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Os deficientes físicos, a normativa brasileira e a liberdade

Os deficientes físicos, a normativa brasileira e a liberdade

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Desigualar os desiguais pode-se dar de várias formas. Entre elas, a criação de normas próprias para os desiguais pode ser causa legitimadora de discriminação constituída de forma direta, que, nesse caso, dá-se de forma indireta, pois parte da proteção do Estado. Uma forma de garantia legal é, portanto, a defesa da positivação de normas próprias para grupos diferenciados, possivelmente muito reivindicado pelas minorias.

Grupos sociais muitas vezes reivindicam essa positivação normativa para que haja a efetividade no reconhecimento da diversidade e, conseqüentemente, medidas próprias para sua digna sobrevivência no corpo social. Normas e políticas que supostamente violam o direito à igualdade se justificam pelos benefícios sociais que anseiam trazer.

Pela supremacia normativa constitucional sobre as demais normas já existentes e as que possam carecer de normatização positiva, os princípios constitucionais possuem inquestionavelmente poder influenciador e determinador na elaboração e nas diretrizes políticas de todo o ordenamento pátrio.

Princípios constitucionais fundamentais, como a igualdade e a liberdade, por si só possuem caráter garantidor de proteção jurídica, independentemente de situações práticas elencadas e previstas em demais normativas infra.

Debates rotineiros como, por exemplo, minorias culturais, raciais, religiosas, étnicas, lingüísticas entre outras, estão presentes no diálogo popular do cidadão que tem o mínimo de conhecimento sobre o ambiente no qual está inserido. Nos últimos anos, houve um crescente debate sobre a inclusão dos deficientes físicos no mercado de trabalho e na vida social como um todo, o que tem alcançado patamares jurídicos elevados dentro do ordenamento jurídico de vários Estados.

Logo após a cristalização da democracia com a Constituição Cidadã de 1988, a Lei 7.853/89 [01] reza, in verbis:

Art. 1º Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social, nos termos desta Lei.

§ 1º Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.

§ 2º As normas desta Lei visam garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade.

Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Tal ordenamento sagrou-se exemplar, porém, sem aplicação. Tratou diretamente da educação, saúde, formação profissional e trabalho, recursos humanos e acessibilidade, obrigando, inclusive a intervenção do Ministério Público nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutisse interesses relacionados à deficiência das pessoas.

Contudo, cabe ressaltar que somente em 1999, por meio do Decreto 3.298 [02], houve a regulamentação da lei:

Art. 1º  A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência compreende o conjunto de orientações normativas que objetivam assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência.

Art. 2º  Cabe aos órgãos e às entidades do Poder Público assegurar à pessoa portadora de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à previdência social, à assistência social, ao transporte, à edificação pública, à habitação, à cultura, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.

O Ministério Público, então, passou a exigir de forma mais acentuada as garantias legais dos deficientes, como a participação ativa no mercado de trabalho, acessibilidade em órgãos públicos, proteção contra discriminação, etc.

Em 2001, a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Pessoas Portadoras de Deficiência, ratificada pelo Decreto 3.956/01, reforçou os direitos humanos e liberdades fundamentais desse grupo.

No entanto, somente em 2008, com a ratificação da Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência, por meio do Decreto Legislativo 186 de 09 de julho de 2008, sagrou temas antes não abordados e que têm grande relevância para esse estudo. Inclusive, cabe ressaltar que trata-se do primeiro texto internacional que possui força de norma constitucional no Brasil, conforme prevê a Emenda 45.

Em seu artigo 3º, "a", a Convenção garante "o respeito pela dignidade inerente, independência da pessoa, inclusive a "liberdade de fazer as próprias escolhas, e autonomia individual", bem como liberdade contra tortura ou tratamento ou punição cruel, inumana ou degradante, contra a exploração, violência e abuso, liberdade de movimento e nacionalidade. Ainda, garante o direito a "escolher seu local de residência, onde e com quem irão viver em bases iguais às outras pessoas, e não sejam obrigadas a morar em um sistema específico de moradia".

Está claro que o texto da Convenção trouxe à tona matérias de ordem pessoal, preocupando-se com a efetividade da norma e não somente a sua vigência. Vejamos a partir do art. 21:

(...) liberdade de procurar, receber e compartilhar informações e idéias, em iguais bases com outros, e por língua de sinais e Braille, meios alternativos e aumentativos de comunicação e todos os outros meios, modos e formatos de comunicação de sua escolha. (...) Nenhuma pessoa com deficiência, independente do local de residência ou arranjos de moradia, será submetida à interferência arbitrária ou ilegal de sua privacidade, família, lar ou correspondência, ou outros tipos de comunicação, ou a ataques ilegais a sua honra e reputação. (...) As pessoas com deficiência tenham igual oportunidade de [experimentar sua sexualidade] ter relacionamentos sexuais e outros relacionamentos íntimos, e experiência de paternidade e maternidade; Os direitos das pessoas com deficiência, que estejam em idade de casar e ter uma família, com base no consentimento livre e pleno dos cônjuges pretendentes seja reconhecido; Os direitos das pessoas com deficiência a decidir livremente e responsavelmente sobre o número e momento para ter filhos, ter acesso à informação apropriada a idade, educação reprodutiva e de planejamento familiar, e aos meios necessários para exercer esses direitos e oportunidades iguais de manter sua fertilidade;

(grifo nosso)

São medidas garantidoras da plena liberdade de ser, independente da condição física, social, intelectual que se encontrem. Nesse entendimento, essa é a maior expressão de garantia à liberdade individual já existente em todo o ordenamento conhecido.

Garantir e prover de forma explícita o direito à vida comum, às escolhas rotineiras e cotidianas, como "experimentar sua sexualidade". Isso parece ser, num primeiro momento, ousado, mas possui uma imensa relevância para os portadores de deficiência, que muitas vezes são tratados como pessoas incapazes sobreviverem autonomamente, dependendo da sua condição física ou mental. A limitação se dá na esfera física e não na qualidade anímica de ser, pois eles, independente de qualquer entrave sofrível, continuarão sendo, em si mesmos, humanos.


Notas

  1. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social e sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde. Institui, ainda, a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes e dá outras providências.
  2. Regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências.


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Fabrício Lopes. Os deficientes físicos, a normativa brasileira e a liberdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2204, 14 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13156. Acesso em: 18 abr. 2024.