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O novo estupro na ótica constitucional

O novo estupro na ótica constitucional

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O novo crime de estupro não alterou a solução jurídica anterior nas hipóteses de pluralidade de ações sexuais violentas contra a vítima no mesmo contexto fático.

Sumário – 1. A Controvérsia; 2. Constituição e proporcionalidade; 3. A proteção deficiente e a dignidade sexual no STF; 4. O concurso de crimes; 5. A ação penal; 6. Conclusão.


Ementa

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Assim, a partir de 10/8/2009, o antigo estupro, que consistia apenas na introdução do pênis na vagina (conjunção carnal com mulher), agora implica também a prática de qualquer ato libidinoso (antigo crime de atentado violento ao pudor), cometido inclusive contra homens.

Com essa providência, o legislador atendeu antiga reivindicação de parte do movimento feminista, conforme assentado por VALÉRIA PANDJIARJIAN e outras:

Mais lógico, do ponto de vista de política legislativa e criminal, seria que o crime de estupro (...) não abrangesse apenas a conjunção carnal, mas sim o ato sexual (...) praticado contra qualquer pessoa (...) [01]

Por outro lado, a nova Lei tornou o estupro investigável por ação pública condicionada à representação, mesmo quando resultar lesão grave ou morte, nos termos da nova redação do art. 225, CP. Excepcionou apenas os menores de 18 anos e os vulneráveis.

Essas alterações instalaram preocupante discussão jurídica, cujo resultado pode comprometer o enfrentamento à violência sexual e beneficiar os estupradores, principalmente os mais perversos e contumazes, a não ser que se dê a devida interpretação constitucional ao novo modelo. Vejamos.


1.A controvérsia

No sistema anterior, se o criminoso mantivesse conjunção carnal e também sexo anal ou oral, responderia por dois crimes: estupro e atentado violento ao pudor. A jurisprudência majoritária entendia que havia concurso material de crimes (art. 69 do Código Penal), de forma que a pena final do condenado seria resultado do somatório das penas dos dois crimes.

Com a mudança legislativa, há quem sustente que o abusador deverá responder por apenas um crime. Afirmam que agora a pena será única, pois o mesmo tipo penal (art. 213) fala em constranger à "conjunção carnal" ou "outro ato libidinoso". Assim, o novo estupro seria crime de ação múltipla: tanto faz o condenado constranger a vítima à conjunção carnal e, no mesmo contexto, cometer outros atos libidinosos, como sexo oral ou anal. A pena será por apenas um crime.

O seguinte caso ilustra bem o absurdo de tal entendimento:

Em 13/2/2004, R.A.B, empunhando uma arma de fogo, abordou J.L.S e a obrigou a se submeter à conjunção carnal. Em seguida, o estuprador introduziu seu pênis no ânus da vítima e a sodomizou. Restou condenado a uma pena de 14 anos de prisão: 7 pelo sexo vaginal e 7 pelo sexo anal. Após a nova lei, o acusado recorreu e o Tribunal entendeu que R.A.B deveria ficar impune por um dos atos. Sua pena foi reduzida para 7 anos de prisão. Confiram o acórdão:

- O acusado deve ser beneficiado com a reforma promovida pela Lei n. 12.015/2009, que promoveu a junção dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, tornando o delito de ação múltipla.

- Por se tratar de benefício ao réu, deve retroagir, pois, agora, mesmo que o agente pratique mais de uma conduta criminosa será punido somente por uma, sendo que a pena básica do tipo fundamental do crime de estupro permanece a mesma. [02]

Pela decisão, mesmo que o acusado, além do sexo anal e vaginal, tivesse realizado outros atos libidinosos, ou seja, a introdução de seu pênis na boca da vítima ou a ejaculação no ânus, boca, vagina ou qualquer outra parte do corpo desta, sua pena não passaria dos 7 anos de prisão (quando muito, aumentaria apenas alguns meses, na análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal).

1.1.1. A solução legislativa

O entendimento acima não resiste a uma interpretação sistemática da legislação e se afasta da política criminal implantada pelo legislador.

Ora, ao unir os tipos penais num só, o legislador não alterou a concepção original de que vários atos criminosos implicam punição na mesma proporção.

De fato, o novo art. 213 é um tipo penal misto de conteúdo cumulativo, ou seja, prevê várias condutas não fungíveis entre si, que geram a obrigação de punição individual de cada ato criminoso. Com propriedade, FERNANDO BARBAGALO dirimiu a questão:

Contudo, pensamos que não se trata de tipo penal misto de conteúdo alternativo (como é o tráfico de entorpecentes, art. 33, Lei n° 11.343/06) em que há uma fungibilidade entre as condutas, sendo indiferente a realização de uma ou mais conduta, pois a unidade delitiva permanece inalterada. Para nós, a nova formação normativa é um tipo penal misto de conteúdo cumulativo (como é o parto suposto, art. 242, CP) em que não existe fungibilidade entre as condutas, autorizando a aplicação cumulativa de penas ou o reconhecimento da continuidade.

Ainda que por uma questão de estilo o núcleo do tipo constranger tenha sido utilizado em apenas uma oportunidade, nos parece claro que há duas condutas típicas incriminadas no preceito primário: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal e constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (...)

Edson Miguel da SILVA JÚNIOR também defende a punição correta, acrescentando que o novo tipo continua sendo definido como crime único quando o dolo for abrangente e concurso material quando ocorrer dolos autônomos – ato libidinoso destacado da conjunção carnal. No entanto, o eminente doutrinador adverte: outros atos libidinosos, agora, são apenas os atos análogos à cópula, isto é, os que tendem à satisfação do instinto sexual de um modo análogo ao coito. Dessa forma, o beijo lascivo ou toques íntimos, dependendo do caso, não configurará estupro, mas outro tipo penal (importunação ofensiva ao pudor, por exemplo).

Para além das questões legais, que fogem ao objetivo deste artigo, busquemos o aspecto constitucional.

1.2. A punição é obrigatória ou depende das vítimas?

A nova Lei exige representação das vítimas mesmo quando da prática do estupro resulte lesão "leve" (quebra de nariz ou mandíbula), lesão grave (aborto, perda de membro etc.) ou a própria morte. É a primeira vez que a punição de um assassinato dependerá de autorização da vítima! Só não esclareceram como a morta irá se pronunciar (reviram o conselho de Paulo Maluf, para piorá-lo: "se estuprar, mate!").

O Supremo Tribunal Federal (STF) e a Constituição não admitem essa solução, pois até o estupro que resulte em lesão "leve" – ou aquele praticado mediante vias de fato ou grave ameaça – é de ação penal incondicionada. Assim, o caput do novo art. 225 é flagrantemente inconstitucional, como veremos adiante.


2.Constituição e proporcionalidade

A interpretação de que a nova legislação beneficia o estuprador está condizente com a Constituição? Pode o Poder Judiciário diminuir a proteção aos direitos fundamentais, notadamente no campo da dignidade sexual? E o legislador, poderia fazê-lo? Em cena a constitucionalidade dos novos artigos 213 e 225 e o princípio da proporcionalidade.

2.1. Proibição de excesso

Vem de longa data a discussão sobre a melhor forma de garantir os direitos fundamentais, mormente quando há conflitos entre eles.

No direito penal, expressão maior do poder estatal, essa busca sempre foi dramática, pois boa parte dos direitos humanos foi forjada para proteger o cidadão da sanha abusiva e covarde dos órgãos de repressão. A história da tirania estatal é perpassada pelo direito penal.

Por isso, em sua origem, o princípio da proporcionalidade foi desenvolvido para evitar os excessos do poder absoluto, visando proteger o súdito (ou cidadão) do rei. Ficou célebre a frase de JELLINEK: "Não se abatem pardais disparando canhões".

Dessa forma, a proporcionalidade originou-se no direito administrativo francês com o fim de limitar a ação do Poder Executivo, migrando para a Alemanha, onde é usada como sinônimo de proibição de excesso (Übermassberbot). Este país alçou o princípio à categoria constitucional, para conformar também o legislador e o juiz à Constituição, influenciando a maioria dos países europeus, notadamente Portugal, Espanha, Itália e Áustria, como leciona Suzana de Toledo BARROS. No Brasil, desenvolveu-se por influência de juristas portugueses.

2.2. Proibição de proteção deficiente

Na atualidade, tem-se repensado o princípio da proporcionalidade para resguardar o cidadão não apenas da ação (excessiva) estatal, mas também de sua omissão.

É que, para além de não abusar de seus cidadãos, o Estado deve garantir o gozo dos direitos fundamentais, promovendo-os e protegendo-os contra atos de particulares.

Assim, a proporcionalidade ganhou outra vertente, sintetizada pela expressão proibição de proteção deficiente (Üntermassverbot), oriunda da doutrina e jurisprudência alemã. Lênio STRECK explica:

A estrutura do princípio da proporcionalidade não aponta apenas para a perspectiva de um garantismo negativo (proteção contra os excessos do Estado), e, sim, também para uma espécie de garantismo positivo, momento em que a preocupação do sistema jurídico será com o fato de o Estado não proteger suficientemente determinado direito fundamental, caso em que estar-se-á em face do que, a partir da doutrina alemã, passou-se a denominar de "proibição de proteção deficiente" (Untermassverbot). A proibição de proteção deficiente, explica Bernal Pulido, pode definir-se como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja aplicação pode determinar-se se um ato estatal - por antonomásia, uma omissão - viola um direito fundamental de proteção (...)

Como analisar se há omissão estatal? CANOTILHO (2003) responde: A verificação de uma insuficiência da juridicidade estatal deverá atender à natureza das posições jurídicas ameaçadas e à intensidade do perigo de lesão de direitos fundamentais.

Assim, pode ocorrer inconstitucionalidade por proteção deficiente quando o Estado deixa de criminalizar uma conduta, diminui a pena de tipo penal ou impede a prisão cautelar em crimes graves (hediondos, por exemplo).

Dessa forma, para além da proibição de excesso, devidamente garantida pelos princípios e writs constitucionais (habeas corpus, mandado de segurança etc.), a atuação estatal deve se moldar também à proibição de proteção deficiente. Esses dois aspectos resumem o princípio da proporcionalidade no âmbito dos Estados Democráticos de Direito na atualidade. Sua inobservância implica a inconstitucionalidade do ato público.

2.2.1. A proteção deficiente na legislação

A comissão do Senado que elaborou o projeto do novo Código de Processo Penal adotou a proibição de excesso como princípio geral (art. 5º) e para análise das medidas cautelares (art. 517, parágrafo único). Omitiu-se, porém, quanto à proteção deficiente.

Detectando a falha, o senador Marconi Perillo apresentou proposta para acrescentar a expressão proteção deficiente ao art. 517, parágrafo único, conforme relatório apresentado pelo senador Renato Casagrande em 1/12/2009. É importante que se faça esse acréscimo também ao art. 5º, para evitar errôneas interpretações sobre os direitos fundamentais.


3. A proteção deficiente e a dignidade sexual no STF

O leading case sobre a proteção deficiente no Brasil, com sua adoção expressa, foi julgado em 2006 pelo Supremo Tribunal Federal [03]. Tratava-se exatamente da dignidade sexual do ser humano, no caso, uma menina de 9 anos!

Consta que, dos 9 aos 12 anos de idade, a criança fora estuprada por seu tutor (marido de sua tia). Quando engravidou, iniciou uma união estável com seu agressor.

Naquela ocasião, vigorava a regra segundo a qual o estuprador podia se casar com a vítima para ser livrar da punição (art. 107, VII, Código Penal). Forte nesse argumento, o acusado pediu sua absolvição ao STF, por analogia à união estável, e invocou o art. 226 da Constituição, segundo o qual a família é a base da sociedade, estando protegida pelo Estado.

O ministro GILMAR MENDES refutou a impunidade em nome da proibição de proteção insuficiente:

De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico (...)

Sobre a aplicação do princípio no direito penal, o ministro foi contundente:

Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental (...)

E continuou:

Conferir à situação dos presentes autos o status de união estável, equiparável a casamento, para fins de extinção da punibilidade (nos termos do art. 107, VII, do Código Penal) não seria consentâneo com o princípio da proporcionalidade no que toca à proibição de proteção insuficiente.

Isso porque todos os Poderes do Estado, dentre os quais evidentemente está o Poder Judiciário, estão vinculados e obrigados a proteger a dignidade das pessoas (...)

A discussão no plenário da Corte Maior foi agitada e demarcou o grau da repulsa jurídico-social ao estupro. A ministra ELLEN GRACIE comparou a situação da vítima a uma escravidão sexual e CARLOS BRITO, questionado se a prisão privaria a vítima de seu marido, irritou-se: livrar a adolescente da convivência com o agressor será um grande bem. EROS GRAUS complementou:

Por outro lado, não me impressiono com os argumentos relativos à família, eis que, de acordo com minha compreensão, família que começa com uma violência contra uma menina de 9 anos – e aparentemente prossegue com mais violência ainda -, não é, seguramente, a família da qual nasce a sociedade civil e depois se realiza, como suprassunção, no Estado. Nem ela é, na minha pré-compreensão, família que deva ser preservada a partir dos valores constitucionais.

Por maioria, a Corte manteve a condenação do acusado, nos termos do voto do ministro GILMAR MENDES.

Verifica-se que, pela norma então vigente (inc. VII, art. 107, Código Penal), a punibilidade deveria ter sido extinta, pois a união estável é protegida pela Constituição (art. 226, § 3º). Discriminar o acusado por não ter contraído casamento ofenderia às largas o princípio, igualmente constitucional, da igualdade. Porém, analisando os direitos em jogo, a dignidade sexual falou mais alto, em nome da proibição de proteção deficiente.

Vejamos as implicações desse princípio ao novo estupro, referente ao concurso de crimes e à ação penal.


4.O Concurso de crimes no estupro

A interpretação de que o novo crime de estupro implica crime único, mesmo se praticados vários atos libidinosos, ofende claramente a Constituição.

Sopesemos, sob o enfoque da proporcionalidade, os interesses e direitos fundamentais em jogo. Advirta-se que, havendo tensão ou conflito de direitos fundamentais (dos réus ou das vítimas), deve-se buscar a proteção mais adequada possível a um dos direitos em risco, e da maneira menos gravosa ao outro, sem permitir o sacrifício integral de um deles (Eugênio Pacelli de OLIVEIRA, 2008).

Primeiramente, o interesse do criminoso é, em regra, ser inocentado, mesmo se culpado, e não ser punido, mesmo quando mereça, em contraponto com o interesse da vítima e da sociedade.

Por outro lado, o acusado do crime tem direito constitucional a um julgamento justo, que implica uma pena proporcional a seus atos (não excessiva). Por sua vez, a vítima tem o direito à liberdade sexual (já violado pelo estuprador, sem que o Estado pudesse ter impedido). Consumado o crime, a vítima tem também direito a um julgamento justo, com a fixação de uma pena que puna todos os atos criminosos contra ela praticados. Por fim, a coletividade tem direito a uma punição correta, para que o exemplo punitivo não incentive outros a cometer os mesmos atos. Aliás, esta é a maior função do direito penal: evitar a continuidade do crime e garantir o direito constitucional à segurança de todos os cidadãos/ãs.

No ponto, não há grandes divergências entre o direito constitucional de um e de outro. O condenado NÃO tem direito constitucional à impunidade, quando provada sua culpa, e nem a uma pena abaixo da reprovabilidade social (e constitucional) de seus atos.

Nesse trilhar, é patente que cada ato sexual importante direcionado ao corpo humano ofende bens jurídicos variados. A introdução do pênis ou outro objeto em qualquer orifício corporal demonstra o grau de perversidade do criminoso e gera danos e dores diferentes e humilhantes às vítimas. Beneficiar os condenados com a impunidade servirá de incentivo à criminalidade sexual, pois será mais vantajoso "usar e abusar" das vítimas de todas as formas possíveis. O único limite dos tarados será sua própria criatividade!

Portanto, a tese da pena única viola a proibição de proteção insuficiente, pois destrói ou mitiga o direito constitucional à dignidade (art. 1º, III), à liberdade (inclusive sexual, art. 5º, caput), à segurança (art. 5º, caput, e art. 144) e à incolumidade física e psíquica (art. 144).

Nessa esteira, o próprio direito constitucional dos condenados à igualdade (art. 5º, caput) e à individualização da pena (art. 5º, XLVI) restaria violado com a pena única. Ora, aquele que cometer apenas um ato criminoso (sexo oral, por exemplo) teria a mesma pena daquele que praticar outras violações importantes (sexo oral + anal, sexo vaginal + anal, etc.). A pena do menos "culpável" seria excessiva, pelo menos em comparação com a do outro. A fixação de pena-base diferenciada (art. 59, CP), pregada por alguns, não resolveria o problema, pois o pequeno aumento decorrente não seria compatível com a natureza do ato violento praticado e seus danos à dignidade sexual.

Por outro lado, a pena justa (punição para cada ato importante) não gera qualquer excesso punitivo contra a liberdade dos condenados. Estes não têm o direito de cometer vários crimes e ser punidos apenas por um.

Com isso, não se está abatendo pardais com canhões. Ao contrário, busca-se a mesma fórmula antes aplicada, a qual nunca foi considerada inconstitucional (excessiva). Afinal, com a licença do trocadilho, não se protegem pardais alimentando gaviões!

4.1 Analisando os subprincípios da proporcionalidade

Chegamos à conclusão de que a aplicação de pena única para atos criminosos importantes ofende a Constituição. Resta analisar se esse entendimento atende aos requisitos do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, nos termos preconizados pela doutrina nacional e estrangeira (FEITOZA, 2009).

De fato, o princípio da proporcionalidade está subdivido em princípios, assim definidos por Bernal Pulido [04]:

1.da adequação ou da idoneidade: a intervenção nos direitos fundamentais deve ser adequada para contribuir à obtenção de fim constitucionalmente legítimo ;

2.da necessidade: toda medida de intervenção nos direitos fundamentais deve ser a mais benigna com o direito fundamental afetado, entre todas que tenham pelo menos a mesma idoneidade.

3.da proporcionalidade em sentido estrito: a importância da intervenção no direito fundamental deve estar justificada pela importância da realização do fim perseguido.

Pois bem, a aplicação da pena em concurso de crimes é adequada ao fim a que se destina, pois favorece a realização do fim constitucional visado, qual seja, proteger os direitos fundamentais à segurança e à incolumidade física/psíquica.

Essa aplicação é necessária, pois não há outro meio, menos rigoroso, de punir o crime referido. A punição penal deve ser aplicada aos fatos mais graves. O estupro é crime hediondo, equiparado pela Constituição à tortura e ao terrorismo, portanto merece a exata reprimenda legal. Esta passa pela punição correta para cada ato criminoso importante que ofenda a dignidade sexual.

Por fim, é proporcional em sentido estrito, já que se busca a punição de cada condenado na medida de sua culpabilidade (responsabilidade), privilegiando os menos culpáveis. O fim buscado é proporcional ao meio utilizado, e vice-versa. Protege-se a dignidade sexual sem causar danos aos acusados. O custo-benefício é patente, pois esse entendimento não significará mais rigor ou aumento de pena em comparação com o sistema anterior à nova Lei. Almeja-se a máxima proteção à liberdade sexual, sem, no entanto, criar excessos na repressão criminal. Esse é o grande desafio do direito penal constitucional na atualidade.


5.A ação Penal no crime de estupro

A nova Lei, em substituição à ação penal privada (art. 225, caput, CP), instituiu como regra a ação penal pública condicionada à representação. A ação será pública incondicionada apenas se a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável (art. 225, parágrafo único, CP).

De plano, verifica-se que a regra geral pouco mudou. Tanto a norma anterior quanto a atual exigem providências da vítima para a investigação e o processo. Antes, mediante queixa; agora, representação. A inércia das vítimas maiores de 18 anos e não "vulneráveis" redundará na impunidade dos crimes.

Essa disposição é constitucional? Vejamos.

5.1.A ação penal em sua origem: a discriminação do feminino

A ação penal privada é própria dos crimes considerados insignificantes ou daqueles em que a publicidade ou o escândalo (strepitus judicii) possam afetar a honra das pessoas e a dignidade das famílias, causando mal maior que a impunidade do próprio criminoso (TOURINHO FILHO, 1997)

O legislador de 1940 instituiu a ação penal privada como regra nos chamados crimes contra os costumes, de forma que somente as vítimas podiam denunciar o criminoso e pedir sua punição. Segundo juristas, a "boa intenção" do legislador era a de proteger a intimidade das vítimas, para evitar escândalos.

Essa opção era coerente com o sistema então implantado. A violência sexual era considerada ofensa aos costumes, e não à pessoa ou à sua dignidade. A Lei visava preservar a tradição, os costumes sexuais, independente do grau de violência e dos danos sofridos pelas vítimas.

Nessa sociedade, ao marido era permitido estuprar suas esposas, em nome do debito conjugal. Se fosse estuprada por terceiro, a mulher sequer podia oferecer queixa sem a autorização marital, porque era considerada INCAPAZ, conforme art. 35 do Código de Processo Penal (só revogado em 1997!). Portanto, a ação penal privada não visava proteger a intimidade das vítimas, mas a de seus familiares, principalmente maridos, pais, etc.

Por isso, o estupro praticado por terceiro era considerado uma desonra, uma vergonha, mas à vítima e a seus familiares e não ao estuprador. Este não tinha que se envergonhar de seu ato, pois sempre se reconheceu ao masculino o direito de desejar violentamente uma mulher, principalmente porque "com certeza, ela deu motivos". Era conhecido o bordão: "mulher direita não é estuprada". A promotora de Justiça Danielle Martins SILVA (2009) esclarece:

As relações de gênero são, primordialmente, relações de poder, sendo certo que na seara da sexualidade feminina se manifesta de forma mais contundente o controle e o poder masculino.

O estupro reflete, de forma violenta, uma face deste poder: a vítima não dispõe de seu próprio corpo, porquanto um de seus papéis na divisão sexual de trabalho constituída sob a lógica androcentrista, que é assimilada e reproduzida pelo senso comum – inclusive do estuprador –, é o de disponibilizar seu corpo para a satisfação sexual do homem.

Por isso a tradição patriarcal, durante muito tempo, consentiu em um certo padrão de violência contra as mulheres. Ao homem era designado o papel "ativo" na relação social (ocupação dos espaços públicos de poder) e sexual, ao tempo em que à mulher era designada a ocupação do espaço privado, doméstico, sendo certo que a sexualidade feminina restringia-se à passividade e reprodução.

5.1.1. Estupra, mas casa!

Como se não bastasse, a norma penal incentivava o estuprador a se casar com a vítima, livrando-a da solteirice. Isso porque a "desonrada", que oficialmente tinha perdido a virgindade com o estupro, não conseguiria arrumar um casamento.

Assim, para "o bem" da vítima (de novo a "boa intenção" do legislador), seu casamento com o agressor extinguia a punibilidade, nos termos do inc. VII do art. 107 do Código Penal. Era o sistema da "escravidão sexual", como nomeou com propriedade a ministra Ellen Gracie (vide item 3).

Essa norma, só revogada em 2005, complementava o conselho de Paulo Maluf (estupra, mas não mata!), revigorando-o: estupra, mas casa!

5.1.2. Um peso, duas medidas

Pelo Código Penal de 1940, o estupro é o único crime cometido com violência ou grave ameaça a depender de autorização das vítimas.

De fato, são de ação pública incondicionada os crimes de dano qualificado pela violência, grave ameaça ou com emprego de substância inflamável ou explosiva (art. 163, parágrafo único, incs. I e II, CP); contra o patrimônio, praticado com violência ou grave ameaça (art. art. 183, inc. I, CP) ou, ainda, de exercício arbitrário das próprias razões, com emprego de violência (art. 345, parágrafo único, CP). Em nenhum destes casos as vítimas podem renunciar ao processo (LIMA, 2009).

Curioso que, apesar do espírito liberal-individualista do direito penal brasileiro, em que o patrimônio é mais importante do que a pessoa, repudiou-se a violência ou grave ameaça.

Em sentido contrário, aceitou o legislador a prática de violência e grave ameaça, desde que direcionada ao estupro.

Assim, se o sujeito danificasse o veículo de uma pessoa, seria processado obrigatoriamente pelo Ministério Público. Se, ao invés de amassar o carro, estuprasse sua dona, ficaria impune, caso a vítima não encontrasse forças para acioná-lo. Tudo a pretexto de proteger a intimidade da vítima(?!), evitando escândalos.

5.2. A reação do STF em nome da proteção eficiente

5.2.1. A Súmula 608 e a dignidade sexual

Inconformado com o sistema omisso do Código Penal, o Supremo Tribunal Federal editou, em 17/10/1984, a Súmula 608, forjada para estabelecer investigação e processo obrigatório quando o estupro for praticado com violência real. Confira-se:

No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada.

Interpretou-se que o crime de estupro (de ação privada) é constituído por elementos ou circunstâncias descritas como crimes autônomos, que se processam mediante ação pública. Estes alteram a natureza jurídica da ação penal, tornando-a pública incondicionada, em razão da regra dos crimes complexos (art. 101 do Código Penal).

De fato, compõem o crime de estupro, por exemplo, o constrangimento ilegal, a ameaça, a lesão corporal ou as vias de fato, que são infrações penais autônomas (previstas, respectivamente, nos arts. 146, 147, 129 do Código Penal e art. 21 da Lei de Contravenções Penais) e de ação penal pública incondicionada (com exceção do crime de ameaça, que depende de representação).

Essa interpretação sofreu duras críticas, pois muitos alegavam que o crime de estupro não é, tecnicamente, complexo e, portanto, depende de ação penal privada (Jesus, 1998).

Sem entrar no mérito dessa discussão, temos que o STF buscou (forçou?) uma saída legal para atingir objetivo flagrantemente constitucional, qual seja, a dignidade sexual. Essa opção ficou clara nas palavras do ministro Cunha Peixoto, num dos julgados que motivaram a edição da Súmula:

A natureza do delito em questão coloca em primeiro plano o interesse social, mesmo porque a violência é um mal que afeta a sociedade como um todo (STF, RE 92102, julgado em 27/6/1980).

Os acontecimentos posteriores reforçaram essa interpretação constitucional, de forma a se aplicar, implicitamente, a proibição de proteção deficiente. Vejamos.

5.2.2. Estupro com violência física (lesão "leve" ou vias de fato)

A Súmula foi aplicada notadamente aos casos de estupro praticado com agressão física, pois esta sempre implicará lesão corporal "leve" ou vias de fato. Ambas as infrações são de ação pública incondicionada, portanto o crime de estupro também deve sê-lo, em razão da Súmula 608. Confira-se:

TJSP "Tratando-se de crime sexual praticado mediante violência real, causadora de vias de fato ou de lesões corporais de natureza leve, a ação penal é pública incondicionada, legitimando o Ministério Público a promovê-la." [05]

Mais recentemente, o próprio STF interpretou que a Súmula 608 abrange qualquer violência física, não apenas a lesão corporal "leve":

STF - HABEAS-CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ESTUPRO. TENTATIVA. VIOLÊNCIA REAL CARACTERIZADA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 608-STF. 1. Estupro. Tentativa. Caracteriza-se a violência real não apenas nas situações em que se verificam lesões corporais, mas sempre que é empregada força física contra a vítima, cerceando-lhe a liberdade de agir, segundo a sua vontade. 2. Demonstrado o uso de força física para contrapor-se à resistência da vítima, resta evidenciado o emprego de violência real. Hipótese de ação pública incondicionada. Súmula 608-STF. Atuação legítima do Parquet na condição de dominus litis. Ordem indeferida. [06]

Por outro lado, alguns alegavam que a Súmula só era apropriada aos casos de violência física (lesão corporal ou vias de fato), excluindo-se a violência moral (grave ameaça). Porém, a jurisprudência deu uma guinada nesse entendimento. Definitivamente, a questão migrou da esfera legal para a constitucional. Vejamos.

5.2.3. Estupro com violência moral (grave ameaça)

É patente que a violência real, como previsto na Súmula, engloba tanto a violência física quanto a moral. Ora, violência real é apenas o oposto de violência ficta ou presumida, antigamente prevista no art. 224 do Código Penal (vítima menor de 14 anos, alienada ou impossibilitada de oferecer resistência). A Súmula, portanto, abarcou o estupro cometido com grave ameaça.

Porém, muitos julgados afastaram a Súmula no estupro cometido com grave ameaça. Julgavam que o crime de ameaça se procede mediante representação. Assim, quando esta integrasse o núcleo do estupro, não teria sentido dispensar a autorização da vítima. Quando muito, dever-se-ia exigir representação, para se aplicar a regra dos crimes complexos.

Apesar disso, boa parte de nossa jurisprudência aplicou a Súmula, ora desconsiderando a regra dos crimes complexos, ora "emplacando" o constrangimento, núcleo do tipo de estupro, como responsável pela incondicionalidade. Confira-se:

TJSP "O Ministério Público é parte legítima para promover a ação penal no crime de estupro, tratando-se de atentado sexual concomitante ou subsequente ao roubo, pois, paralisadas as vítimas pelo medo e impossibilidade de qualquer resistência, caracteriza-se o crime cometido mediante violência, cuja persecução se faz por ação pública incondicionada. Por outro lado, o crime de constrangimento ilegal, que é de ação pública, compõe, com fato constitutivo, o crime complexo de estupro, fazendo prevalecer sobre a regra excepcional do caput do art. 225 do CP a regra geral do art. 101, que determina ser sempre pública a ação penal quando entre na composição de um crime complexo fato que, isoladamente, constitui crime de ação pública." [07]

TJRJ "O Ministério Público tem legitimidade para oferecer denúncia pela prática de estupro, por ser crime complexo, de ação penal pública incondicionada (inclui em seu bojo o constrangimento ilegal, caracterizado pelo fim da posse sexual)." [08]

TJSP "No plano dos crimes sexuais, o procedimento súbito do agente, que surpreende a vítima e impede sua defesa, configura violência real. E, pela presença desta, sem dúvida, de ação penal pública incondicionada o caso, conforme a Súmula 608 do STF, subsidiariamente aplicável, em nome de analogia, por envolver matéria de natureza processual." [09]

Nesse trilhar, o STF consagrou a obrigatoriedade da persecução penal em nosso sistema constitucional, mesmo contra disposição expressa do Código Penal. Vejamos:

STF - Habeas Corpus. Rapto seguido de estupro. 2. Absolvição em primeiro grau, com base no art. 386, VI, do CPP. 3. Com a devolução integral ao segundo grau da espécie, em face do recurso amplo, e não parcial, do MP, nada impede o acolhimento dos termos da denúncia, pelos crimes de rapto e estupro, com análise da prova dos autos. 4. Configurada a violência real, inclusive pelo uso de arma de fogo, torna-se, no caso, inequívoca a legitimidade ativa do MP para proceder tal como ocorreu, sendo certo, ainda, que a vítima representou, perante a autoridade policial. Habeas Corpus indeferido. [10]

5.2.4. Reviravolta constitucional

Os julgados do STF que motivaram a Súmula 608, inobstante visarem à dignidade sexual, buscaram uma análise estritamente legal da questão, em razão da teoria dos crimes complexos.

Com a aplicação da Súmula ao estupro praticado mediante grave ameaça, caiu por terra a interpretação legal, como vimos no item anterior.

No entanto, a edição da Lei 9.099/95 deu novo fôlego aos que não concordavam com a Súmula 608.

É que o art. 88 daquela Lei passou a exigir representação para o crime de lesão corporal leve. Por analogia, a contravenção de vias de fato também passou a ser de ação penal condicionada. Portanto, o crime de estupro praticado mediante violência física deveria seguir o destino de seus crimes constituintes. Pelas regras do crime complexo, a ação penal voltaria a depender de autorização das vítimas (representação ou queixa). Destruiu-se a Súmula 608... Será?

Chamado a dirimir a questão, o STF não se conformou com esse entendimento. Ao julgar o HC 82.206, manteve integralmente a Súmula 608. Confira-se:

O advento da Lei 9.099/95 não alterou a Súmula STF 608 que continua em vigor. O estupro com violência real é processado em ação pública incondicionada. Não importa se a violência é de natureza leve ou grave. 2. O Ministério Público ofereceu a denúncia após a representação da vítima. Não há que se falar em retratação tácita da representação. 3. Nem é necessária representação específica para o delito de estupro, quando se trata de delito de estupro com violência real. 4. No caso, inexiste decadência do direito de queixa por não se tratar de ação penal privada. 5. A jurisprudência do Tribunal pacificou-se no entendimento de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor caracterizam-se como hediondos. Precedentes. Inviável a progressão do regime. HABEAS conhecido e indeferido. [11]

Dessa forma, ficou claro que não é a complexidade do crime de estupro que gera a obrigatoriedade de punição, mas a própria gravidade do fato, sua repugnância social e sua hediondez. Para garantir a dignidade sexual, o STF optou por interpretação francamente constitucional. Na prática, revogou tanto o Código Penal (na parte em que previa ação privada) quanto o art. 88 da Lei 9099/95. Foram ambos considerados, implicitamente, inconstitucionais. No ponto, aproximou-se de um dos julgados históricos que motivaram a Súmula, verbis:

A natureza do delito em questão coloca em primeiro plano o interesse social, mesmo porque a violência é um mal que afeta a sociedade como um todo (Voto do ministro Cunha Peixoto no RE 92102, julgado em 27/6/1980).

Acatando essa orientação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a reconhecer que o estupro com grave ameaça é de ação pública incondicionada:

STJ - Habeas corpus. Estupro. Violência real. Conformar-se, em ordem a legitimar o uso da ação penal pública (STF, súmula 608), quando a liberdade de locomoção da vítima é tolhida em virtude do emprego de arma de fogo, mesmo que não ocorra a deflagração de tiros ou disparos. Ordem denegada. [12]

STJ - PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. VIOLÊNCIA REAL. AÇÃO PENAL. SÚMULA Nº 608-STF. I - Na linha de precedentes desta Corte, a expressão violência real alcança a denominada violência moral (no caso, grave ameaça com emprego de arma), estando, aí, tão só excluída a violência presumida. Além do mais, o art. 101 do CP, na dicção predominante, alcança o estupro como crime complexo em sentido amplo. II - Legitimidade do Parquet para a propositura da ação penal. Recurso provido. [13]

Trilhando esse caminho, a jurisprudência mais autorizada pacificou o entendimento constitucional:

TJDF "Apelação criminal. Estupro tentado. Grave ameaça. Ação penal. Regime prisional. 1. A tentativa de estupro mediante ameaça exercida com uma faca é crime complexo em sentido amplo, integrado por fato (constrangimento ilegal) que, de per si, constitui crime sujeito a ação penal pública incondicionada, o que atrai a incidência do CP 101 que prevalece sobre o CP 225, caput. 1.1. Consoante a jurisprudência do STJ, a expressão violência real (STF 608) abrange a física e a moral, excluída tão só a presumida." [14]

TJSC "Ainda considerando que o crime de estupro e, em conseqüência, os de atentado violento ao pudor e o rapto violento, é crime complexo, no sentido amplo, aplicar-se-ia o art. 101 do CP, com fundamento não mais no art. 129, mas no art. 146 do mesmo Estatuto, que prevê o crime de constrangimento ilegal. Como os crimes contra os costumes referidos têm como elementos constitutivos o constrangimento ilegal, pois na verdade não passam de espécies mais graves do referido ilícito, devem ser eles apurados mediante ação penal pública incondicionada quando praticados com violência ou grave ameaça, bem como quando o agente reduziu, por qualquer meio, a capacidade de resistência da vítima. Parece-nos a solução mais adequada à situação criada com o advento da Lei nº 9.099/95, quando se aceita a aplicação do art. 101 do CP nas hipóteses de crime complexo em seu sentido mais amplo (Julio Fabbrinie Mirabete)." [15]

Definitivamente, a Constituição exige apuração obrigatória de todo crime de estupro!

5.3. A inconstitucionalidade do novo art. 225, caput, do Código Penal

A nova Lei renegou a antiga expressão crime contra os costumes e, bebendo nas águas constitucionais, o renomeou como ofensa à dignidade sexual.

Contraditoriamente, porém, estabeleceu que o estupro praticado contra maiores de 18 anos e pessoas não vulneráveis é de ação penal condicionada à representação. Assim, tentou-se restaurar o sistema implantado em 1940, para exigir a autorização das vítimas, desta feita, mediante representação.

O novo art. 225, caput, é flagrantemente inconstitucional, pois protege insuficientemente as vítimas, afastando-se da jurisprudência constitucional já consagrada no país, como vimos no item anterior.

Ora, o crime referido é hediondo, mesmo em sua forma simples, como previu a nova Lei (art. 1º, V, Lei 8072/90), reforçando sua reprovabilidade social. Não se concebe que crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia e, equiparados pela Constituição à tortura e ao terrorismo (art. 5º, XLIII), dependam de autorização das vítimas para punição.

Num país em que pessoas são violentadas apenas por usarem roupas curtas, o retrocesso legal privilegia a tendência de se culpar as vítimas, intimidando-as. Pretendem reforçar a (falsa)cumplicidade delas por consentir; se não consentiu, cedeu; se não, gostou. As justificativas são as mesmas utilizadas para o quase-estupro coletivo da estudante Geisy, na UNIBAN, em outubro/2009: "Ela provocou! Ela quis! Ela é perigosa!".

É fato que, se uma mulher é ameaçada de estupro por um homem armado, e resolve, racionalmente, ceder, a fim de preservar o bem maior, ou seja, a vida, sua atitude atuará contra ela perante o Direito Brasileiro (SAFFIOTI, 2008). A vítima do sexo masculino também sofrerá semelhante constrangimento, por ter sido "usado" como uma mulher. Nas palavras de Daniel WELZER-LANG:

É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser associado a uma mulher. O feminino se torna até o pólo de rejeição central, o inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma mulher e ser (mal) tratado como tal (...) É assim que na prisão um segmento particular de jovens homens, localizados ou designados como homossexuais (homens ditos afeminados, travestis...), homens que se recusam a lutar, ou também os que estupraram as mulheres, dominadas, são tratados como mulheres, violentados sexualmente pelos chefões do tráfico, roubados. Freqüentemente, eles são apenas colocados na posição da "empregada" e devem assumir o serviço daqueles que os controlam, particularmente o trabalho doméstico (limpeza da célula, da roupa...) e os serviços sexuais.

Nesse contexto, a velha retórica de que a representação garante a intimidade das vítimas não se coaduna com os novos tempos. Ora, estamos a tratar de bens jurídicos indisponíveis, de interesses de ordem pública superiores. Citamos as sempre ponderadas palavras do desembargador Mário Machado, ao declarar inconstitucional a anterior redação do art. 225, caput (previa a queixa):

Ora, o antigo atentado violento ao pudor com presunção de violência pela idade da vítima, atual estupro de vulnerável, tendo como ofendida criança ou adolescente, envolve sempre ataque repulsivo a bens jurídicos indisponíveis e de elevadíssimo valor social, não sendo possível, pelo menos a partir do advento da Constituição Federal de 1988, subordinar sua punibilidade à vontade da vítima ou de seus representantes legais. Eventual strepitus judicii, razão do legislador de 1940 para fundar a opção pela ação privada, não se pode sobrepor aos interesses de ordem pública superiores, eleitos pelos constituintes de 1988. [16]

De fato, vítima com vergonha é questão de gênero! É fruto da cultura machista que naturaliza o abuso sexual como uma necessidade masculina. A prestação de serviços sexuais a eles seria uma obrigação pelo parentesco (incesto), vínculo empregatício, profissão (prostituição) e até pelo casamento.

Ora, quem deve ter vergonha é o agressor, e por seu crime ser punido! Nosso sistema constitucional não se conforma com a vítima envergonhada, calada no seu canto, para o bel-prazer do estuprador, sorridente, saciado, pronto para continuar a satisfazer seus instintos aberrantes, com a mesma vítima (violência doméstica) ou com outras.

Não se protege a intimidade das vítimas deixando o agressor impune. Elas já foram violadas, abusadas, sua intimidade destruída durante os atos aberrantes! O Estado não garantiu sua privacidade e dignidade. Devolver o problema pra elas é diminuir a repugnância social a esses crimes e superproteger os estupradores.

O novo art. 225, caput, protege a intimidade, sim, mas apenas a do estuprador! É inconstitucional por proteger insuficientemente os direitos fundamentais do ser humano.

5.3.1. Estupro qualificado pela lesão grave ou morte

Para impedir a proteção insuficiente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) busca no STF a inconstitucionalidade parcial do art. 225 (ADI 4301). Pede-se que o crime de estupro do qual resulte lesão grave ou morte se submeta a ação pena pública incondicionada.

É recomendável que a PGR adite o pedido para se declarar inconstitucional todo o caput do art. 225, independentemente da gravidade do resultado, nos termos da Súmula 608.

Com aditamento ou não, espera-se que o STF, seguindo sua tradição humanística, declare mais uma vez que o estupro, em qualquer de suas formas, é de ação penal pública incondicionada, conforme já sacramentado naquela Corte Constitucional.


6.Conclusão

Ante o exposto, conclui-se que:

1.O novo crime de estupro não alterou a solução jurídica anterior nas hipóteses de pluralidade de ações sexuais violentas contra a vítima no mesmo contexto fático. Entendimento contrário é inconstitucional, por ofensa ao princípio da proporcionalidade (proibição de proteção insuficiente).

2.A ação penal do novo crime de estupro é pública incondicionada, independentemente da idade ou vulnerabilidade das vítimas, nos termos da Sumula 608 do STF e da jurisprudência posterior, que acolheu, implicitamente, o princípio da proibição de proteção insuficiente. Dessa forma, o art. 225, caput, do CPP, é completamente inconstitucional.


Referências

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BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 50.

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PIMENTEL, Sílvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou cortesia? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 22.

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SILVA JÚNIOR, Edison Miguel. Concurso material de estupros na Lei n.º 12.015/09. Disponível em www.jusnavigandi.com.br, acessado em novembro/2009.

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WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635.pdf, acessado em outubro/2009.


Notas

  1. PIMENTEL, Sílvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou cortesia?
  2. TJDF, Acórdão: 385960, Julgamento: 24/08/2009, Órgão Julgador: Câmara Criminal Relator: RENATO SCUSSEL
  3. STF, RE 418376/MS, 9/2/2006, Rel. Marco Aurélio
  4. Apud FEITOZA, p. 137 a 139.
  5. TJSP, RT 727/466
  6. STF, HC 81848/PE, Relator Maurício Corrêa, 30/4/2002
  7. TJSP, RT 657/271, julgado 17/10/1989
  8. TJRJ, RT 604/423
  9. TJSP – AC – Rel. Dirceu de Mello – RT 662/263, 21/3/1990
  10. STF, HC 71016/RJ Relator: Min. NÉRI DA SILVEIRA j. 20/09/1994
  11. STF, HC 82206Rel. Nelson Jobim, 8/10/2002.
  12. STJ, HC 27383/PE, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, unânime, DJ. 25/08/2003
  13. STJ, RESP 479679/PR, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, unânime, DJ. 15/09/2003
  14. TJDF, Acórdão: 291538, Julgamento: 29/11/2007, Relator: FERNANDO HABIBE
  15. TJSC, JCAT 79/688-9
  16. TJDF, Acórdão 373139, julgamento: 20/8/2009, Rel. Mário Machado

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Fausto Rodrigues de Lima. O novo estupro na ótica constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2358, 15 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14020. Acesso em: 16 abr. 2024.