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O Supremo Tribunal Federal, o depositário infiel e o direito-custo.

Um efeito indesejado

O Supremo Tribunal Federal, o depositário infiel e o direito-custo. Um efeito indesejado

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"No período das ‘legis actiones’, a execução se processava normalmente contra a pessoa do devedor, através da ‘legis actio per manus injectionem’. Confessada a dívida, ou julgada a ação, cabia a execução trinta dias depois, sendo concedido êsse prazo a fim de o devedor poder pagar o débito. Se este não fôsse solvido, o exeqüente lançava as mão sôbre o devedor e o conduzia a juízo. Se o executado não satisfizesse o julgado e se ninguém comparecesse para afiançá-lo, o exeqüente o levava consigo, amarrando-o com uma corda, ou algemando-lhe os pés. A pessoa do devedor era adjudicada ao credor e reduzida a cárcere privado durante sessenta dias. Se o devedor não se mantivesse à sua custa, o credor lhe daria diariamente algumas libras de pão. Durante a prisão era levado a três feiras sucessivas e aí apregoado o crédito. Se ninguém o solvesse, era aplicada ao devedor a pena capital, podendo o exeqüente matá-o ou vende-lo ‘trans Tiberim’. Havendo pluralidade de credores, podia o executado na terceira feira ser retalhado, se fosse cortado a mais ou a menos isso não seria considerado fraude".

Alfredo Buzaid [01]

Resumo

Traçar uma análise do reflexo econômico gerado no mercado pela decisão, em sede de habeas corpus, do Pleno do Supremo Tribunal Federal acerca da extinção da prisão civil do depositário infiel, é o objetivo desse breve artigo. Na medida do possível, não se buscou valorar a decisão, se justa ou injusta, se constitucional ou não. O que se pretendeu foi tão somente vislumbrar um cenário sem a possibilidade de tal prisão, e o quanto isso irá influenciar no cálculo empresarial/financista. Para isso, partiu-se da incorporação do Pacto de São José da Costa Rica ao direito positivo brasileiro, já que foi essa a causa petendi do Habeas Corpus 87.585/TO, passando pelo fim da referida prisão. Na parte final, analisou-se o reflexo dessa decisão no custo da atividade empresarial, mais precisamente da atividade bancária, no que tange aos contratos de alienação fiduciária, como pactos adjetos, já que era esse um campo onde a coercitividade da ameaça de prisão tinha grande influência no êxito da busca e apreensão do bem, com fins à solvência do débito.


1. Introdução

Antes de adentrar à problemática proposta, qual seja o reflexo da decretação pelo Supremo Tribunal Federal da impossibilidade de prisão civil do depositário infiel no custo da atividade empresarial/financeira, ou ainda na práxis forense, é imperioso traçar alguns comentários gerais sobre os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Todo o raciocínio desenvolvido na sequência será calcado na ideia de recepção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), tal como decidido no HC 87.585/TO, julgado pelo Pleno do STF, onde se assentou a impossibilidade (inconstitucionalidade?) da prisão civil do depositário infiel, decisão lastreada no § 7º, do art. 7º do referido pacto.

O HC 87.585/TO é paradigmático, não apenas pela unanimidade com a qual foi concedido, ou pelo teor dos votos ali lançados – cite-se, por exemplo, o voto vista do Ministro Celso de Mello proferido em substanciosas cinquenta e cinco páginas –, mas pela nova realidade jurídica que nele se alvitra. Pela palavra dos onze Ministros da Corte Suprema, medidas executórias devem recair sobre o patrimônio do devedor, não mais sobre seu corpus.


2. Da incorporação da CADH ao direito positivo brasileiro e o fim da prisão do depositário infiel.

Ao estudar os tratados internacionais, há que se ter em mente, sempre, seus dois planos de aplicação, pelo fato de tais avenças possuírem duas esferas de atuação. A primeira com eficácia intraterritorial, ou seja, os tratados incorporam-se ao ordenamento jurídico dos países que os subscrevem. Já a segunda, que é a finalidade principal de tais tratados, visa reger os paises nas suas relações internacionais, extraterritoriais, com o objetivo de implantar um patamar mínimo de ética e civilidade, é nesse sentido a lição de George Marmelstein [02]:

Inicialmente, é preciso que se diga que a aplicação principal dos tratados ocorre na esfera internacional. Assim, caso um país viole um tratado de direitos humanos ele poderá sofrer sanções no âmbito do direito internacional. O Brasil, por exemplo, já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Costa Rica, a indenizar a família de um portador de deficiências mentais que morreu após sofrer maus-tratos em um hospital psiquiátrico no interior do Ceará (caso Ximenes Lopes vs. Brasil)

Como referido acima, a aplicabilidade dos referidos Tratados não se esgota no plano internacional, pois podem ser incorporados ao ordenamento de seus países signatários, passando a ser fonte de direitos subjetivos para os cidadãos (direitos civis, direitos políticos, etc...), e, naturalmente, fonte de deveres para o Estado.

No caso do Brasil, tal incorporação se dá de acordo como procedimento previsto no § 3º, do art. 5º da Constituição da República, incluído no texto constitucional pela EC 45/2004, in verbis:

Art. 5º.

[...]

§ 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais.

Ainda no tocante aos precitados tratados, há algumas considerações a serem feitas, pois, com dito acima, a pacificação de que estes são recepcionados pelo ordenamento jurídico como Emendas Constitucionais só veio em 2004, com a EC/45.

Para a pesquisa aqui proposta, é forçoso perscrutar o destino dos tratados internacionais que foram incorporados ao ordenamento pátrio anteriormente à referida Emenda.

Afinal têm eles também força de Emenda Constitucional? Ou terão eficácia de Lei Ordinária? Ou, ainda, pertencerão à categoria das Leis Complementares?

Após a EC 45/2004, dois posicionamentos se formaram na doutrina e especialmente no Supremo Tribunal Federal em relação a Pacto de São Jose da Costa Rica, haja vista que o mesmo fora incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 678 de 06 de Novembro de 1992, portanto, antes da citada EC/45.

Tem-se, de um lado, a tese capitaneada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes defendendo a supralegalidade dos Tratados Internacionais de Diretos Humanos, sem, contudo, dar-lhes envergadura constitucional, ou seja, a Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH) ocupa no direito positivo brasileiro uma condição sui generis. "Vale mais" que leis, porém, "vale menos" que as normas constitucionais. É infraconstitucional e superlegal. Esse posicionamento é sintetizado no seguinte trecho [03] extraído do Habeas Corpus em comento:

Por essa razão, volto a enfatizar a tese perfilhada – conforme Sua Excelência bem destacou – no sentido de, realmente, esses tratados adentrarem o ordenamento jurídico constitucional brasileiro, com uma diferença: eles não têm a mesma hierarquia. Com isso, dogmaticamente, também estamos resolver todas essas questões colocadas em relação ao próprio depositário infiel. Assim os tratados adentram o ordenamento jurídico com um perfil diferenciado – tese já sustentada no Tribunal pelo Ministro Sepúlveda Pertence -, com força superlegal, mas infraconstitucional. (grifei)

Essa tese, antes já defendida pelo Ministro Sepúlveda Pertence, ressalva que os tratados internacionais foram recepcionados pelo sistema jurídico brasileiro como normas supralegais, contudo, caso queira o legislador dar-lhes status de norma constitucional, basta realizar o iter previsto no § 3º do art. 5º da Constituição. Endossaram expressamente esse posicionamento, no presente Habeas Corpus, os Ministros Menezes Direito e Carlos Britto.

Noutro giro, está a tese sustentada pelo Ministro Celso de Mello, o qual atribui, em especial por força § 2º do art. 5º da Constituição, com arrimo em doutrinadores como Celso Lafer, que o Pacto de São José da Costa Rica tem envergadura Constitucional, entendimento que foi acompanhado pelos Ministros Eros Grau e Ellen Gracie.

Assente-se, desde já, que as teses divergem apenas quanto à posição que o referido pacto ocupa no ordenamento jurídico, pois em relação à prisão civil do depositário infiel, ambas carreiam para o mesmo ponto: a impossibilidade.

Diante da robusta argumentação apresentada pelos Ministros no acórdão do HC 87.585/TO é forçoso concluir, em virtude do Pacto de São José da Costa Rica, pela extinção, pelo menos por enquanto, da prisão civil do depositário infiel. E aqui começam infindáveis questionamentos, pois como procederá o Poder Judiciário, ao nomear seus depositários judiciais, ou como se comportarão os próprios depositários sabendo que não mais paira sobre suas cabeças a possibilidade da prisão civil? Cabe aqui um adendo no sentido de que, embora não mais haja a prisão do depositário infiel, ainda resta o crime de fraude à execução, que sempre se constitui em desestímulo à eventual dissipação de bens, por parte do devedor, obviamente sem a mesma celeridade da prefalada prisão civil. Mas, dentre todos esses questionamentos, o que merece uma análise mais detida, a nosso ver, é a resposta que será dada pelo mercado, especialmente pelas instituições financeiras, diante desse novo cenário jurídico.

Que fique consignado que a finalidade desse estudo é analisar o posicionamento jurisdicional (impossibilidade da prisão do depositário infiel) e seu reflexo no mercado e nas práticas comerciais, notadamente nos contratos de alienação fiduciária. Não se busca aqui valorar o mérito dessa decisão, até porque, em nosso sentir, ela homenageia sobremaneira o princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma análise conjuntural, não axiológica.


3. O incremento do Direito-custo

A ingerência estatal na economia tem suscitado ao longo da história (especialmente da Idade Média em diante) o mais fabuloso desenrolar de teses jurídicas, econômicas e humanitárias. Em cada momento histórico é possível observar determinada tese subjugar as demais, sem, no entanto, suprimi-las, exterminá-las, ao contrário, basta a tese dominante, à época, deixar de dar respostas satisfatórias, e respostas satisfatórias significam deixar de atender aos anseios das classes dominantes, para, pacificamente, ou à força, ser substituída pela tese oposta. Do liberalismo ao "Welfare state" as funções estatais (legislativa, executiva e judiciária) sempre interfeririam, às vezes com menos, às vezes com maior intensidade na esfera econômica.

Na lição de Fábio Ulhoa Coelho [04] essa interferência pertence ao campo das "externalidades", termo que o autor assim define:

Externalidade é conceituada como todo efeito produzido por um agente econômico que repercute positiva ou negativamente sobre a atividade econômica, renda ou bem estar de outro agente econômico, sem a correspondente compensação [...] Tanto a poluição do ar como o aumento de espaço livre nas calçadas são, para o pedestre, externalidades da prestação do serviço de transporte coletivo, não ressarcidas de parte a parte.

Dentro da ideia de agente econômico está presente, sobretudo nos dias atuais, o Estado na sua forma tripartida. Ainda no que concerne às externalidades, o citado autor traça uma distinção entre as relevantes e as irrelevantes. "Quando o direito considera relevante uma certa externalidade e determina a sua compensação, opera-se a ‘internalização’. Isto é, a externalidade, que se define como efeito não compensável, deixa de ser externalidade" [05]. Naquilo que Fábio Ulhoa denomina de processo de internalização das externalidades, existem duas formas de concebê-lo. A primeira embasada na teoria da Economia do Bem-estar desenvolvida por Artur Pigou, na década de 1920. E a segunda, que é fruto da Analise Econômica do Direito, cujo precursor foi Ronald Coase, por volta de 1960. Sobre tais teorias assim pontuou o eminente comercialista [06]:

Na economia, podem ser mencionados dois diferentes modelos de internalização da externalidade: a ‘economia do bem-estar’ e a ‘analise econômica do direito’. A primeira considera a externalidade uma falha do mercado, que cabe ao estado corrigir através principalmente do direito tributário. Para a segunda, os próprios interessados devem negociar a internalização das externalidades, sendo função do direito apenas reduzir ao máximo os custos de transação.

De posse dessas informações, pode-se concluir, especialmente pela crítica que a análise econômica do direito faz à economia do bem-estar, que "a transposição da noção de ‘internalização de externalidades’ do campo do conhecimento econômico para o contexto da reflexão jurídica tem o grande mérito de alertar para o fato de que as obrigações impostas ao empresário têm a natureza de elemento de custo." [07]. Portanto, pode-se dizer que as ações estatais, mas não somente elas, invariavelmente refletem no custo da atividade empresarial. A esse elemento de custo, que deve ser considerado pelo empresário em seus cálculos, dá-se o nome de Direito-custo.

Quando esse ônus (direito-custo) advém de um ato normativo do Poder Executivo (medida provisória, decreto, portaria, resolução), ou quando se trata ato típico do Poder Legislativo (lei) esse reflexo se torna de mais fácil percepção por parte dos consumidores. Ocorre que essas "interferências" também podem – e frequentemente o são – provenientes de decisões do Poder Judiciário.

Assim também as decisões judiciais, a par das normas trabalhistas, previdenciárias, tributárias, de responsabilidade civil, ambientais, fazem parte do chamado direito-custo, e integram o cálculo dos custos das atividades empresariais.

Na atividade bancária, seja de fornecimento de crédito, financiamentos, investimentos, a lógica do direito-custo é a mesma da área empresarial, aliás, cada vez mais os bancos se assemelham a outras empresas. Os próprios bancos se denominam fornecedores de produtos e serviços, e é comum a instituição financeira se referir a um cartão de crédito, por exemplo, como um de seus produtos postos a venda no mercado.

Diante disso, e em consonância com o que já foi expendido acerca da extinção da possibilidade de prisão do depositário infiel, temos que a decisão proferida nos autos do HC. 87.585/TO constitui-se num importante elemento de custo para a atividade bancária, especialmente no tocante aos contratos de alienação fiduciária, como garantia do pagamento de financiamentos.

Em momentos como o atual, em que recentíssima decisão do Comitê de Política Monetária (COPOM) realizou mais um corte na taxa básica de juros (SELIC), reduzindo-a a 8,75% [08], tal medida pode não surtir os efeitos pretendidos.

Por exemplo, se um dos fins almejados pelo COPOM ao diminuir a taxa básica foi reduzir as taxas de financiamento de veículos e com isso "aquecer" o mercado, pode ser que tal desiderato não se dê na plenitude esperada, à medida que a garantia da alienação fiduciária não traz mais aos bancos e financeiras a mesma segurança de antes, pois (in)felizmente a maior coercitividade trazida por esse instituto – que era sem dúvida a possibilidade de prisão ao devedor, após conversão da alienação fiduciária em contrato de depósito – não mais subsiste no ordenamento pátrio.

Rechaçada pela Suprema Corte a prisão do depositário infiel, resta às instituições financeiras recalcular seu custo, de modo a enquadrá-lo nessa nova realidade, o que por certo será feito através de taxas de juros mais elevadas, com o fim de compensar as perdas, que inevitavelmente serão maiores e mais frequentes.

Não se trata de apologia aos bancos, nem tampouco de defesa da inadimplência, mas sim de constatação de uma realidade que, perversa ou não, salta aos olhos, pois o risco de o capital emprestado/financiado não retornar ao financiador é fator decisivo na definição da taxa de juros cobrada por este. Trata-se, ao final, de segurança jurídico-econômica, que inegavelmente resta abalada com essa posição do poder Judiciário.


4. Conclusão

a)Independentemente de qual tese (norma constitucional ou norma supralegal) prevalecerá acerca da incorporação do Pacto de São José da Costa da Rica ao ordenamento brasileiro, não há mais possibilidade de prisão civil do depositário infiel.

b)Essa impossibilidade gera, especialmente para as instituições financeiras, um novo cálculo empresarial, onde serão redimensionados os riscos das operações de financiamento em que a garantia é a alienação fiduciária do bem financiado;

c)Nesse cenário, inexoravelmente, haverá acréscimo nas taxas de juros, pois os riscos de o credor fiduciário não ter seu capital restituído também aumentaram;

d)Esse aumento das taxas, como de costume, recairá sobre o consumidor, seja ele bom ou mau pagador.


REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa, Vol. 1, 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007

MARMELSTEIN LIMA, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008

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Notas

  1. In "Do Concurso de Credores no Processo de Execução", citado pelo Ministro Celso de Mello no Voto Vista lançado no HC 87.585, fls., 252.
  2. MARMELSTEIN LIMA, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, pág. 196.
  3. Trecho da EXPLICAÇÂO da lavra do Sr. Ministro Gilmar Ferreira Mendes. HC 87.585/TO, fls. 305.
  4. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa, Vol. 1, 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, pag. 33.
  5. COELHO, Fábio Ulhoa.. Op Cit., pag. 34
  6. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. Cit., pag. 36
  7. COELHO, Fábio Ulhoa.. Op. Cit., pág. 36.
  8. COPOM confirma expectativas e reduz Selic a 8,75%. Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Edilson Francisco. O Supremo Tribunal Federal, o depositário infiel e o direito-custo. Um efeito indesejado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2275, 23 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13555. Acesso em: 19 abr. 2024.