passam a ser americanas. O pseudoparlamentarismo, de influência inglesa, do poder Moderador e Executivo passou a ser presidencialista americano.

A Constituição de 1891, segunda do Brasil, possuía os ideais liberais, com sistema republicano, forma de governo presidencial, forma federativa de Estado e, o mais importante, uma suprema corte que regulava a constitucionalidade dos atos do poder. Como salienta Bonavides:

Entrava o Brasil, por conseguinte, numa época constitucional em que pela vez primeira as instituições básicas do poder se conciliavam com a tradição continental hispânica, sobretudo com o modelo daquelas federações que, a exemplo da Argentina e do México, se haviam embebido na inspiração tutelar do constitucionalismo norte-americano [09].

Refere, ainda, o mesmo autor que "a ruptura com o modelo autocrático do absolutismo monárquico inspirou estabilidade jurídica vinculada ao conceito individualista de liberdade" [10].

A doutrina do Estado mínimo/negativo durou cerca de 40 anos, caracterizando-se, mormente, por haver uma separação entre Estado e Sociedade Civil - mediada pelo Direito -, por um controle de constitucionalidade de leis e atos do poder e por um Estado com papel reduzido, assegurando liberdade de atuação dos indivíduos.

Ocorre que o individualismo exacerbado gerou crise social, pois os ricos exploravam os pobres e não havia um Estado que regulasse esse comportamento. Foi uma época difícil para as classes pobres. Os coronéis – denominação dada aos ricos que exerciam poder em cada Estado-membro – atuavam com leis próprias, baseado na coerção da força. Os coronéis elegiam governadores, deputados e senadores, corrompendo eleições para se manterem no poder de seus Estados.

Por volta de 1930 a desmoralização dessas oligarquias somadas a necessidade de um Estado atuante, visto que as classes sociais se distanciavam cada vez mais, um líder civil (Getúlio Vargas) sobe ao poder voltado à questão social, ao Estado positivo, atuante ou, para alguns, providência. Há uma forte intervenção nos Estados-membros, limitando o poder dos governadores e desarmando os antigos coronéis.

No ano de 1934, inspirado na Constituição Mexicana de 1917 e na de Weimar de 1919, Getúlio promulga a primeira Constituição Social do Brasil. Ocorre uma nova ordem social, com novos princípios e direitos fundamentais, definindo a participação popular mediante o voto. Trata-se de um Estado Providência inclinado a garantir direitos individuais e sociais, principalmente os relativos à questão trabalhista, pois houve forte transformação da sociedade agrária em industrial após a Revolução Industrial do século XIX.

O período constitucional de 1934 foi transitório, de muitas desavenças ideológicas e políticas, principalmente no campo trabalhista, com greves e paralisações em transportes, comunicações e bancos. Surge o Partido Comunista, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), cujo Presidente de Honra era Luis Carlos Prestes, que reivindicavam, cada vez mais, a reforma agrária, a suspensão do pagamento da dívida externa, a nacionalização das empresas estrangeiras, dentre outros itens de caráter comunista.

O avanço popular foi grande, houve diversas manifestações, algumas sangrentas, o que acabou levando Getúlio a revogar a Constituição e outorgar outra em 1937, instituindo o chamado "Estado Novo". Esta nova Constituição (Polaca), de cunho ditatorial, reforçou o poder central com todo o Executivo e Legislativo em suas mãos. O Brasil atravessaria, assim, dois grandes momentos: uma ditadura baseada na força, em que a fonte de poder provém dos militares e atos de um governo alheio ao povo.

O Estado Novo decaiu com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, ao lado dos aliados, pois o país começou a lutar contra um regime militar (ditatorial) quando o próprio Brasil possuía tal regime. Assim, o Estado perdeu legitimidade, entrou em crise e teve seu fim em 1945.

Terminada a II grande Guerra o Brasil se redemocratizou, promulgando a Constituição de 1946. Foi um período de comoção mundial com os horrores praticados pelos nazistas, vendo-se, assim, a necessidade de uma nova ordem social. Essa Constituição foi baseada nas de 1891 e 1934, com maior conteúdo humano, valorizando os direitos naturais, da dignidade da pessoa humana. As atribuições do Poder Executivo foram drasticamente reduzidas, restabelecendo o equilíbrio dos três Poderes.

O homem reconciliou-se com o Estado, esquecendo o abstencionismo liberal do século XIX e dando ênfase ao Estado Providência. Como referem Streck e Bolzan:

A adjetivação pelo social pretende a correção do individualismo liberal por intermédio de garantias coletivas. Corrige-se o liberalismo clássico pela reunião do capitalismo com a busca do bem-estar social, fórmula geradora do welfare state neocapitalista no pós-Segunda Guerra Mundial [11].

Nesse período, sucedem crises políticas e conflitos de poderes que culminaram com uma reação militar. O golpe de 1964 não resultou, por logo, na elaboração de mais uma Constituição, eis que continuou valendo a Constituição de 1946, com as novas emendas. Até que em 1967 uma nova Constituição é promulgada (em tese), pois outorgada (na prática), com centralização no Executivo, legislando através de Decretos-lei e baseada na política da segurança nacional. Tal segurança era uma referência contra os governos de esquerda que avançavam no mundo amparados na extinta União Soviética. Com o mesmo viés ditatorial, em 17 de outubro de 1969, foi outorgada, por três ministros militares, uma nova carta, sob a aparência de emenda constitucional. A Constituição de 1969 apresentou um retrocesso político, se formos compará-la com a de 1967, pois cassou a autonomia administrativa das capitais e outros municípios, impôs restrições ao Poder Legislativo, validou o regime dos decretos-leis e ampliou as restrições em matéria de garantias individuais e sociais.

Finalmente, em 27 de novembro de 1985, pela emenda constitucional n.° 26, inserida na Constituição de 1967, foi convocada a ANC (Assembléia Nacional Constituinte), com a finalidade de criar um novo texto constitucional que refletisse a nova realidade social brasileira. Cuida-se de uma legitimação para que o Poder Constituinte Originário – sendo inicial, ilimitado e autônomo – exerça suas funções e constitua uma nova ordem constitucional.

Com efeito, após os horrores da Segunda Guerra Mundial houve a necessidade de rever o conceito de soberania estatal. Para tanto, foram retomadas as lições de Hans Kelsen, no sentido de encontrar um conceito mais relativo, opondo-se aos absolutistas de plantão nos regimes militares.

Separa-se, inicialmente, a ideologia da norma jurídica, formando um ordenamento jurídico apto a realizar as necessidades sociais através da simples lógica de aplicação, sem expressar nenhum conteúdo político-ideológico do poder dominante. O Estado passa a ser uma entidade eminentemente jurídica, com o fito de produzir e aplicar o Direito.

Foi criado, dessa forma, um sistema com escalonamento de normas, de forma que a Constituição Federal seja a expressão da norma fundamental, sendo fundamento último da validade das demais normas jurídicas. Quer dizer, a validade das demais normas jurídicas deve ser apurada pelo critério da subsunção Constitucional.

Tal subsunção cria uma relação de dependência onde uma norma anterior à Constituição só será aceita no ordenamento jurídico se for com ela compatível, hipótese em que será recepcionada. Por outro lado, todas as normas criadas após a promulgação da Constituição têm que passar pelo critério da subsunção, ou seja, o Direito regula a sua própria criação. Deveras, na dinamicidade jurídica, podemos dizer que uma norma só é válida porque foi produzida em conformidade com outra norma. Esse é o espírito do escalonamento, a norma que determina a produção é alta, enquanto que a produzida é baixa, e isso é condição de validade primeira. No ponto mais alto da escala coloca-se a Constituição, cuja função principal, para Kelsen [12]: "consiste em regular os órgãos e o procedimento da produção jurídica geral, ou seja, da legislação".

Com essa visão, no dia 05 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição da Republica Federativa do Brasil, trazendo consigo um sonho gerado em meio a crises sociais e governamentais. Seus pontos cruciais foram: a instituição do regime Democrático, antes banido pelo regime militar, e a declaração dos princípios fundamentais, dentre os quais, o da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III, CF).

O novo estado político trouxe, em sua substância, matéria pertinente aos direitos fundamentais e a estrutura de governo. Incorporou mandamentos tradicionais do início do século XX (direitos sociais) sem deixar de lado as necessidades prementes como proteção ao meio ambiente, possibilidade de intervenção econômica, entre outros.

A Constituição de 1988 assumiu um caráter nitidamente social, não só declarando como garantindo a proteção dos direitos, através dos chamados remédios constitucionais.

Além de social, a Constituição de 1988 é também liberal, assegurando direitos de expressão e reunião, de inviolabilidade do lar e da vida privada dos indivíduos. Na política, o poder Legislativo foi então valorizado, tendo suas funções ampliadas, podendo, inclusive, controlar algumas ações do Executivo.

O regime constitucional instaurado pela CF/88, ou seja, do moderno Estado Constitucional de Direito, preserva os mandamentos constitucionais frente a qualquer produto legislativo. Institui, baseada na doutrina Kelseniana, a perspectiva de validade e vigência das leis infraconstitucionais frente à Lei Maior.

Essa idéia de supremacia e rigidez constitucional salienta significativamente o trabalho dos Poderes Legislativo e Judiciário, pois não basta mais o aspecto formal de uma norma, mas, sim, sua eficácia substancial, eficácia no caso concreto. Trata-se de uma mudança de paradigma, do tradicional juspositivismo para uma espécie de garantismo, quando a relação de vinculação entre forma (validade) e substância (eficácia) deve ser de cortesia e cumplicidade. A produção legislativa deve observar a condição de possibilidade antes de emitir normas e o Judiciário assume o papel de efetivador de tais normas.

José Adércio Leite Sampaio bem salienta o crescimento do papel judiciário no Estado atual, dizendo que:

A existência de uma judicatura atuante, sobretudo na forma de tribunais especializados, decorreu, para alguns, da necessidade de equilibrar os incrementos de funções dos outros dois poderes, Legislativo e Executivo, com o crescimento do papel do Estado e, sobretudo, do welfare state [13].

Esse crescimento do papel do Judiciário ocorre nos Estados onde as necessidades sociais não foram atendidas em nenhum momento, a política do welfare state não aconteceu. No Brasil é assim, as promessas da modernidade não aconteceram e a desigualdade social aumenta a cada dia. Antonie Garapon conclui brilhantemente sobre a participação do Juiz na sociedade atual: "A justiça é responsável por realizar materialmente (substancialmente) a igualdade preconizada na Constituição e disfarçar o equilíbrio entre as partes" [14]. Para esse autor, o Juiz atua como um "Guardador de Promessas", eis que tudo passa pelas suas mãos num Estado desregulado internamente e regulado externamente.


4. AS DIRETRIZES PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 88

Com a instituição do Estado Democrático de Direito, a Constituição de 1988 estabeleceu um novo fundamento de validade (formal), representando uma quebra paradigmática no Direito brasileiro, tornando-se necessário investigar, também, a efetivação (material).

Nessa nova idéia constitucional, como havia de ser num Estado tão desigual, a Constituição de 1988 trouxe em seu bojo uma enorme gama de direitos e garantias. Já em seus primeiros artigos estabelece os princípios fundamentais a serem observados pela República Federativa do Brasil.

Tais princípios são interpretativos e integrativos, ou seja, auxiliam (devendo ser de observância obrigatória num Estado com tamanha desigualdade) os três poderes a atuarem administrativamente, na elaboração das leis e no trato judiciário.

Logo após os princípios fundamentais a Constituição Federal traz os direitos e garantias fundamentais (arts. 5° a 17°), segundo uma perspectiva moderna, com direitos individuais e coletivos, sociais, da nacionalidade, dos direitos políticos e dos partidos políticos que, em conjunto, são a base da construção dos demais ramos do Direito.

O Estado brasileiro compromete-se, ainda, consoante artigo 170, com a função social, enunciando os princípios regedores da ordem econômica, entre eles o da função social da propriedade e da redução das desigualdades sociais. E reforça tais princípios quando, no seu artigo 193, dispõe sobre a Ordem Social, cujo objetivo é o bem-estar e a justiça social.

Deveras, não adiantariam os enunciados constitucionais se o povo não tivesse armas para efetivar tais direitos. Para tanto, foram criados instrumentos capazes de ser a porta de acesso aos direitos. Paulo de Tarso Brandão divide esses instrumentos em dois grandes grupos:

a)Instrumentos políticos: são as ferramentas fornecidas pela Constituição, denominadas de Direitos Políticos, ou seja, os meios necessários ao exercício da soberania popular, como o direito ao voto e a participação popular;

b)Instrumentos jurídicos: são as ações, previstas na Constituição, que visam a tutelar interesses da coletividade, como a ação de inconstitucionalidade, o habeas corpus, o mandado de segurança, entre outros. Com efeito, os que mais interessam à sociedade são a ação popular, o mandado de segurança coletivo e o mandado de injunção, por dizerem respeito às coletividades [15].

A Constituição traz, também, inovando o ordenamento jurídico, os chamados direitos difusos. No artigo 170, inciso V, estabelece o princípio da defesa do consumidor (já declarado no artigo 5°, inciso XXXII), no artigo 225 enuncia que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, devendo protegê-lo para as presentes e futuras gerações, garante o exercício dos direitos culturais no artigo 215, entre outros artigos espalhados na Constituição.

Cuida-se, indubitavelmente, de uma Constituição principiológica, pois contém inúmeras normas que definem a ação imediata e a orientação a ser seguida pelo Estado em prol do bem-estar social coletivo.

Com efeito, o certo é que o Estado Democrático de Direito trazido pela Constituição Cidadã - nome dado à Constituição de 1988 por Ulysses Guimarães - tem como tarefa fundamental superar as desigualdades sociais e fazer valer a democracia, realizando, assim, a justiça social.


5. HERMENÊUTICA JURÍDICA

Hermenêutica é, segundo maioria doutrinária, a teoria ou a arte de interpretar textos. Sua essência surgiu na Grécia antiga, representada pelo verbo hermeneuein (interpretar) e pelo substantivo hermenèia (interpretação). Indubitavelmente, sua origem etimológica remete à mitologia grega, mais especificamente ao Deus mensageiro Hermes que assumiu, perante Zeus, a função de conselheiro e mensageiro, por ser apto a mediar conversas e ter livre trânsito entre o mundo dos deuses e o dos homens.

A hermenêutica preocupou-se, àquela época, em decifrar mitos, identificar elementos simbólicos de um povo e compreender obras de arte. Posteriormente, já como filosofia, possuindo feições jurídica, bíblica e literária, teve grande êxito quando apregoou que para alcançar a verdade de um texto era preciso interpretá-lo.

Contemporaneamente, a hermenêutica, libertada do caráter dogmático, é um posicionamento interpretativo frente aos problemas do ser e da sua compreensão.

Neste ponto a linguagem adquire papel fundamental, mormente após a conhecida virada lingüística (linguistic turn) que se deu no século XX, eis que, ao invés de apresentar uma lógica textual, de signos, a hermenêutica passou a tentar compreender o acontecimento diário, em sua universalidade, para explicar as relações entre texto e mundo fático.

Vale citar, nesse contexto, as palavras de Carlos Artidorio Allegretti [16]: "hermenêutica, como arte de interpretar textos e de descobrir significados, remonta aos primórdios da filosofia, na Grécia antiga. Contemporaneamente, hermenêutica é o estudo da compreensão, é essencialmente a tarefa de compreender textos."

Tal tarefa constitui-se em mover-se na interpretação, de forma que o intérprete não fique preso a um pré-conceito, a um pré-juízo, e que descubra, com a força da atualidade, o significado do texto naquele contexto.

Atualmente, espera-se que a hermenêutica, em suas inúmeras caras: teológica, histórica, científica, filosófica, jurídica, analise os textos na sua integralidade, libertando-se de pré-compreensões, ou melhor, apenas usando-as para interpretar, compreender e, por fim, aplicar.

5.1 HERMENÊUTICA TRADICIONAL/CLÁSSICA

A primeira preocupação com a hermenêutica se deu por um filósofo e teólogo alemão chamado Friedrich Ernest Daniel Schleiermacher que buscou, fundamentalmente, libertar a hermenêutica da ligação com a leitura bíblica.

Aproveitando-se do horizonte protestante exarado pelas idéias de Lutero, Schleiermacher transportou a hermenêutica para além do universo teológico, rumo a universalidade. Para a dita reforma protestante, o sentido literal do texto bíblico já continha uma significação espiritual que só poderia ser captada por aquele que vivenciasse a mensagem de transformação. Em outras palavras, Lutero transferiu a imagem da retórica clássica para o procedimento da compreensão, desenvolvendo um princípio geral de interpretação, segundo o qual toda a individualidade do texto deve ser compreendida a partir do contexto em que está inserido.

O protestantismo de Lutero inspirou a libertação da dogmática reguladora das classes dominantes até então vigentes. Desenvolvendo-se como filosofia, a hermenêutica chega a um processo mais articulado, na medida em que as influências do mundo real e atual passam a influir na interpretação.

Schleiermacher atuou no período conhecido como romantismo, no século XIX, que expressava um apego à perfeição. Para esse autor, a hermenêutica é, acima de tudo, uma ciência articulada e com lógica coerente que descreve as condições para compreender a partir da análise dos discursos e da comunicação.

Diferentemente de Lutero, Schleiermacher não buscou a unidade da hermenêutica a que se deveria aplicar a compreensão, mas, sim, procurou a unidade de um procedimento que abarcaria texto e oralidade, mesmo em línguas diferentes. Ou seja, não se teria uma hermenêutica geral, mas uma pluralidade de hermenêuticas especializadas como bíblica, jurídica, clássica, etc.

Outro expoente da hermenêutica clássica foi Wihelm Dilthey, alemão protestante, que trabalhou sobre as teses de Schleiermacher, direcionando-as para as ciências do espírito, buscando a construção de uma teoria objetivamente comprovável, de uma episteme.

Dilthey queria comprovar os fundamentos hermenêuticos com a experiência histórica, a partir da experiência da evolução humana. Queria, segundo Gadamer:

Estabelecer como meta construir um novo fundamento epistemológico sólido, entre a experiência histórica e a herança idealista da escola histórica. O sentido de seu propósito é completar a crítica da razão pura kantiana com uma crítica da razão histórica [17].

Para melhor compreensão, Dilthey separa as ciências do espírito das ciências da natureza, pois acredita que a natureza histórica tem capacidade para explicar e a do espírito para compreender. Assim agindo, o autor chega a uma liberação da hermenêutica da ciência natural, pois para compreender uma certa realidade é preciso identificar o indivíduo no tempo e no espaço.

Percebe-se que as preocupações de Dilthey, assim como as de Schleiermacher, eram nitidamente objetivistas, pois para compreender, mesmo considerando a perspectiva histórica, era preciso descobrir um verdadeiro sentido do texto, de forma a evitar um mal-entendido.

Fica-se, dessa forma, preso ao paradigma da verdade absoluta, de matriz científica que passará a ser criticado mais tarde, quando as preocupações hermenêuticas aprofundam o debate sobre a possibilidade de conhecimento, de verdades e validades.

Tais teorias, por serem amplas e tentarem criar um sentido universal para a hermenêutica, abarcaram também as ciências jurídicas. O direito passou a ter um viés normativista clássico, afirmando que o direito serve para regular as relações sociais que, através de normas, asseguram o bem comum.

Vê-se essa situação claramente no direito romano onde a hermenêutica preocupava-se em interpretar o texto em sua literalidade, isolado à questão social então vigente. Talvez, por tal razão, tenham sido grandes no direito privado, mas pouco desenvolveram nas questões públicas.

Já no século XVII, com as idéias renascentistas, aparece uma nova forma de ver o Estado e o direito. A Revolução Francesa, culminada em 1789, instalou definitivamente os ideais iluministas do direito natural de cunho exclusivamente racional. Àquela época surgiram diversas Declarações de Direitos, Constituições e Códigos.

Era o auge da Escola da Exegese, que trabalhava a lei – representada em textos - como única fonte de Direito. Formaram-se, nessa ocasião, as idéias de postulados verdadeiros que resolveriam questões atuais e futuras, cabendo tão-somente ao jurista interpretar o texto buscando a "vontade do legislador" e o "espírito da lei".

5.2 HERMENÊUTICA CRÍTICA

A Revolução Francesa, sem dúvida, foi um marco histórico para as concepções de Estado e de Direito. A queda do absolutismo e dos poderes despóticos deu início ao Estado de Direito, de feição negativa, que não deveria intervir nas relações individuais, provendo o povo de liberdade. Surge, assim, um processo de adequação e elaboração de leis que deveriam ser respeitadas não só pelo povo, mas também pelo Estado.

A combinação desses dois grandes acontecimentos, Revolução Francesa e Codificação Legislativa, fez surgir a Escola da Exegese que acreditava piamente que todas as relações da vida presente e futura poderiam ser transferidas para o texto formal. Quer dizer, todos os problemas sociais estavam previstos e poderiam ser resolvidos pela lei, fruto da vontade do legislador.

A Escola, segundo Reale [18], cria que: "Toda lei tem um significado e um alcance que não são dados pelo arbítrio imaginoso do intérprete, mas são, ao contrario, revelados pelo exame imparcial do texto."

Dessa forma, a corrente Exegética acreditava na formação de um método que pudesse ser empregado nas diversas circunstâncias. O culto ao formalismo e a segurança jurídica era praticado através de premissas tidas como verdadeiras, com significados unívocos, cabendo tão-somente ao intérprete invocar o espírito do legislador ou a vontade da lei.

Doutro lado, em clara oposição à Escola da Exegese, surge a Escola Histórica, proposta por Savigny, que se caracterizou por ser um movimento antidogmático. Assim como a Escola da Exegese, também acreditava num direito positivo, porém, não se resumia a um simples Código, mas, sim, seria formado pelos costumes e pelo Direito Romano. Essa Escola via o Direito através da história do povo, quer dizer, o Direito não pode ficar preso a uma lei, tem que se originar e mudar a partir da história do povo.

As idéias da Escola Histórica tentam fugir de um apego ao Código "que tudo tem" e "tudo pode prever", buscando somar o texto legal com o contexto histórico para fazer e aplicar o Direito. Todavia, em primeiro lugar teria que se fazer a mesma busca Exegética, da vontade do legislador, para depois adequar as necessidades atuais.

Ocorre que esse movimento teve forte influência ideológica, pois buscava no passado um caminho para compreender o presente. Isso levou ao apego ao texto do passado, transformando-o em paradigma onde os acontecimentos sociais ficavam em segundo plano, tão-somente como parâmetros interpretativos.

Com o intuito de combater essa idéia de "espírito do legislador" surge a Escola da Livre Investigação Científica que buscou provar que a lei não era uma lógica que tudo previa. Privilegiou-se a interpretação que não mais era tão-só buscar o espírito do legislador, mas, também, desvendar a essência escondida na norma editada. Trata-se de uma fusão entre texto, espírito do legislador e fato social, para que o intérprete, subjetivamente, aplicasse o melhor Direito.

A inovação dessa Escola ficou por conta da liberdade do intérprete em preencher lacunas a partir de pesquisas científicas, podendo abarcar, inclusive, analogia, costumes e princípios gerais de direito. Todavia, tudo dentro do previsto na lei, numa escala hierárquica, tal como encontramos hoje no artigo 4° da Lei de Introdução ao Código Civil [19].

Na mesma senda da investigação científica, para descobrir/aplicar o direito, surge a Escola Sociológica, caracterizada pela preocupação dos elementos sociais e ideológicos que estavam por trás das normas jurídicas. Seu método baseava-se na observação, experimentação e comparação de dados.

Cuida-se de um método diferente do positivismo normativista, pois privilegia fatos sociais, penetrando (ou tentando penetrar) no plano real, de onde surgem as normas. O texto seria algo intacto que poderia morrer se não fosse interpretado, observado, experimentado com os acontecimentos atuais.

Finalmente, insurgindo-se contra a lógica do Direito positivo, numa contestação clara à letra da lei, surge a Escola do Direito Livre, defendendo a idéia de que o melhor Direito seria o que vem dos grupos sociais e não o posto pelo Estado.

Para essa Escola, o juiz é como um legislador em pequena escala, na esfera do caso concreto, eis que traça a solução não nos textos legais, mas na realidade social, mormente se houver lacunas. Também utiliza uma lógica pré-elaborada, com premissas que alcançariam o ideal de justiça. Primeiramente, busca a norma para o caso concreto, valendo-se da realidade social e, depois, uma fundamentação legal.

Deveras, como bem cita Allegretti, essa hermenêutica não prescinde de uma linha metodológica, sendo que:

a) se o texto da lei é claro e unívoco e sua aplicação não fere os sentimentos da comunidade, deve ser aplicado;

b) se o texto legal não oferece solução prática, ou conduz a uma decisão injusta, o juiz ditará sua sentença segundo sua convicção (o juiz dirá o que o legislador diria se tivesse pensando no caso);

c) se o juiz não puder formar sua convicção sobre como o legislador resolveria o caso concreto, deve inspirar-se no direito livre, vale dizer, no sentimento da coletividade; se ainda não encontrar inspiração nesse sentimento, resolverá, então, o caso discricionariamente [20].

Assim, a Escola queria tirar das costas da lei o peso de todas as decisões, eliminando postulados atrasados, adequando o texto à realidade social então vigente. A atividade interpretativa ficava livre para a criação, passando a antiga interpretação da vontade do legislador para a vontade do juiz, o que não deixou de criar novos fetiches jurídicos.

A Escola do Livre Direito, embora tenha sido mais desapegada ao texto da lei, apresentou, como em todas as outras Escolas, métodos hermenêuticos para explicar seus ideais de justiça.

O primeiro método de que se tem notícia e que foi trabalhado em todas as Escolas, foi o clássico, ou tradicional, intrinsecamente ligado a Roma e ao Direito Privado, no qual busca interpretar a norma a partir de um sistema positivo, escrito em Códigos. Tal método foi dividido em quatro segmentos: o gramatical, o lógico, o teleológico e o sistemático.

O segmento/método gramatical foi desenvolvido em Roma pelos Glosadores, buscando na interpretação o exato teor da lei, através do seu sentido literal. As palavras teriam sentido unívoco, cabendo ao intérprete descobri-lo, mas sem recorrer a outras fontes que não fossem os textos legais.

O método lógico passou a analisar a lei mais profundamente, buscando a investigar a sua vontade. Consiste em buscar o sentido das expressões do Direito, mas sem recorrer a outras fontes, para aplicar no caso concreto utilizando uma metodologia dedutiva, a partir de premissas encontradas na própria lei e combinando-as entre si, com o escopo de atingir a perfeita compatibilidade. Nesse método, o Direito fica reduzido a silogismos, afastando o Direito da realidade social e da coletividade.

Já o método teleológico busca a finalidade da lei, ou melhor, para qual fim aquela norma foi criada para depois determinar seu sentido. A ratio da lei foi elevada ao máximo e o legislador terá que prever situações futuras, isto é, desde o passado – quando a lei foi criada – o legislador regularia finalisticamente todas as situações futuras.

Por fim, o método sistemático propôs um raciocínio inverso ao teleológico, não considerando a norma isoladamente para buscar seu fim, mas a vendo como parte de um todo, de um sistema. A norma faz parte de um contexto jurídico maior, possibilitando ao intérprete descobrir o sentido e alcance de cada norma enquanto inserida em todo o ordenamento. Em outras palavras, cada norma, antes de ser aplicada, teria que ser analisada sistematicamente, frente a todas as outras normas jurídicas, para, assim, descobrir seu real sentido e aplicá-la corretamente.

Por certo que todas as Escolas do Direito, com suas variantes interpretativas, contribuíram para o amadurecimento do operador jurídico. O intérprete saiu da inércia romanística, de apenas olhar o texto positivo, e passou a analisá-lo no contexto social em que está inserido.

Todavia, o que se viu no desenvolver da hermenêutica é que a mesma ficou sempre presa no Direito Positivo, de origem Estatal, alcançando em pequenas hipóteses a doutrina, a jurisprudência e os costumes.

Essa visão ocasionou um apego aos métodos para solucionar os problemas, quer dizer, para todo problema que surgir tem-se um método a ser seguido para solucioná-lo. Isso é observado em todas as Escolas, umas com maior saliência, porém, em todas existe um método, uma lógica.

Ocorre que, atualmente, a utilização de métodos não tem alcançado a justiça no caso concreto. A prisão à metafísica tem gerado alguns problemas, senão vejamos:

a) legislativos - com leis tentando regular todas as situações diárias e futuras, sendo fonte do que pode e do que não pode fazer;

b) doutrinários - os manuais jurídicos definiram, em algum dia, conceitos e definições que nunca mudam, prevendo (ou tentando prever) situações futuras;

c) operador jurídico - sai da Universidade extremamente formalista, vendo na dogmática a resposta para todos os processos judiciais.

Tais questões vêm sendo fortemente discutidas entre operadores jurídicos, filósofos e outros interessados no assunto. Procura-se, hoje, sair do dogmatismo, quebrar paradigmas, ver o que não está escrito, sem tentar adivinhar o que o legislador queria quando escreveu a norma, mas, sim, o que se pode fazer com aquela norma para concretizar a justiça.

Essas indagações são o marco inicial para uma nova visão do Direito, eis que não se resolve nenhum problema sem, em primeiro lugar, conhecê-lo, e esses paradigmas tentarão ser superados pela hermenêutica filosófica.


6. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

Com o intuito de romper a carapaça ideológica até então vigente, da interpretação clássica reprodutiva, Martin Heidegger, filósofo alemão, edita sua obra Ser e Tempo (1927), inaugurando uma nova forma de ver a hermenêutica, a partir da faticidade, ou seja, é preciso verificar, antes de interpretar, a própria condição de ser-no-mundo.

Heidegger passa a enfocar o ser enquanto ser e não mais os fundamentos epistemológicos das ciências humanas até então tratados. Orienta seus estudos a partir da ontologia e não mais pela epistemologia, inserindo filosofia na questão hermenêutica.

O ilustre filósofo alemão propôs uma verdadeira superação da cultura/visão objetivista que predominava até meados do século passado. Hans-Georg Gadamer, discípulo mais ferrenho de Heidegger, chama a atenção de que:

Com isso conquista-se a idéia da "fenomenologia", ou seja, a desvinculação de toda posição do ser e a investigação dos modos subjetivos de as coisas se darem, transformando-a num programa universal de trabalho que deveria permitir a compreensão de toda objetividade, de todo sentido do ser. Agora, também a subjetividade humana possui validez ontológica. Também ela deve ser vista como "fenômeno", ou seja, deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de doação [21].

Na verdade, Heidegger quer interpretar a partir da vida, na posição anterior à objetividade da ciência. Isso leva a faticidade da pré-sença, ponto de partida da ontologia fundamental do filósofo.

Essa base ontológica ressuscita o tema do ser, deixando a metafísica de lado e passando a compreender as coisas enquanto elas mesmas. Como salienta Streck [22]: "a compreensão é entendida como a estrutura ontológica do Dasein (ser-aí ou pré-sença), onde o Da (o aí) é como as coisas, ao aparecerem, chegam ao ser, não sendo esse modo uma propriedade do ser, mas, sim, o próprio ser".

Quer dizer, a compreensão deixa de ser a simples observação do sujeito e seu objeto, passando a ser a relação entre sujeito e sujeito, a partir de sua condição histórica. Há uma fusão entre sujeito e objeto onde a produção substitui a reprodução, com o uso da linguagem.

Nesse contexto que Heidegger propõe/provoca um deslocamento da hermenêutica, revelando que pela compreensão, pela historicidade e pela linguagem se consegue quebrar os paradigmas das condições prévias nas interpretações de textos, inserindo pensamento e atividade humana no processo interpretativo. Gadamer [23] enfatiza que: "não há compreensão ou interpretação que não implique a totalidade dessa estrutura existencial, mesmo que a intenção do conhecedor seja apenas ler "o que está aí" e extrair das fontes "como realmente foi".

Percebe-se que o método proposto por Heidegger não se trata de um método como procedimento formalista, mas, sim, algo que está sob constante revisão/evolução, na medida em que existam exigências de cada caso, de tal modo que todo o pensamento pode ser considerado uma interpretação, pois desenvolve uma dimensão prévia: a existencial.

Ao analisar tal método, Ernildo Stein enfatiza que:

Agora o compreender é um compreender que se constitui como totalidade, porque é compreender o mundo, mas não de um mundo como um continente de conteúdos, mas de um mundo que é a própria transcendência. Este mundo ao mesmo tempo somos nós e projetamos sobre tudo o que deve se dar. [...] Estamos envolvidos com os objetos do mundo e descrevemos o mundo no qual se dão os objetos [24].

Essa é a principal característica da "nova" hermenêutica proposta por Heidegger e seguida por Gadamer. Enquanto as hermenêuticas clássica e crítica se ocupavam em interpretar textos prontos, postos por escritores, por vezes, há muito falecidos, a filosófica propõe uma nova visão de mundo, ou melhor, de estar no mundo.

A hermenêutica filosófica traz, portanto, uma nova forma de compreender, não mais como modo de conhecer, mas como modo de ser. Observa-se, em Heidegger, que não há mais aquela compreensão pura - defendida pelos clássicos -, da busca do espírito do texto ou das intenções de quem fez o texto, mas, sim, uma compreensão ligada às condições e ao modo de ser-no-mundo, da faticidade.

6.1 A VIRAGEM LINGÜÍSTICA: INTERPRETAR É COMPREENDER

Antes de adentrar na questão da viragem lingüística, ocorrida por volta dos anos de 1958 a 1960, cumpre analisar o Direito como forma de linguagem.

Comunicação é interação, é produzir mensagens da melhor forma possível para ser entendido. Tais mensagens constituem-se em signos que possuem seus respectivos significados na medida e ocasião em que são usados.

Assim se dá com a linguagem, eis que esta é o meio com o qual pessoas se comunicam. A linguagem é formada por inúmeros signos que formam significados. Essa é a conclusão de Wiliam Alston [25] ao aduzir que: "O signo é um sinal, integrado a um código de sinais que é a língua, que traduz a união de uma imagem acústica (o significante) a um conceito (o significado)".

No Direito, os signos são produzidos em forma de leis e seus significados são desvelados na medida em que a lei é aplicada. Pode-se dizer, dessa forma, que as leis são signos latentes que terão, através da linguagem, seus significados desvendados.

A linguagem no Direito é encontrada facilmente em postulados jurídicos, como a linguagem do silêncio, que implica liberdade; a linguagem da legalidade, encontrada, principalmente, no inciso III, do artigo 5° [26], da nossa Constituição Federal, entre outros inúmeros exemplos. Sem linguagem a vida social e, conseqüentemente, a vida jurídica não existiriam. É de Aristóteles [27] a idéia de que o homem é um animal cuja vida se desenrola na comunidade política. Questiona-se: como haver comunidade política sem comunicação? Além disso, como haver comunicação sem linguagem?

A questão lingüística ganhou maior importância a partir do século XX, quando passou a ser vista como condição de acesso ao mundo. A partir de Heidegger houve uma reviravolta no seu uso, mormente no universo jurídico, quando deixou de ser considerada como meio entre sujeito e objeto, passando a assumir a condição de existência do intérprete, quer dizer, o intérprete é alguém inserido na linguagem.

A viragem lingüística se desenvolveu, fundamentalmente, em três fases:

a) a primeira fase é fruto do neopositivismo lógico, oriundo do Círculo de Viena [28], que tinha como escopo à construção de uma linguagem ideal;

b) a segunda etapa foi caracterizada pelo abandono do ideal de exatidão da linguagem;

c) a terceira etapa foi, e ainda é, voltada para o estudo da filosofia da linguagem.

Após a viragem, passou-se a entender a linguagem como um meio universal para compreender, pois pela linguagem há comunicação, interpretação e, conseqüentemente, compreensão. Gadamer [29] chega a afirmar que: "Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete".

Viragem significa mudança, alteração no modo de ver as coisas, os procedimentos. A partir da viragem lingüística foi possível transferir todo o conhecimento para a linguagem. Quer dizer, esta passou a ser condição de possibilidade para conhecer o ser, pois, como refere Gadamer: "Ser que pode ser compreendido é linguagem". Tal guinada lingüística libertou o conhecimento da pré-compreensão, dos paradigmas e das teorias da consciência.

Nessa senda, a hermenêutica, agora da linguagem, teve um salto na sua importância e no seu significado. Antes vista como meio para entender poemas gregos, para interpretar textos sagrados e para desvendar o sentido dos textos jurídicos, ela passou a se ocupar em compreender, interpretar para, no mesmo tempo, aplicar.

Gadamer afirma que a linguagem, além de ser condição de possibilidade para romper paradigmas, representa experiência humana no mundo e é onde a hermenêutica encontra base para se sustentar. O mesmo autor assegura que:

Na linguagem representa-se o próprio mundo. A experiência lingüística do mundo é absoluta. Ultrapassa toda relatividade do ‘pôr’ o ser, porque abrange todo o ser em si, pouco importa em que relações (relatividades) se mostra. A lingüisticidade da nossa experiência do mundo precede a tudo quanto pode ser reconhecido e interpretado como ente [30].

Deveras, o mundo, o conhecimento e os objetos não podem ser objetos da linguagem, pelo contrário, tudo isso é abrangido/englobado pelo horizonte lingüístico, pelo mundo da linguagem.

Nesse ponto encontra-se o grande diferencial hermenêutico depois que ocorreu a viragem lingüística, pois agora não existe mais paradigmas, pré-juízos imutáveis, tendo em vista que o mundo, feito pela linguagem acontece a cada dia, sem existir a mínima possibilidade de repetições.

Assim, conforme visto anteriormente, o Direito é, também, linguagem, é comunicação social que acontece a cada dia. Não existe um mundo do Direito que possa ser pré-constituído e imutável, assim como não existe um mundo inalterável. Em suma, tudo pode ser revisto e compreendido pela linguagem.

6.2 O CÍRCULO HERMENÊUTICO

A questão interpretativa, proposta pela hermenêutica filosófica, impõe que o intérprete tenha conhecimento do chamado círculo hermenêutico que está, umbilicalmente, ligado à idéia de pré-compreensão.

O círculo trabalha, inicialmente, com a pré-compreensão, ou seja, o momento anterior à confirmação do sentido que advém da historicidade, da pré-sença. Esta seria o ponto de partida para o processo compreensivo que culmina com o desvelamento do sentido.

Essa é a questão mais trabalhada a partir de Heidegger, no que tange a compreensão das coisas, dos seus significados ontológicos, pois antes disso falava-se apenas em círculo de interpretação textual.

O círculo hermenêutico, a partir de Heidegger e Gadamer, trabalha com a condição de ser-no-mundo, ou seja, com a pré-sença, através da pré-compreensão para, posteriormente, através da linguagem, interpretar os acontecimentos e compreendê-los, numa relação sujeito-sujeito onde os objetos serão criados/modificados pelo próprio ser que, por fim, lhe dará sentido.

Tal processo significa um eterno retorno circular, onde o mundo (ou texto) será constantemente alterado em razão das circunstâncias diárias e isso se dá através da linguagem que, consoante visto anteriormente, é condição de possibilidade de acesso ao mundo.

Dessa forma, vê-se que é absolutamente impossível existirem casos iguais, sendo, também, impossível, como salienta Allegretti [31]: "nos banharmos duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio. No momento seguinte, não seremos mais os mesmos, nem o rio será o mesmo."

Isso nos dá a exata idéia da compreensão do ser em Heidegger, pois, para este autor, a compreensão nada mais é do que a compreensão do sentido naquele caso específico e não da forma como foi compreendido em casos anteriores. E essa nova compreensão nos dará uma pré-compreensão para casos posteriores onde teremos novos sentidos e novas compreensões.

Ernildo Stein faz uma análise das mudanças geradas pelo desvelamento do círculo hermenêutico, referindo que:

Antes a hermenêutica era o compreender de textos, compreender determinados universos culturais, era, no fundo, um interpretar que tratava de objetos. Agora o compreender é um compreender que se constitui como totalidade, porque é um compreender do mundo, mas não de um mundo como um continente de conteúdos, mas de um mundo que é a própria transcendência. Este mundo ao mesmo tempo somos nós e projetamos sobre tudo o que deve se dar. Assim vai-se formar a chamada estrutura da circularidade. [...] Estamos envolvidos com os objetos do mundo e descrevemos o mundo no qual se dão os objetos [32].

Interpretar, assim, não é mais partir de um ponto zero, mas, de uma pré-compreensão que envolve a nossa própria relação com o mundo, com todo o texto. E esta pré-compreensão nos dará subsídios para compreender e, conseqüentemente, aplicar. Eis o círculo, algo que vai da pré-compreensão do todo para a compreensão das partes.

6.3 A APPLICATIO GADAMERIANA

Pelo que foi visto até agora, percebe-se que Gadamer preocupa-se em investigar o problema hermenêutico por um viés filosófico e não procedimental. Utiliza a hermenêutica como técnica para compreender, sendo a pré-compreensão a primeira das suas condições de possibilidade.

Ao intérprete cabe utilizar suas pré-compreensões que estão imersas nas tradições, adequadamente, sem ficar preso à pré-juízos, para interpretar e compreender. Para Gadamer a interpretação não é um ato posterior à compreensão, mas, sim, compreender é sempre interpretar, ou seja, as duas coisas acontecem ao mesmo tempo.

O próximo momento trabalhado por Gadamer é a aplicação, ou applicatio, que integra o processo hermenêutico, assim como a interpretação e a compreensão. Gadamer afirma que tudo, ou todo o texto, pode ser compreendido se o intérprete observar a circularidade interpretativa que abrange os três elementos já descritos: compreensão, interpretação e aplicação.

Em Gadamer, percebe-se que o problema metafísico está superado, não existindo um momento igual ao outro, eis que o texto não é compreendido uma única vez, mas a cada instante. Cada situação acontece de maneira distinta na medida em que o intérprete respeite o processo circular hermenêutico. Por isso, quando se chega à compreensão já está na hora de aplicar. Os dois elementos se dão ao mesmo tempo, sendo que quando se aplica já está sendo gerada uma nova pré-compreensão.

A importância da applicatio para o Direito advém não apenas da óbvia circunstância de que o operador jurídico está sempre preocupado com o problema a ser resolvido, mas também ao fato de que norma e caso estão ambos imersos no mundo da vida, da linguagem. Ou melhor, não há norma de "dever-ser" que possa ser primeiro estudada/compreendida para depois ser aplicada. Caso contrário, o intérprete ficaria, diante da norma jurídica, pensando em situações fictícias para conhecer objetos que seriam pré-moldados.

A essência, pois, da applicatio no Direito implica uma visão da norma jurídica que não a considere pronta e acabada. O intérprete realiza um papel importante, ficando à mercê da sempre necessária atuação diante do problema concreto, da esfera fática que circunda a espécie de situação a ser solucionada e da pré-compreensão que envolve o texto da norma.

Nessas circunstâncias a aplicação seria um segundo passo a ser dado após a interpretação, e esta era restrita às palavras da lei, aos pré-juízos, ficando a aplicação, dessa forma, presa a uma pré-compreensão.

Eis as palavras do próprio Gadamer:

Todo escrito é uma espécie de fala alienada, necessitando da reconversão de seus signos à fala e ao sentido. Essa reconversão se coloca como o verdadeiro sentido hermenêutico, uma vez que através da escrita o sentido sofre uma espécie de auto-alienação [33].

Por isso, o mesmo autor [34] diz que: "O horizonte de sentido da compreensão não pode ser realmente limitado pelo que tinha em mente originalmente o autor, nem pelo horizonte do destinatário para quem o texto foi originalmente escrito."

Essa é a tarefa da hermenêutica jurídica, fazer com que os operadores utilizem suas pré-compreensões para, a partir do caso concreto, interpretar e aplicar. A hermenêutica nos dá uma consciência crítica que, se observarmos o horizonte histórico em que estamos inseridos, não ficaremos presos a um conjunto de pré-conceitos dos quais precisamos nos libertar como seres históricos e fáticos que somos.

6.4 O ACONTECIMENTO CONSTITUCIONAL (EXISTÊNCIA E FATICIDADE)

É inegável que, nos últimos anos, o mundo, e por conseqüência o Brasil, é varrido por uma onda neoliberal, de defesa a um Estado mínimo com o acréscimo da regulação. A questão das funções do Estado e do Direito vêm sofrendo alterações significativas, necessitando uma (re)discussão, mormente no que se refere à realização da democracia e dos direitos fundamentais.

O discurso neoliberal de que o Brasil já passou pela modernidade, época em que os direitos fundamentais, principalmente os sociais, teriam sido efetivados é patente em nosso cotidiano. Contudo, vê-se, claramente, que paises periféricos como o Brasil não (e nunca) passaram pelo período moderno vivido pelos países desenvolvidos.

Com o advento da Revolução Francesa houve um rompimento com o Medievo, com as "leis descentralizadas", e implantado a figura do Estado, primeiro como Absolutista, depois como Liberal e, por fim, como Contemporâneo. Tais alterações foram fruto das necessidades e anseios sociais como se vê na transformação do Estado Liberal, com caráter negativo, para o Estado Social, com nítidas feições positivas.

Deveras, o Estado Social, para os neoliberais, foi um Estado que passou e desapareceu, sendo que, atualmente, o Estado simplesmente tem que enxugar a estrutura institucional e funcional que formou quando era Social. Para eles, a entidade Estado está ultrapassada, eis que ainda possui caráter nacional, quando tudo mais está globalizado.

No Brasil, ao invés de termos passado pelo Estado Social, possuímos a herança negativa da escravidão e da disparidade entre pobres e ricos gerada pelo desemprego e pela dinâmica de mercado que, cada vez mais, desenvolve tecnologia sem pensar nas conseqüências sociais que pode causar.

Na verdade, vendem-nos a idéia de que o Estado é o nosso problema, que é o mal a ser combatido, se não por completo, dilacerando-o. É fato que em países que passaram pelo Estado Social as conseqüências de governos neoliberais é diferente, pois não necessitam tanto da atuação do Estado na saúde, educação, segurança, entre outros.

Entretanto, no Brasil a modernidade não aconteceu, mas, sim, um simulacro, uma total negligência às questões sociais. Daí porque os governos neoliberais somente aumentaram o déficit social, eis que no momento em que a população mais necessita da atuação estatal, o mesmo é escamado, privatizado.

Por certo que todas essas alterações estatais e sociais acabam refletindo na atividade jurídica e democrática. O Direito adquire caráter fundamental, pois as alterações propostas pelos últimos governos geram prejuízos à população, cortando ou diminuindo direitos que antes eram disponibilizados pelo Estado e agora pertencem à iniciativa privada, como a saúde e a educação que, a cada dia, vêm sendo mais sucateadas propositadamente, para num futuro próximo serem totalmente privatizadas.

Ocorre que nossa ordem constitucional aponta para um outro lugar, para um Estado forte, promovedor, como uma legítima Constituição de um Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto é que o Direito adquire grande importância, sendo a única forma de luta para a implantação das promessas da modernidade, até então não cumpridas. Com efeito, passados quase 20 anos da promulgação de nossa Constituição uma grande parcela de seus direitos e princípios ainda não foram efetivados.

É patente que não basta ter um texto descrevendo direitos, sem ter como efetivá-los. Precisa-se de mecanismos que garantam tal efetividade, e isso, atualmente, dá-se pelo Direito, ou seja, o Direito é meio para alcançar a efetividade dos direitos constitucionais.

O jurista e o Poder Judiciário devem observar que sua prática deve estar voltada/guiada pela Constituição, pela lei fundamental, digna de um Estado Democrático de Direito. Porém, o que se tem visto é o contrário, o Direito e a dogmática que o instrumentaliza está assentado, conforme Streck, numa crise de dupla face, já apresentadas anteriormente, do paradigma liberal-individualista de produção do Direito e da filosofia da consciência na aplicação do mesmo. Isso nos leva a questionar que rumo o Direito deverá seguir daqui para frente: Continuar preso a paradigmas ou libertar-se de forma a efetivar os direitos constitucionais?

Todo esse processo de (re)adaptação do Direito, indubitavelmente, passa pela questão hermenêutica, pois o texto existe, mesmo que talvez possa ser insuficiente. Interpretar é "dar" sentido a cada instante, sem, contudo, "reproduzir" sentido. Talvez aqui se encontre o maior problema da resistência constitucional, pois temos leis anteriores a 1988 e sendo aplicadas como eram àquela época sem, contudo, passar pelo filtro dos princípios constitucionais.

Com efeito, com a hermenêutica pode-se superar a crise paradigmática do Direito e dar sentido eficacial à nossa Ordem Máxima, rumo à emancipação. Paralelamente, o operador jurídico deve ter a compreensão do problema social que vive a sociedade brasileira onde a dignidade da pessoa humana nunca foi respeitada.

É nesse contexto que se insere a "nova" forma de ver o Direito, com a nova roupagem lingüística proposta pela hermenêutica filosófica de Gadamer. O filósofo alemão, autor do clássico "Verdade e Método – Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica", propôs um rompimento com a concepção do compreender até então vigente. Para ele, a compreensão é realizada pelo intérprete que faz parte de um acontecer que decorre do próprio texto que precisa de interpretação.

Gadamer utiliza a historicidade com horizonte da compreensão, mas não como parâmetro estático como faziam as interpretações metafísicas da razão. O autor critica a falsa auto-compreensão, os paradigmas, a partir de uma nova concepção hermenêutica que vê o acontecer diário, considerando a sua existência concreta e fática.

Na precitada obra, Gadamer nos fala de um acontecer que advém do mundo em que estamos inseridos. Ele vê a possibilidade de explicitar/explicar esse acontecer a partir de três elementos: compreensão, interpretação e aplicação, não como um caráter dogmático, mas, sim, em forma de círculos interpretativos.

A partir da virada hermenêutica de Gadamer, com o desvelamento da hermenêutica filosófica, ficou claro que a interpretação deve estar inserida num contexto onde o intérprete esteja apto a deixar paradigmas de lado e a partir das pré-compreensões, compreenda, interprete e aplique.

Pelo visto, a hermenêutica filosófica proposta por Gadamer pode resolver o problema enfrentado pelo Direito e pelo operador jurídico brasileiro. Seja pelo modo de produção, seja pela aplicação, se o operador tiver consciência das questões postas por Gadamer poderá (re)adequar o Direito brasileiro, de forma que os direitos e garantias constitucionais possam de fato serem efetivados.

Nesse sentido, o acontecer constitucional será desvelado, superando o paradigma do sentido comum teórico dos juristas, marcado por: uma concepção liberal-individualista de criação do Direito e pela razão pura, da lógica racionalista que tudo conhece e, na medida que conhece, transforma em objeto.

É nessa trilha que Lenio Streck expõe sua Nova Crítica do Direito (NCD), afirmando que:

A partir da viragem lingüística e do rompimento com o paradigma metafísico aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade. Ao mesmo tempo, o processo interpretativo deixa de ser reprodutivo (Auslegung) e passa a ser produtivo (Sinngebung) [35].

Para esse autor, quando interpretamos estamos compreendendo e para compreendermos precisamos ter uma pré-compreensão, por exemplo, para uma adequada compreensão e aplicação dos preceitos constitucionais, necessitamos ter uma prévia teoria constitucional.

Eis a lição de Heidegger, para quem só compreendemos o ser se conhecermos o próprio ser, quer dizer: O sentido do texto constitucional será revelado na medida em que o intérprete conheça a própria Constituição.

Esse desvelamento do ser (Constituição) é o que primeiramente possibilitará o aparecimento da verdade do enunciado. O ente (enunciado constitucional) é retirado do texto, de maneira que haja uma clareira do ser e proporcione o descobrimento da verdade que será aplicada (applicatio) no caso concreto.

Não resta dúvida de que para romper com o senso comum teórico dos juristas, formado pela, ainda utilizada, hermenêutica clássica é preciso compreender o sentido da Constituição através da applicatio onde a hermenêutica, a compreensão, a interpretação e a aplicação se dão em momentos únicos e constantes, de maneira que as coisas aconteçam (Ereignen) a cada momento, sem repetições.

Atualmente, o jurista fala a partir dos pré-juízos, calcados e presos às pré-compreensões. O mundo jurídico está, assim, pré-dado por um sentido comum teórico que vela o ser, ocultando-o, na medida em que os "criadores" do Direito querem.

Assim agindo, o operador jurídico acaba dificultando que o Ereignen - termo utilizado por Heidegger para explicar o fenômeno do acontecimento, da realização – se efetive, ou seja, que os direitos apregoados pela Constituição Federal aconteçam.

O que se vê hoje, como bem refere Streck [36], são: "reformas ad hoc do sistema jurídico que sistematicamente têm levado à concentração dos poderes nos tribunais superiores".

Contudo, para superar tal crise constitucional é preciso que se entenda e aceite que há de fato uma crise. O operador jurídico, junto ao povo, deve insurgir-se contra esta prisão interpretativa proposta por quem acha conveniente manter o povo regulado. Para tanto, é fundamental um processo de re(construção) das condições de possibilidade para o amplo acesso à jurisdição constitucional e não só para a infra-constitucional, de modo que o povo saiba e utilize as ferramentas que possui para ver seus direitos constitucionais efetivados.

Dessa forma, depreende-se que o operador jurídico deve rever sua hermenêutica de atuação, pois, para que os direitos constitucionais sejam efetivados e, por conseqüência, o Brasil entre no Estado Democrático de Direito, ele deve seguir os passos da applicatio de Gadamer, superando paradigmas de casos pré-moldados, deixando tão-somente que a Constituição aconteça.


7. CONCLUSÃO

Inicialmente, cumpre frisar que o presente artigo não pretende ser um objeto de soluções ou respostas, mas, sim, ser um auxílio na investigação e compreensão dos atuais problemas jurídicos. A questão filosófica que se impõe aqui busca novos sentidos, de forma que os pré-juízos não permaneçam vagando pelo mundo e impedindo o avanço Democrático. Por isso a importância da Hermenêutica Filosófica que, após a viragem lingüística, passou a ser condição de possibilidade para superarmos velhos paradigmas e descobrirmos, na realidade, o verdadeiro sentido dos acontecimentos diários. Dessa forma, liberta-se do senso comum, inibidor de um Estado Democrático de Direito, para adentrar num mundo de sentidos, formado por pré-compreensões, compreensões, interpretações e aplicações, numa constante circular.

Com efeito, há muito tempo o ser humano vem sendo impregnado por conceitos impostos por sua própria sociedade que, por serem repetidos exaustivamente, acabam se tornando verdades absolutas. Tais postulados adquirem um caráter metafísico, pois são formados por signos prontos, numa linguagem pré-moldada que apenas contribui para a perpetuação de alguma realidade jurídica.

O maior problema disso tudo é que essa linguagem acaba sendo usada pelo Estado (criador e, de certa forma, aplicador do Direito) como forma de dar continuidade a sua ideologia política. Quer dizer, como criador do Direito ele fica adstrito aos instrumentos lógicos e às representações ideológicas, sociais e funcionais que propiciam as fantasias da verdade e da realidade e, como aplicador, ele induz, em caráter obrigacional, a aplicação de postulados já criados para solucionar os casos concretos. Dessa forma, fica fácil criar pré-noções que, teórica e praticamente, servem de instrumento para garantir a institucionalização da produção judicial a partir de um discurso jurídico dominante.

Tal prática reguladora é visível no Brasil, país onde permanece vigorando a idéia do Estado de Direito, oriundo da Revolução Francesa, pois, ainda, criam-se leis a partir dos conceitos absolutos advindos do período iluminista. Disso resulta a criação das entidades, de seres metafísicos que não podem ser alterados.

Ainda não houve uma mudança de paradigma nas práticas jurídicas, nosso Estado usa o Direito como instrumento de dominação (imposição) da sua linguagem. É bem dizer que, atualmente, os juristas brasileiros estão contaminados por um senso comum teórico onde a tarefa interpretativa é simplesmente colocar no "mercado jurídico" um discurso já produzido, sem origens sociais e sem vinculação histórica.

Deveras, não é isso o que prega nosso Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova forma estatal que preza pela emancipação e pela autonomia democrática das pessoas e das entidades. Ademais, a Constituição assumiu um caráter nitidamente social que precisa da atuação estatal para realizar as promessas da modernidade, até então não cumpridas no país.

O problema é que preso ao senso comum teórico o jurista não consegue de fato efetivar os direitos constitucionais, ou melhor, efetiva somente os direitos que o poder dominante quer que sejam efetivados. Eis o grande problema metafísico aqui combatido. O Estado como criador e aplicador do Direito regula todo o povo através do postulados normativos insuperáveis, de aplicação obrigatória pelo jurista, obstaculizando que o povo consiga, ainda que por meio do Poder Judiciário, a efetivação de direitos garantidos constitucionalmente. Ora, dentro da teoria de Kelsen, que foi usada na elaboração da Constituição de 88, temos que ter uma norma fundamental com eficácia formal e, também, material. Entretanto, percebe-se que a materialização dos direitos fica a mercê das idéias dos Governos, pois eles dão e retiram direitos na medida que querem, em flagrante desrespeito à Lei Maior.

Mas não é isso que nossa Constituição quer. Ela é de fato principiológica, contendo inúmeras normas que definem a ação imediata e a orientação a ser seguida pelo Estado em prol do bem-estar social coletivo e não da perpetuação de idéias governistas.

Por certo que essa ineficácia de direitos acarreta um crescimento de demandas judiciais, pois, onde as necessidades sociais não foram atendidas, a política do welfare state não aconteceu. Dessa forma, o povo não encontra outra alternativa que não ajuizar demandas, apenas pedindo que a Constituição seja materialmente efetivada. Por certo que, nos dias atuais, a relação dos direitos não permite mais um ordenamento absoluto, como nos Estados Liberal e Social, visto que existe relatividade nas suas manifestações, ou seja, eles acontecem todos os dias, sem dar tempo ao Legislativo positivar. Com efeito, é patente que o absolutismo legal não atende mais as necessidades humanas. É preciso ver o mundo com outros olhos, dando liberdade à linguagem para que a efetivação dos direitos constitucionais aconteça.

O jurista está esquecendo da separação do ser e do ente, o que ocasiona prejuízos à atividade interpretativa mediante a justificativa da extração do "melhor" sentido do ser. Ou seja, o método lógico, técnico, que estatiza o Direito e não o deixa acontecer, acredita que o melhor Direito surgirá da relação lógica da: premissa maior (lei) – premissa menor (caso concreto) – conclusão (sentença).

Pois bem, para combater as idéias paradigmáticas exaradas por um Estado que efetiva apenas os direitos que acha conveniente, podemos buscar as lições de Heidegger e Gadamer, quando elaboraram a chamada Hermenêutica Filosófica que conseguiu superar, através da linguagem, os paradigmas até então vigentes.

Rompendo com a hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey que sempre encontrava guarida em princípios e regras sólidas, permitindo um discurso convincente, Gadamer propôs uma hermenêutica que privilegia os acontecimentos diários, com a convicção que eles não se repetem. Cuida-se de uma hermenêutica de cunho lingüístico que observa, interpreta e aplica usando linguagem, numa relação circular, com os elementos: pré-compreensão, compreensão, interpretação e aplicação.

Não se trata de uma crítica ferrenha aos pré-juízos, a pré-compreensões, até porque é totalmente impossível desvencilhar-se delas como seres no mundo que somos. Porém, o que se quer é que o jurista entenda que as pré-compreensões são só o início de um processo interpretativo que pode culminar numa sentença. Aquela pré-compreensão que o jurista traz dos livros, da jurisprudência, do mundo, pode e deve ser usada, todavia, como início de um processo e não como fim. Aqui entra o círculo hermenêutico criado por Heidegger e aperfeiçoado por Gadamer, onde a pré-compreensão inicia o processo interpretativo, passando pela compreensão do caso concreto, indo à interpretação e aplicação (applicatio) do melhor sentido.

O hermeneuta do pós-constituição de 88 também busca na lei o subsídio mínimo para aplicar o Direito. De fato, vivemos num país Constitucional, com um texto principiológico e normativo que representa a síntese do pacto social. Contudo, o intérprete atual deve estar preocupado, também, com o que a sociedade deseja, como pode contribuir para o progresso social, sem ficar preso a ideologias. Isso pode levar, inclusive, a formação de novos direitos, até então não conhecidos pela sociedade, superando a visão romanista do direito privado, dando ênfase ao coletivo.

O jurista e o Poder Judiciário devem observar que sua prática deve estar voltada/guiada pela Constituição, pela lei fundamental, digna de um Estado Democrático de Direito. Todo esse processo de (re)adaptação do Direito pode ser feito pela hermenêutica onde podemos "dar" sentido a cada instante sem, contudo, "reproduzir" sentido.

A hermenêutica filosófica, portanto, proposta por Gadamer pode resolver o problema enfrentado pelo Direito e pelo operador jurídico brasileiro. Se na produção e na aplicação do Direito, o operador tiver consciência das questões postas por Gadamer poderá (re)adequar o Direito brasileiro de forma que os direitos e garantias constitucionais possam, de fato, serem efetivados.

Dessa forma, o acontecer constitucional será desvelado, superando o paradigma do sentido comum teórico dos juristas e efetivando todos os direitos constitucionais. Porém, para superar essa crise de adequação é preciso saber que de fato há uma crise jurídica. O operador jurídico pode quebrar o paradigma da regulação interpretativa. Para tanto, é fundamental um processo de re(construção) das condições de possibilidade para o amplo acesso à jurisdição constitucional, de modo que as ferramentas jurídicas sejam eficazes na efetivação os direitos constitucionais.


8. REFERÊNCIAS

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WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.

______. ______. Vol. II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.


Notas

  1. WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p. 13.
  2. WARAT, Luiz Alberto. Op. cit., p. 19.
  3. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 95.
  4. WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 59.
  5. WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. II, p. 60.
  6. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 43.
  7. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações Constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 19.
  8. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. p. 25.
  9. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 365.
  10. Idem, ibidem, p. 366.
  11. STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. Ciência política e teoria geral do estado. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 91.
  12. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3 ed. São Paulo: RT, 2003, p. 103.
  13. SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada – pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 62.
  14. GARAPON, Antonie. O guardador de promessas – justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 241.
  15. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 69-71.
  16. ALLEGRETTI, Carlos Artidorio. Hermenêutica jurídica: as possibilidades atuais da teoria da argumentação. Porto Alegre: UNISINOS, 2002. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2002.
  17. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I – traços de uma hermenêutica filosófica. 7 ed. São Paulo: Vozes, 2005, p. 297.
  18. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 279.
  19. Art. 4°, LICC: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
  20. ALLEGRETTI, Carlos Artidorio. Op. cit., p. 90.
  21. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., pp. 328-329.
  22. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. p. 178.
  23. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 351.
  24. STEIN, Ernildo. Aproximações sobre Hermenêutica. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 66.
  25. ALSTON, Wiliam P. Filosofia da linguagem. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 160.
  26. Artigo 5°, inciso III, CFRB: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei."
  27. ARISTOTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2005.
  28. O Círculo de Viena foi um grupo de filósofos e cientistas, organizado informalmente em Viena, entre os anos de 1922 e finais de 1936, para discutir a filosofia idealista presente nas Universidades Alemãs da época. O seu sistema filosófico ficou conhecido como o "Positivismo lógico".
  29. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 503.
  30. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 504.
  31. ALLEGRETTI, Carlos Artidorio. Op. cit., p. 164.
  32. STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 66.
  33. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 509.
  34. Idem, ibidem, p 511.
  35. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. p. 197.
  36. STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 849.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Vicente Oberto. Hermenêutica filosófica como condição de possibilidade para o acontecimento (Ereignen) constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1923, 6 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11802. Acesso em: 25 abr. 2024.