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Análise jurídica da apreensão de bem pessoal em vôo doméstico

Análise jurídica da apreensão de bem pessoal em vôo doméstico

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É legal a apreensão pelo Fisco, em vôos domésticos, de bens pessoais e lícitos, de origem estrangeira, de propriedade de passageiros que não estejam com a nota fiscal?

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objeto do presente estudo é o questionamento da legitimidade de prática realizada por autoridades fiscais federais consistente em apreender bens pessoais e lícitos, de origem estrangeira, de propriedade dos passageiros – pessoas físicas – no embarque ou desembarque de vôos domésticos, desde que o proprietário ou detentor do bem estrangeiro – notebook, ipod, p. ex. – não esteja em posse da nota fiscal de compra.

Empregamos a expressão "bens lícitos" aqui para nos referirmos àqueles cuja comercialização não é absolutamente proibida, sendo sua introdução no país, caso irregular, definida como descaminho (ofensa à ordem tributária), mas não como contrabando (por exemplo, drogas, armas e produtos de descaminho).

Desde já, é importante esclarecer que não se questiona no presente estudo a fiscalização de bens em escala comercial (mercadorias em sentido estrito), de propriedade de pessoas jurídicas ou de empresários individuais, contribuintes de direito que são dos tributos que incidem sobre a internalização e a circulação de mercadorias e riquezas em geral. Também não se discute aqui a fiscalização em aeroportos, inclusive na bagagem de pessoas físicas e em vôos domésticos, que tenha como fim apreender bens ilícitos, como, por exemplo, drogas ilícitas, materiais orgânicos ou biológicos irregulares ou cigarros que não atendam às normas sanitárias. Nesses casos, é interesse do Estado e da sociedade a repressão dessas atividades, as quais, inclusive, são sancionadas com normas criminais.

Igualmente, esclareça-se logo aqui que não sugerimos reduzir qualquer poder de fiscalização de autoridades fiscais. Reconhecemos como legítima sua atividade de fiscalização, inclusive em bagagens de passageiros em vôos domésticos. O que será examinado são as apreensões de bens pessoais, individuais, lícitos, usados e sem finalidade comercial, em razão do mero "descumprimento" por parte do cidadão comum da "obrigação acessória" (inexistente, segundo demonstraremos) consistente em carregar consigo, em todo e qualquer lugar, nota fiscal de todos os produtos de origem estrangeira de que sejam portadores, e de apresentá-los sempre que requerido por uma autoridade fiscal, em situações que não são fatos jurídicos criadores dos tributos incidentes sobre a importação.

Demais disso, esclareça-se, desde já, que não se examina aqui qualquer pretensão de natureza tributária, nem se questiona qualquer fenômeno de incidência tributária. O objeto a ser considerado é, tão-só, o direito constitucional de propriedade, de privacidade e de intimidade do cidadão, bem como a garantia do devido processo legal, formal e substantivo.


2 DIREITO CONSTITUCIONAL DE PROPRIEDADE

Procuraremos demonstrar que a apreensão de bens pessoais em vôos domésticos, em situações que não presumam a importação indevida da coisa e quando os bens apreendidos (p. ex., notebook) portam dados privados ou íntimos da pessoa, deve ser entendida como afronta ao direito constitucional de propriedade do cidadão, bem como a seu direito também constitucional à privacidade e à intimidade. Por isso, faz-se necessário tecer considerações sobre tais direitos violados. Comecemos pela propriedade.

A propriedade é bem jurídico fundamental protegido e previsto no art. 5º da Constituição da República. Correlato a esse bem fundamental, há o direito fundamental de propriedade, consistente em direito ao livre desenvolvimento e manutenção do patrimônio, que pode ser restringido, externamente, pelos modos previstos expressamente no Texto Maior (desapropriação e tributação, por exemplo), e conformada, internamente, por orientação da função social da propriedade.

Além de propiciar o desenvolvimento patrimonial individual, a propriedade permanece em nosso sistema constitucional como forma de proteção da própria pessoa humana [01], bem como instrumento de maximização do bem-estar material da comunidade [02]. A proteção da propriedade não é mais vista como um fim em si mesmo, mas sim como meio de tutela ampla da pessoa, de sua liberdade, de seu livre-arbítrio e de sua felicidade, nisso consistindo sua função existencial. Ao lado dessa função existencial, existe a chamada função social, informada por valores solidarísticos. As referidas funções não se excluem; complementam-se. Tampouco elas excluem a primeira função mencionada neste parágrafo: a função econômico-individual. Entre as três funções, porém, deve sobressair a existencial em nosso sistema constitucional, por ser a dignidade humana fundamento máximo de nossa República (art. 1º, III, CRFB). Enfim, tanto num Estado Liberal quanto num Estado Social de Direito, a proteção da propriedade faz-se necessária e basilar, em especial a tutela de sua função existencial.

Nessa nova perspectiva, a proteção da propriedade deve ser tão mais intensa quanto for a proximidade do bem à vida pessoal do indivíduo. Nesse sentido, José Afonso da Silva, partindo da distinção entre "a propriedade" e as "propriedades", com fundamento na Carta Constitucional e apoiado na doutrina de Pietro Perlingieri, defende a necessidade de tratamento distinto entre a propriedade de bens de consumo e a propriedade sobre bens de produção, bem como entre a "propriedade de uso pessoal" e a "propriedade/capital" [03]. Em razão da importância da lição, pedimos vênia para transcrever o referido trecho do constitucionalista brasileiro:

"Em verdade, uma coisa é a propriedade pública, outra a propriedade social e outra a privada; uma coisa é a propriedade agrícola, outra industrial; uma, a propriedade rural, outra a urbana; uma, a propriedade de bens de consumo, outra a de bens de produção; uma, a propriedade de uso pessoal, outra a propriedade/capital. (...) Cada qual desses tipos pode estar sujeito, e por regra estará, a uma disciplina particular, especialmente porque, em relação a eles, o princípio da função social atua diversamente, tendo em vista a destinação do bem objeto da propriedade".

A distinção entre essas espécies de propriedade não é estranha ao Direito Comparado. Na Grundgesetz da Alemanha, por exemplo, em seu art. 15, prevê-se, ponderadamente, a coletivização ou socialização de "bens imobiliários, recursos naturais e meios de produção", com prévia indenização, mas esta expropriação sequer é cogitada para os bens pessoais, pois sobre estes prevalece o interesse do indivíduo sobre o do Estado.

A partir da noção acima exposta, apontamos que a propriedade dos bens pessoais de consumo merece tratamento distinto em relação à propriedade dos bens comerciais – as mercadorias –, pois que estes, enquanto pertencentes ao empresário, devem obedecer a regramento muito mais exigente do que o que incide sobre aqueles. É que os bens pessoais são informados, em geral, mais plenamente pelo princípio da liberdade, enquanto que os bens comerciais são, em regra, submetidos a mais intensa fiscalização, sendo esta justificada pelo interesse público, aqui incidente com maior força.

Os bens pessoais, por influírem no cerne da privacidade e quiçá da intimidade da pessoa e, ao mesmo tempo, distanciarem-se da alçada do interesse público, devem estar menos sujeitos à interferência estatal, por força do princípio constitucional da dignidade humana, do qual decorre a função existencial da propriedade. Já os bens comerciais, por condizerem menos com a privacidade e intimidade e mais com o interesse público, legitimam maior interferência do Poder Público, correspondendo a uma maior incidência da função social da propriedade.

Assim, a propriedade de bens pessoais não pode ser tratada do mesmo modo que a propriedade de bens comerciais. Mesmo um autor radical como o francês Pierre Josesh Proudhon, que combatia o reconhecimento do próprio direito de propriedade, admitia que o homem tem direito de possuir, com nota de exclusividade, tudo o que baste a seu consumo e seu trabalho [04]. Pode-se dizer que o mencionado filósofo, ainda que negasse a própria legitimidade da propriedade, reconhecia como legítima a função existencial da posse exclusiva (que equivale à propriedade de bens pessoais). Isso demonstra que, no mais variado espectro de matizes ideológicas e políticas, a propriedade de bens pessoais é protegida e defendida com muito maior intensidade que a propriedade de bens comerciais em geral.

Dentro da ótica por nós desenvolvida, tratar indistintamente os proprietários de bens pessoais e os proprietários de bens comerciais deve ser tido como absolutamente inconstitucional, por ofender o princípio isonômico (art. 5º, caput, CRFB), bem como por violar o princípio da proporcionalidade, que se arrima, além da igualdade, na cláusula do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV, CRFB). A desproporcionalidade, no caso, evidencia-se pela inobservância do subprincípio da necessidade, porquanto os bens pessoais não demandam a mesma intervenção estatal que exigem os bens comerciais.

É também nesse contexto que devemos invocar a cláusula do devido processo legal, pois que, em nosso entendimento, esse princípio constitucional é violado nas apreensões agora analisadas, seja em seu caráter formal, seja em seu caráter substantivo acima mencionado.

Apesar da concisão do enunciado contido no art. 5º, LIV, de nossa Constituição, a qual não foi didática como a Constituição dos EUA, que é expressa no sentido de que "(o) direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres contra a busca e apreensão arbitrárias não poderá ser infringido; e nenhum mandado será expedido a não ser mediante indícios de culpabilidade" (Emenda IV – tradução livre), não há dúvida de que nossa ordem constitucional, substancialmente, acolhe a mesma norma, não se permitindo que o indivíduo seja privado de seus bens, em razão de suposta irregularidade, sem "indícios de culpabilidade" suficientes para a restrição de seu direito constitucional à propriedade.

Em suma, a prática de impor ao cidadão comum o ônus de carregar consigo nota fiscal de produtos importados em todo e qualquer lugar (no caso, em aeroportos, no momento de embarque ou desembarque em vôos domésticos), obrigação esta que se exige ordinariamente das pessoas e entidades empresárias (contribuintes que são dos tributos de circulação), afronta o princípio isonômico, pois trata indistintamente o cidadão comum e a entidade profissional, bem como é desproporcional, pois afeta direitos constitucionais do cidadão sem maior proveito para os cofres públicos (o ganho econômico do Estado é irrisório), e, com isso, atenta indevidamente contra o direito constitucional de propriedade da pessoa natural.


3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE E À INTIMIDADE

O direito fundamental à intimidade e à vida privada está previsto no inciso X do art. 5º de nossa Lei Excelsa; é seu texto:

"X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Os referidos direitos são, no campo juscivil, identificados como integrantes do direito geral de personalidade (ou como espécies de ''direitos'' da personalidade). No plano constitucional, pode-se dizer que a proteção desses direitos é forma de preservar a dignidade humana, que é fundamento de nossa República (art. 1º, III, CRFB). A dignidade do homem, entendida como o tratamento do ser humano como um fim em si mesmo, determina que o Estado e a ordem jurídica respeitem a vida pessoal de cada um, no âmbito da qual desenvolve-se o próprio projeto de vida da pessoa. Nesse sentido, vale mencionar o magistério de Susana G. Cayuso, que vincula estritamente o direito de liberdade e de privacidade "al derecho de la persona humana a su propio proyecto de vida" [05].

No meio dos operadores do Direito, há confusão terminológica entre os termos privacidade, intimidade e vida privada. Os estudiosos do tema, todavia, apontam distinções entre as expressões [06]. José Afonso da Silva emprega a expressão "privacidade" como gênero, "num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou" [07]. Para o referido constitucionalista, tal gênero teria como espécies a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem.

Para caracterizar o conteúdo da intimidade, José Afonso da Silva [08] toma em empréstimo as definições de René Ariel Dotti, que a define como "a esfera secreta da vida e do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais", e de Adriano de Cupis, que a conceitua como "o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento de outrem de quanto se refira à pessoa mesma". Já para definir vida privada, o constitucionalista brasileiro divide-a em dois subconjuntos: (a) o segredo da vida privada e (b) a liberdade da vida privada. O primeiro denota a intangibilidade de informações do campo individual que não é objeto de interesse público ou social, enquanto que o segundo significa a própria autodeterminação da vida individual.

Após rápido exame da legislação, doutrina e prática estrangeira, percebe-se ora a preferência por expressão equivalente a "intimidade", ora por "vida privada", ora por "privacidade". Os universos de proteção, entretanto, são bastante semelhantes, podendo-se alcançar identidade de situações fáticas juridicamente protegidas. Assim, na realidade norte-americana, adota-se a expressão privacy, que inclui o "right to be alone", ou direito de não ser incomodado na vida pessoal, e engloba a liberdade da pessoa de tomar sozinha as decisões da esfera de sua vida privada [09]. Na Alemanha, a proteção da vida privada é entendida como decorrente do direito constitucional ao livre desenvolvimento da personalidade, previsto no art. 2º da Lei Fundamental, que se biparte no direito geral da personalidade e na liberdade geral, segundo a prática do Tribunal Constitucional Federal Alemão, sendo também trabalhado o referido direito constitucional pela doutrina clássica alemã dentro da chamada "teoria do núcleo da personalidade", segundo a qual "haveria camadas ou esferas da personalidade que mereciam proteção diferenciada, sendo que a esfera íntima deveria ser mais protegida que, entre outras subdivisões, a esfera privada e a social" [10]. Em Portugal, o próprio texto da Constituição determina a unificação conceitual de "intimidade" e "vida privada", pois que garante a todos a "reserva da intimidade da vida privada", em seu art. 26, 1º. No mesmo dispositivo, são mencionadas (e asseguradas) as noções de "identidade pessoal", "desenvolvimento da personalidade", "nome" e "imagem", noções estas que são, tanto aqui como alhures, relacionadas ao conceito amplo de privacidade. Na Espanha, optou o constituinte pela expressão intimidade em vez de privacidade, garantindo, no art. 18, 1º, da Constituição, o direito "a la intimidad personal e familiar", ao lado do direito à imagem e à honra. Na Argentina, o conceito de privacidade, tomado por Susana Cayuso [11] como mais amplo que o de intimidade, é relacionado intimamente ao princípio da liberdade e extraído do art. 19 daquela Carta Constitucional e, pensamos nós, guarda grande semelhança com a conceituação dogmática brasileira.

Optamos por acolher o conceito de privacidade como englobante do conceito de intimidade. O primeiro condiz com o respeito à "vida privada"; o segundo, com a "vida íntima". Na cultura brasileira, a vida íntima é entendida como estando muito mais próxima ao núcleo da personalidade do que a vida privada, que estaria "no meio do caminho" entre a vida íntima e a vida pública/social. Portanto, sempre que se trabalhar o conceito de privacidade (conjunto continente), deve se ter como compreendida também a intimidade (conjunto contido). Sem embargo disso, não se pode negar que a preservação da intimidade deve ocorrer com mais intensidade que a privacidade, justamente pela maior proximidade do núcleo da personalidade. É o que propõe a teoria alemã do núcleo da personalidade, a qual pode ser substancialmente transportada para o Brasil como decorrente da incidência do princípio da dignidade humana, que impõe maior proteção aos interesses humanos mais diretamente relacionados a seu âmago existencial.

Pois bem. Na questão objeto deste estudo, a privacidade (e a intimidade) deve ser invocada pela presença de bens pessoais que são sujeitos a apreensões com base em "presunções de culpabilidade" não acolhidas por lei ou pela Constituição.

Tomemos a hipótese mais corrente: a apreensão de notebook de uso pessoal do passageiro. Nesse bem estão contidas diversas informações sobre a vida pessoal (quiçá íntima) do dono: endereços, números de telefones próprios e de pessoas próximas, histórico de navegação pela Internet, documentos baixados desta rede de comunicação, fotos e vídeos pessoais, cópias de e-mails íntimos ou mesmo de trabalhos, arquivos profissionais, estudos próprios e de terceiros, senhas pessoais, músicas de sua predileção etc. Em verdade, a partir da revolução digital do final do século XX para o Século XXI, boa parte da vida privada e íntima de uma pessoa pode ser representada por seu computador pessoal, o qual guarda informações relevantíssimas do indivíduo e para o indivíduo. O homem desta década, desde que inserido na era digital, encontra-se arruinado se perdido – ou apreendido – seu computador de uso pessoal.

Com as devidas proporções, o mesmo pode ser dito de aparelhos celulares, blackberries e tocadores de MP3 e MP4, pois todos, de uma forma ou doutra, guardam informações da vida pessoal do indivíduo, seja agenda de telefones, mensagens de texto, fotos íntimas ou mesmo músicas que denotam uma parte da personalidade da pessoa.

Perceba-se que os bens pessoais, mormente os eletrônicos, contêm informações sobre a vida pessoal que devem ser preservados. Um computador de uso próprio, levado nas mãos do cidadão, por exemplo, não pode ser tratado da mesma forma que um computador encaixotado e agrupado com outros cem no depósito de uma empresa. Uma camisa vestida pelo indivíduo para cobrir seu corpo no momento da apreensão, também obviamente, não pode receber o mesmo tratamento de um item de vestuário transportado a tonel pelo comerciante profissional. A diferença entre tais bens está em seu emprego (uso), o qual, juridicamente, aponta sua natureza, qualificando-os em bens pessoais ou bens comerciais (mercadorias). Assim retornamos à assertiva já subscrita em tópico anterior: os bens pessoais não podem receber o mesmo tratamento dos bens comerciais; caso contrário, a privacidade do indivíduo pode acabar comprometida, ou ao menos estará em estado de risco.

Não estamos defendendo que os bens pessoais (a fim de se proteger a privacidade/intimidade) não podem sofrer qualquer forma de fiscalização. O que se defende, isto sim, é que esses bens, sendo lícitos (não se tratando, por exemplo, de produtos entorpecentes ou resultado de contrafação), somente podem ser apreendidos sob a acusação de prática de ilicitude (introdução irregular no Brasil, sem pagamento de tributos) se houver prova desta infração à lei. Não bastam presunções, como as que incidem sobre o comerciante, de quem se exige a apresentação de nota fiscal de qualquer mercadoria que esteja em seu poder.

Autoridades fiscais já sustentaram que não haveria norma alguma que proíba o tratamento indiscriminado de bens de uso pessoal e bens de finalidade comercial. Cremos ser esse entendimento equivocado. Não só a legislação ordinária não alberga as apreensões referidas neste estudo, como a Constituição de nossa República impede que os bens pessoais do cidadão sejam tratados com o mesmo rigor fiscalizatório que os bens transportados por empresas. Essa ilação arrima-se não só na proteção da propriedade, mas também da privacidade (aqui incluída a intimidade) e da dignidade humana.

Sozinhos, os fundamentos constitucionais aqui considerados são suficientes para coibir a apreensão de bens pessoais lícitos em vôos domésticos. Sem embargo disso, passaremos a analisar a legislação ordinária, a fim de demonstrar que, ainda a partir dela, não se pode admitir a apreensão de tais bens, sem qualquer prova de ilicitude. É o que passaremos a demonstrar.


4 ANÁLISE DOS TEXTOS LEGAIS E INFRALEGAIS

A fim de demonstrar a ilicitude da apreensão de bens pessoais (lícitos e sem finalidade comercial) em vôos domésticos, analisaremos as disposições legais que são citadas por autoridades fiscais como fundamentos para tal prática.

As apreensões em foco são realizadas com forte nos arts. 87 e 102 da Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964. Vejamos o referido texto legal:

"Art. 87. Incorre na pena de perda da mercadoria o proprietário de produtos de procedência estrangeira, encontrados fora da zona fiscal aduaneira, em qualquer situação ou lugar, nos seguintes casos:

I – quando o produto, tributado ou não, tiver sido introduzido clandestinamente no país ou importado irregular ou fraudulentamente;

II – quando o produto, sujeito ao impôsto de consumo, estiver desacompanhado da nota de importação ou de leilão, se em poder do estabelecimento importador ou arrematante, ou de nota fiscal emitida com obediência a tôdas as exigências desta lei, se em poder de outros, ou ainda, quando estiver acompanhado de nota fiscal emitida por firma inexistente.

III – quando o produto sujeito ao impôsto de consumo não tiver sido regularmente registrado nos livros ou fichas de contrôle quantitativo próprios, ou quando não tiver sido marcado e selado, na forma determinada pela autoridade competente.

Art. 102. As mercadorias de procedência estrangeira encontradas nas condições previstas no artigo 87 e nos seus incisos I, II e III, serão apreendidas, intimando-se imediatamente, o seu proprietário, possuidor ou detentor a apresentar, no prazo de 24 horas, os documentos comprobatórios de sua entrada legal no país ou de seu trânsito regular no território nacional, lavrando-se de tudo os necessários têrmos.

§ 1º Na hipótese de falta de registro da mercadoria nos livros ou fichas de contrôle quantitativo próprios, comprovada no ato da apreensão, ou quando a mercadoria estiver acompanhada de documentação que não atenda às exigências desta Lei, será dispensada a intimação preliminar prevista neste artigo.

§ 2º Verificando-se as hipóteses do parágrafo anterior, ou decorrido o prazo da intimação sem que sejam apresentados os documentos exigidos ou se êstes não satisfizerem aos requisitos legais, será lavrado o competente auto de infração, que servirá de base ao processo fiscal para a aplicação da penalidade de perda da mercadoria.

§ 3º Transitada em julgado a decisão condenatória, serão as mercadorias vendidas em leilão, competindo ao arrematante pagar o impôsto devido" (grifo nosso).

Segundo o entendimento de autoridades fiscais, as apreensões realizadas e analisadas no presente estudo não são realizadas com forte no inciso I do art. 87 da Lei 4.502/52, cujo fundamento seria a entrada irregular de mercadorias no país, que demanda, conforme subscreve a autoridade fiscal, comprovação deste ilícito. Em vez disso, as apreensões seriam realizadas com forte no inciso II desse mesmo artigo, o qual legitimaria a apreensão de produto portado por qualquer pessoa desde que esta não esteja, no momento, carregando consigo a nota fiscal de compra.

Ainda segundo a mesma linha de entendimento, como a legislação faz referência a produtos "encontrados fora da zona fiscal aduaneira", em qualquer lugar se poderia exigir de qualquer pessoa a apresentação de nota fiscal de qualquer bem, seja um notebook, um telefone celular, uma camisa ou uma bolsa, desde que o bem tenha sido fabricado no estrangeiro. Nesse ponto, seria indiferente se a apreensão se dá num desembarque de vôo doméstico, numa rodoviária ou num shopping center; qualquer lugar estaria englobado pela previsão legal, que seria ampla e irrestrita. Entendemos ser equivocada essa interpretação.

De fato, quanto à aplicação do inciso I, parece não haver divergência. Trata-se de punição decorrente de ato ilícito e, para sua aplicação, deve haver prova precisa do fato, sendo da acusação o ônus probatório, salvo a prova de fatos impeditivos, inclusive por força do princípio da presunção de licitude das situações jurídicas e da presunção de boa-fé subjetiva (art. 5º, LV e LVII, da CRFB; arts. 1202 e 1202 do CC; art. 333 do CPC; art. 156 do CPP; art. 36 da Lei 9.784/99).

O equívoco, porém, dá-se na aplicação do inciso II do art. 87 da Lei 4.502/64. Esse dispositivo, ao impor a pena de perdimento a quem não satisfaz a obrigação acessória de apresentação de nota fiscal, dirige-se ao contribuinte de direito dos impostos incidentes sobre a internalização de mercadorias no país, em geral pessoas jurídicas profissionais, mas não ao consumidor final, "contribuinte de fato" do tributo.

De fato, apresentar nota fiscal é obrigação acessória, como bem definida no art. 113, § 2º, do Código Tributário Nacional. Ocorre que essa obrigação acessória só pode ser exigida do contribuinte de direito. É sobre este que recai o ônus de cumprir obrigações tributárias acessórias, e não sobre o contribuinte de fato, mero consumidor.

Admitida essa premissa, devemos observar que o cidadão comum que circula internamente no país com seus bens pessoais não é contribuinte de direito dos tributos que incidem sobre o ingresso de mercadorias no país, mas somente contribuinte de fato. A ele, nessa situação, não se pode exigir o porte constante de todas as notas fiscais dos bens que leva consigo.

Assim, é necessário compreender melhor a extensão da expressão "estabelecimentos ou pessoas" contida no inciso II antes transcrito. A exigência de nota fiscal de "pessoas", sob pena de perdimento do bem, somente pode ser feita se essas "pessoas" forem contribuintes de direito do tributo. Logo, ainda que se conceda à expressão o alcance das pessoas físicas ("pessoas" poderiam ser tanto "pessoas físicas" quanto "pessoas jurídicas"), como defendem autoridades fiscais, não é a toda pessoa que se impõe esse ônus, mas somente àquelas que, no momento, agem como contribuintes de direito.

Explicamos. Quando um indivíduo, desembarcando de vôo internacional, introduz mercadorias estrangeiras em solo nacional, age ele como contribuinte de direito, pois que, nesse momento, está incidindo a norma jurídica matriz do tributo, sendo esse preciso fato um fato jurídico tributário, a partir do qual nasce uma obrigação jurídica tributária. Nesse momento, conquanto seja ele somente uma pessoa física, equipara-se ele, juridicamente, ao ente empresarial profissional, sendo os bens introduzidos no país tratados juridicamente como mercadorias.

Diferentemente, quando um cidadão carrega consigo um bem já internalizado no território nacional, presumindo-se ser sua posse legal e de boa-fé (ou comprou o produto numa loja do Brasil, ou comprou no exterior e no momento da internalização pagou os tributos devidos, ou comprou no exterior e beneficiou-se de isenção, ou mesmo ganhou o bem de um ente querido), não está ele agindo como contribuinte de direito dos tributos de importação. Está ele, isto sim, em condição de consumidor, contribuinte meramente de fato do tributo, não de direito. A essa "pessoa" não pode ser conferido o tratamento de ente empresarial, impondo-se o ônus de guardar e portar nota fiscal, sob a pena tão grave de perdimento do bem.

O deslocamento (físico, não econômico) de bem produzido no exterior mas já internalizado no mercado nacional é irrelevante para fins tributários, mormente para fins de incidência dos tributos relativos à importação. A pessoa que carrega um computador portátil pessoal em uma viagem nacional de negócios, ou de lazer, não está concretizando qualquer fato jurídico tributário. Como, então, impor-lhe o ônus de apresentar nota fiscal e a pena de perdimento de seu bem pessoal?

Outrossim, não podemos deixar de notar que, mesmo em desembarque de vôos internacionais, a prática da Receita Federal do Brasil consiste em não exigir qualquer nota fiscal se o bem ali introduzido no país estiver coberto pela faixa de isenção (hoje, U$S 500,00 – quinhentos dólares). Como conferir a vôo nacional tratamento mais rigoroso que o concedido a vôo internacional? E mais: mesmo em vôos internacionais, permite-se que o viajante meramente declare a saída de computador pessoal, p. ex., para depois voltar a internalizá-lo, por meio de DST (Declaração de Saída Temporária), sem que lhe seja exigida a apresentação de nota fiscal de compra. Para tanto, basta declaração de próprio punho. Como é possível, logo, exigir do viajante nacional algo que mal se exige do viajante internacional? Cremos que essa disparidade é desarrazoada, desproporcional.

É importante ainda apontar que a legislação examinada faz referência à pena de perdimento de "mercadoria". Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, além de mercancia enquanto negócio ou ocupação profissional, mercadoria, em sentido forte, significa "qualquer produto suscetível de ser comprado ou vendido" ou "a carga de gêneros e objetos carregados por terra, mar ou ar". Da análise morfológica da palavra, percebe-se sua relação com a palavra "mercado", que é local físico ou lógico em que são realizadas as trocas econômicas de bens e serviços. Portanto, percebe-se que não é qualquer bem que se caracteriza como "mercadoria". Para sê-lo, o bem precisa ser manejado comercialmente.

Dessa forma, não se pode confundir mercadoria com bem pessoal. Este é portado para a satisfação das necessidades pessoais do indivíduo. A mercadoria, por sua vez, é transportada e negociada a fim de satisfazer necessidades econômicas. O bem pessoal, em regra, é infungível para a pessoa que o utiliza. A mercadoria, distintamente, é, em geral, fungível, restando de tal forma inviolada e impessoal que pode ser trocada por outra de mesma espécie sem prejuízo para seu destinatário.

Essa distinção é importante porque a legislação aqui abordada (arts. 87 e 102 da Lei 4.502/64) prevê a apreensão de mercadorias, e não de bens pessoais. Essa constatação é convergente com nossa constatação anterior de que somente do contribuinte de direito (em regra, entidade empresarial) se pode exigir a apresentação de nota fiscal, sob pena de perdimento da coisa. Excepcionalmente, no caso de a pessoa física ser o contribuinte de direito do bem, introduzindo o bem no território nacional, por exemplo, por meio de vôo internacional, pode também lhe ser imputado o mesmo ônus e pena, pois que o bem, nessa hipótese, ainda não está pessoalizado, sendo ainda fungível, e podendo, no limiar da fronteira semântica, ser caracterizado como mercadoria.

Por força das razões acima expostas, o inciso II o art. 87 da Lei 4.502/64 não pode ser aplicado em face de cidadãos que, de modo lícito e sem intuito comercial, circulam com bens pessoais no território nacional, inclusive por meio de vôos domésticos, sem carregar consigo a nota de fiscal de compra. Para que o referido bem seja apreendido, é necessário que se aplique o inciso I desse mesmo artigo de lei, que demanda da autoridade fiscal a prova da introdução irregular do bem estrangeiro no território nacional, ou ao menos indício fortíssimo nesse sentido, não se podendo presumir a má-fé da posse.

Pelos fundamentos que apresentamos, entendemos ser também irrelevante fazer menção ao art. 33 do Decreto-Lei 37/66, o qual preceitua que "a jurisdição dos serviços aduaneiros se estende por todo o território aduaneiro", incluindo as zonas primária e secundária. De fato, os serviços aduaneiros, inclusive de fiscalização, podem ser realizados em todo o território aduaneiro, mas isso não significa que apreensões possam ser realizadas contra bens pessoais de indivíduos, sem prova de ilicitude na aquisição ou transporte, e sem estarem esses cidadãos qualificados como contribuintes de direito, não realizando qualquer fato jurídico tributário.

Por igual motivo, é irrelevante o apelo feito por autoridades fiscais aos arts. 15 e 18 do Decreto 4.543/2002, cujo texto é o seguinte:

"Art. 15. O exercício da administração aduaneira compreende a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, em todo o território aduaneiro (Constituição da República, art. 237).

...

Art. 18. As pessoas físicas ou jurídicas exibirão aos Auditores-Fiscais da Receita Federal, sempre que exigidos, as mercadorias, livros das escritas fiscal e geral, documentos mantidos em arquivos magnéticos ou assemelhados, e todos os documentos, em uso ou já arquivados, que forem julgados necessários à fiscalização, e lhes franquearão os seus estabelecimentos, depósitos e dependências, bem assim veículos, cofres e outros móveis, a qualquer hora do dia, ou da noite, se à noite os estabelecimentos estiverem funcionando (Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, art. 94 e parágrafo único, e Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, art. 34).

Parágrafo único. As pessoas físicas ou jurídicas, usuárias de sistema de processamento de dados, deverão manter documentação técnica completa e atualizada do sistema, suficiente para possibilitar a sua auditoria, facultada a manutenção em meio magnético, sem prejuízo da sua emissão gráfica, quando solicitada (Lei no 9.430, de 1996, art. 38)".

Em primeiro lugar, estamos diante de decreto, que é texto infralegal, devendo ser entendido e aplicado conforme o que estatui a lei. Logo, ainda que esse decreto possibilitasse as apreensões discutidas neste estudo (o que não faz), não poderia ele afrontar a lei. Mesmo que nesses dispositivos estivesse expresso o comando contido no artigo seguinte (art. 19), o de que "não tem aplicação quaisquer disposições legais...", obviamente tratar-se-ia de letra morta.

Em segundo lugar, os mencionados dispositivos legais foram concebidos tomando em consideração os contribuintes de direito profissionais – as atuais entidades empresariais. Não se pode, por exemplo, crer que alguém defenda ser oponível aos cidadãos comuns, in totum, a ordem de que estes "franquearão os seus estabelecimentos, depósitos e dependências, bem assim veículos, cofres e outros móveis, a qualquer hora do dia, ou da noite". Não se pode sequer imaginar que um decreto assinado em 2002 pudesse ter como finalidade permitir às autoridades fazendárias fazer algo que nem os juízes podem fazer: entrar no domicílio de cidadãos, à noite, para realizar fiscalização. Obviamente, não é esse o propósito do decreto. Sua finalidade é franquear aos respeitáveis Auditores-Fiscais da Receita Federal o acesso aos estabelecimentos comerciais e a todos recintos das entidades empresariais e dos empresários, em que se encontrem mercadorias (não bens pessoais dos cidadãos). Igualmente, não é defensável que seja oponível ao cidadão comum, mero consumidor, não-empresário, o mandamento de que as " pessoas físicas ou jurídicas, usuárias de sistema de processamento de dados, deverão manter documentação técnica completa e atualizada do sistema, suficiente para possibilitar a sua auditoria, facultada a manutenção em meio magnético, sem prejuízo da sua emissão gráfica, quando solicitada". É claro que se faz essa exigência em face da pessoa empresarial.

Em terceiro lugar, ainda que se entenda que o Decreto 4.543/2002 se aplica também às pessoas que não realizam atividade empresarial, o referido decreto deve ser lido em consonância com os mandamentos legais já examinados da Lei 4.502/64, devendo, assim, tal aplicação ser excepcional, só alcançando as situações em que o cidadão comum é contribuinte de direito, realizando fatos jurídicos tributários. É que, nesse caso, o indivíduo equipara-se a empresário, e o bem é tido não como pessoal, mas como mercadoria; já o explicamos antes.

Em quarto lugar, ainda que tais fiscalizações, por mais que sejam rigorosas, alcançassem o cidadão absolutamente comum, disso não decorreria o poder de apreender seus bens. Fiscalizar não é sinônimo de apreender. O propósito de se fiscalizar é justamente encontrar provas concretas (ou, ao menos, indícios fortes) de ilicitudes. São essas ilicitudes, uma vez provadas, que possibilitarão a apreensão.

Todas essas mesmas considerações devem ser dirigidas à aplicação do art. 50 do Decreto-Lei 37/66, o qual pode ser aplicado a fim de possibilitar a fiscalização da bagagem de passageiros, em vôos domésticos e internacionais, mas não pode legitimar a apreensão de bens pessoais, lícitos, em razão da mera ausência de apresentação de nota fiscal em vôo doméstico. Para haver tal apreensão, é necessário que, da fiscalização, resultem ao menos indícios fortes de ter o bem sido importado ou adquirido ilicitamente. O mesmo se diga do art. 60 da Lei 10.593/2002, que trata das atribuições dos Auditores da Receita Federal do Brasil, atribuições estas que não são aqui objeto de questionamento.

Enfim, após o exame de toda a legislação e de todos os atos normativos infralegais condizentes à quaestio iuris, não restamos convencidos das razões apresentadas por autoridades fiscais para apreender bens de cidadãos comuns em razão da não apresentação de nota fiscal em vôos domésticos.

A seguir, demonstraremos que a jurisprudência pátria é favorável ao nosso entendimento aqui exposto.


5 JURISPRUDÊNCIA

A jurisprudência dos tribunais brasileiros arrima totalmente nosso entendimento.

Em verdade, mesmo em se tratando de desembarque de vôos internacionais, em que cremos se legitimar mais ampla intervenção na propriedade do cidadão, a jurisprudência é contrária à apreensão de bens pessoais, lícitos, individualizados, claramente sem finalidade comercial.

Deveras, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem julgados no sentido de que, ainda que em desembarque de vôos internacionais, a apreensão de bens pessoais não pode ocorrer com fundamento em ausência de pagamento de tributo. Citamos diversos julgados nesse sentido:

"TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RETENÇÃO DE MERCADORIA INTEGRANTE DE BAGAGEM DE VIAJANTE PROVENIENTE DO EXTERIOR.

1. É ilegal a apreensão de mercadoria integrante de bagagem de viajante proveniente do exterior, que excede a cota permitida, com a finalidade de coagir o contribuinte a recolher os tributos devidos.

Aplicação da Súmula 323 do STF.

2. Remessa oficial improvida" (ROMS 1999.01.00.106051-1/PA, Rel. Juíza Ivani Silva da Luz, DJU 29.5.2003).

"TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. MERCADORIA IMPORTADA. DECEX - BANCO DO BRASIL. VALOR DAS MERCADORIAS DE ACORDO COM AS NORMAS DO DECEX.

1. A retenção de mercadorias com o objetivo de exigir-se o pagamento de tributo a maior de que o devido configura-se ato ilegal e abusivo da autoridade.

2. Remessa oficial improvida" (REO 93.01.22890-4/RR, Rel. Desembargador Federal Eustáquio Silveira, DJU 25.5.98).

"ADMINISTRATIVO E TRIBUTÁRIO. APREENSÃO DE VEÍCULO SUJEITO A ISENÇÃO. IPI.

1. Não é legal a apreensão de veículo como meio coercitivo para pagamento de tributo. Súmula 323, do STF.

2. Remessa oficial improvida" (REO 91.01.12205-3/RO, Relª Juíza Selene Maria de Almeida, convocada, hoje integrando este Tribunal, DJU 26.11.98).

"TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. APREENSÃO DE MERCADORIAS. SÚMULA 323 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

1. De acordo com a Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal, não se apresenta como juridicamente admissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. Precedentes desta 4ª Turma.

2. A invocação, nas razões de apelação, da aplicação do disposto no art. 543, do Regimento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto nº 91.030/95, não afasta a incidência in casu da Súmula nº 323, do eg. Supremo Tribunal Federal, ainda que se considere o disposto no item 1, da Portaria 389/76, do Exmo. Sr. Ministro da Fazenda.

3. Apelação e remessa oficial improvidas" (AMS 2000.33.00.001665-2/BA, Rel. Desembargador Federal I’talo Fioravanti Sabo Mendes, DJU 12.3.02).

"ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE MERCADORIA. SÚMULA N. 323 DO STF.

1. É ilegal a apreensão de mercadoria como forma de coerção para que o contribuinte complemente o pagamento de tributo, conforme Súmula n. 323 do STF. (REO n. 91.01.12205-3/RO e REO n. 1997.01.00.001127-2/AM)2. Remessa ex officio improvida

3. Sentença mantida" (REO 95.01.25460-7/BA, Rel. Juiz Lourival Gonçalves de Oliveira, DJU 20.4.01).

"ADMINISTRATIVO - APREENSÃO DE MERCADORIA - LIBERAÇÃO.

1. Considera a jurisprudência ilegal a apreensão de mercadorias importadas como forma de coagir o contribuinte a pagar as exações.

2. Prática que mereceu o repúdio da jurisprudência, cristalizada na Súmula n. 323 do STF.

3. Remessa oficial improvida" (REO 1997.01.00.051127-2/AM, Relª Juíza Eliana Calmon, atualmente integrando no STJ, DJU 4.6.98).

Vejamos o que também decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

"MANDADO DE SEGURANÇA. APREENSÃO DE MERCADORIA. ILEGALIDADE.

A INT-23/95, que tratou das mercadorias integrantes da bagagem de viajante procedente do exterior, estabeleceu que os bens que excedessem a cota permitida, estariam sujeitos somente ao pagamento do imposto de importação. A apreensão do aparelho pelo agente do Fisco configura abuso de autoridade. Ordem concedida. Sentença confirmada" (AMS 95.04.59859-5/RS, DJU 27.1.99).

Como se pode perceber, a maioria desses julgados busca apoio na Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal, cujo texto é o seguinte:

"Súmula 323. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos".

Ora, se esse entendimento vale para "mercadorias", como não valerá para "bens pessoais"? Se é proibida a apreensão como meio de cobrança de tributos, como será permitida se não se faculta sequer que a pessoa pague o suposto tributo não-pago para liberá-la?

Não estamos discutindo neste estudo o acerto da jurisprudência consolidada acima citada. Vale dizer, não estamos defendendo que não sejam apreendidos bens pessoais no desembarque de vôos internacionais, em razão da não-apresentação de nota fiscal por parte do cidadão comum. O que queremos demonstrar é que se, mesmo em vôos internacionais, a jurisprudência não admite a apreensão de bens pessoais de origem estrangeira, como aceitar tal apropriação estatal em vôos domésticos, em que sequer incidem os tributos de importação?

Autoridades fiscais subsidiam seu entendimento no acórdão do TRF da 4ª Região derivado do julgamento do AI 2004.04.01.018474-5/RS, decidido em 2004, em que se negou liminar para a liberação de produtos de informática apreendidos em vôo doméstico. Ocorre que, naquele julgado, tratava-se de mercadorias, não de bens pessoais, de propriedade de entidade empresarial, não de cidadãos, havendo sido constatada finalidade comercial e indícios fortes de irregularidade por parte das empresas envolvidas. Para que o referido julgado não seja mais citado a fim de fundamentar aquilo que lá não se acolhe, transcrevemos o voto do Relator, o Senhor Desembargador Federal Álvaro Eduardo Junqueira:

"O despacho inicial teve o seguinte teor, o qual mantenho integralmente:

''Examinando os autos, verifico que efetivamente se trata de aquisição de produtos de informática pelo agravante no mercado interno, São Paulo.

A primeira vista esse fato ensejaria a liberação das mercadorias, uma vez que o consumidor não está obrigado a verificar a regularidade fiscal de empresa sujeita à fiscalização fazendária antes de realizar seus negócios. Nesse sentido, registro precedentes desta Corte - AMS nº 96.04.23439-0/RS, 1T, Rel. Des. Federal Fábio Rosa, DJ de 18.02.98, p. 485 - e do STJ - RESP nº 79764/DF, 1T, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU de 17.06.96, p. 21452.

Contudo, na hipótese dos autos, não vislumbro a possibilidade de liberação imediata das mercadorias apreendidas pelo fato da nota fiscal ter sido emitida contra o ora agravante com a observação de que os produtos nela arrolados foram remetidos em consignação (fl. 26), descaracterizando, portanto a presunção de boa-fé referida nos precedentes supramencionados.

Ademais, convém ressaltar que as diligências da Receita Federal revelaram que a empresa que emitiu a nota fiscal encontra-se em situação irregular, caracterizada pela omissão na entrega da declaração de rendimentos desde o ano-base de 2000 (fl. 53).

Indefiro, pois, o efeito suspensivo''.

Em face do exposto, nego provimento ao agravo de instrumento" (grifo nosso).

Está claro, dessarte, que o julgado mencionado não guarda pertinência com o objeto aqui abordado.

Enfim, pesquisamos exaustivamente jurisprudência, legislação, doutrina e a nossa consciência, e não encontramos suporte algum para a apreensão de bens lícitos, individualizados, de uso pessoal, sem finalidade comercial e de propriedade dos cidadãos, em embarque e desembarque de vôos domésticos, em razão da mera ausência de apresentação de nota fiscal do bem importado que leva consigo o viajante.


6 CONCLUSÃO

Após todas as considerações constitucionais, legais, jurisprudenciais e de bom senso acima desenvolvidas, cremos ter demonstrado a ilicitude na apreensão de bens pessoais (de uso e consumo pessoal), ainda que de origem estrangeira, dos cidadãos que se encontram em embarque ou desembarque de vôos domésticos, em viagem entre duas cidades brasileiras, em casos em que não há ilicitude no bem em si (não é droga ilícita ou produto de contrafação, por exemplo), em que claramente não há finalidade comercial do bem e em que não há qualquer prova de que o bem tenha sido introduzido no país de modo ilícito, resultando tal apreensão em perdimento do bem, caso não apresentada a nota fiscal em 24 horas.

Repita-se: não objetivamos ver reduzida qualquer atribuição de fiscalização dos servidores de Auditoria da Receita Federal do Brasil. Não se pretende negar sequer que possam eles fiscalizar a bagagem e os bens pessoais dos cidadãos que se encontram em embarque ou desembarque de vôos domésticos. O que se impõe é, tão-somente, que os bens aqui minuciosamente identificados somente sejam apreendidos caso haja prova de ilicitude praticada pelo cidadão, ou, ao menos, indício forte nesse sentido.

Não podemos deixar de comentar que nem mesmo o Poder Judiciário poderia determinar a apreensão de um bem sem indício forte de prática de ilicitude por parte do cidadão prejudicado. Como, então, pode a autoridade fiscal avocar-se de um poder que não se atribui nem ao Poder Judiciário?

Em suma, pedimos vênia para repetir a conclusão já enunciada em diversos momentos deste artigo: a fiscalização fazendária abrange bens pessoais dos cidadãos, estrangeiros ou não, mas estes bens, estrangeiros ou não, somente podem ser apreendidos pela autoridade se for comprovada a prática de ilicitude, não podendo estes bens, se lícitos e não-comerciais, serem aprendidos em razão da mera ausência de apresentação de nota fiscal de compra.


7 BIBLIOGRAFIA (somente obras citadas)

CAYUSO, Susana. Constitución de la Nación Argentina: Claves para el Estudio Inicial de la Norma Fundamental. Buenos Aires: La Ley, 2007.

COMPARATO, Fábio Konder. "A Proteção ao Consumidor na Constituição Brasileira de 1988". In: Revista de Direito Mercantil, n. 80, pp. 66-75.

MARTINS, Luciana Mabilia. "O Direito Civil à Privacidade e à Intimidade". In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002.

PROUDHON, Pierre Josesh. ¿Qué es la Propiedad? Investigaciones sobre el Principio del Derecho e del Gobierno. Trad. de A. Gómez Pinilla. Buenos Aires: Libros de Anarres, 2005.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e Relações Privadas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad. de Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.


Notas

  1. Cf. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e Relações Privadas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 90-1.
  2. Cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 309-20.
  3. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 273. A propósito da importância da distinção entre bens de consumo (pessoais) e bens de produção (do capital), conferir também Fábio Konder Comparato: "A Proteção ao Consumidor na Constituição Brasileira de 1988". In: RDM 80, pp. 66-75.
  4. ¿Qué es la Propiedad? Investigaciones sobre el Principio del Derecho e del Gobierno. Trad. A. Gómez Pinilla. Buenos Aires: Libros de Anarres, 2005, p. 53.
  5. Constitución de la Nación Argentina: Claves para el Estudio Inicial de la Norma Fundamental. Buenos Aires: La Ley, 2007, p. 125.
  6. Cf. MARTINS, Luciana Mabilia. "O Direito Civil à Privacidade e à Intimidade". In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, pp. 343-4.
  7. Ob. cit., p. 205.
  8. Ob. cit., p. 206.
  9. Cf. SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 205.
  10. Cf. SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad. de Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, pp. 187-8.

11.Ob. cit., p. 125.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. Análise jurídica da apreensão de bem pessoal em vôo doméstico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1953, 5 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11924. Acesso em: 19 abr. 2024.