Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/14398
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Orçamento participativo: alternativa disponível de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada

Orçamento participativo: alternativa disponível de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada

Publicado em . Elaborado em .

Questiona-se a possibilidade do Orçamento Participativo ser uma alternativa disponível de mudança social em um mundo globalizado.

RESUMO: Este trabalho aborda a possibilidade de construção de espaços públicos democráticos, ao discutir a viabilidade do Orçamento Participativo como uma alternativa disponível de mudança social em uma sociedade moderna globalizada. Neste sentido, discute-se a relação entre sociedade moderna globalizada e mudança social e a concepção de Orçamento Participativo em um Estado Democrático de Direito, como instrumento de consolidação de direitos fundamentais sociais e da democracia participativa. Por fim, analisam-se as condições necessárias para que o Orçamento Participativo seja considerado uma alternativa de mudança social no contexto de um mundo globalizado, destacando a interação e a comunicação na esfera pública política e o perfil dos atores sociais que a integram; e os limites dessa concepção na sociedade brasileira.

Palavras-chave: ORÇAMENTO. ORÇAMENTO PARTICIPATIVO. ESPAÇO-PÚBLICO DEMOCRÁTICO.


INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa a construção de espaços públicos democráticos na atual sociedade brasileira, através da experiência do Orçamento Participativo (OP) e questiona a possibilidade do OP ser uma alternativa disponível de mudança social em um mundo globalizado.

Deste modo, discute-se a possibilidade de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada, como o caso da sociedade brasileira, destacando as características essenciais do sistema capitalista global e os malefícios socioambientais, econômicos e culturais causados, preferencialmente, nos países periféricos, e a necessidade de análise de experiências sociais locais que se contraponham à racionalidade ocidental hegemônica.

Posteriormente, aborda-se o OP no contexto jurídico-político do Estado brasileiro, ressaltando o seu surgimento e a sua concepção na vigente Constituição Federal de 1988, e o seu escopo de consolidação da democracia participativa e de direitos fundamentais sociais, com base no ideário do etnodesenvolvimento.

Por fim, questiona-se a hipótese levantada neste trabalho se o OP é uma alternativa disponível de mudança social no âmbito de uma sociedade moderna globalizada, dominada pela racionalidade ocidental hegemônica, detalhando algumas possíveis condições necessárias e os limites dessa compreensão na sociedade brasileira.


1 SOCIEDADE MODERNA GLOBALIZADA E MUDANÇA SOCIAL

Hodiernamente, início do Século XXI, vive-se em uma sociedade moderna, com a hegemonia do capitalismo global e do fenômeno do neoliberalismo, cujo cenário o Brasil, assim como toda América Latina, está inserido.

Em que pese alguns denominem o contexto atual como "pós-modernidade", a exemplo do autor Jean-François Lyotard, o qual popularizou essa expressão mediante a publicação da obra "The Post-Modern Condition" em 1985, acredita-se que a sociedade atual passa por um processo de intensificação da "modernidade".

A noção de pós-modernidade, a exemplo de Lytoard, está comumente vinculada ao pensamento evolucionista (espaço-tempo linear), característico da racionalidade ocidental hegemônica, o qual acredita e defende a ideia de que há um progresso planejado humanamente, como se o futuro fosse predizível; bem como implica uma ideia básica de que a sociedade está caminhando para um novo tipo de ordem social, com diferença específica em relação à modernidade. No entanto, o que se observa é que a sociedade hodierna não caminha para uma nova ordem social, mas para um processo de intensificação dos elementos da modernidade, apoiado pela racionalidade ocidental hegemônica (GIDDENS, 1991).

Neste processo de modernização, a "secularização" é um dos componentes essenciais e se caracteriza pelos seguintes fatores: (i) mudança do tipo de ação social, da ação preceptiva à ação eletiva; o ator passa a ter um maior grau de eletividade ou liberdade individual, em substituição da prescrição de uma linha de conduta fixa; (ii) a transição da institucionalização da tradição à institucionalização da mudança, em que a mudança passa a ser constante e habitual; (iii) maior grau de diferenciação e especialização institucional, sendo tendência da sociedade a progressiva especialização das estruturas sociais; (iv) maior mobilidade da estratificação social, surgindo uma estrutura de classe supostamente aberta, limitada pela desigualdade de oportunidades e de acesso entre os atores sociais; (v) a laicização e a organização racional do Estado; (vi) a introdução da racionalidade na família, a exemplo do controle de natalidade; entre outros. Estas mudanças afetam a sociedade no nível psicossocial, modificando as atitudes e os comportamentos dos atores sociais; e no nível normativo, atingindo as instituições, os valores, as categorias sociais, as leis e outras normas (GERMANI, 1992).

Chama atenção na modernidade o ritmo frenético da mudança, a interconexão global que faz com que ocorra a transformação social virtual no mundo e a natureza intrínseca das instituições modernas, como o Estado-Nação e a cidade-moderna, que só se encontra nesse período. Giddens (1991) denomina esse conjunto de fatores de "descontinuidade da modernidade", a qual promove o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe, em que a sociedade é obrigada a se reorganizar constantemente, retirando-se do contexto local para se adaptar ao contexto global, através de grandes distâncias de tempo-espaço; e, por conseguinte, exige também da sociedade uma apropriação reflexiva do conhecimento, pois a cada mudança social produz-se um novo conhecimento sistemático sobre a vida social.

O sistema capitalista global proporciona intensa e habitual mudança dos campos sociais (ciência, tecnologia, cultura etc.), atingindo os países e os domínios sociais interligados e impondo um ritmo frenético de descontinuidade, em que a sociedade se adapta às circunstâncias para manter a racionalidade hegemônica.

A sociedade moderna é fruto do pensamento ocidental hegemônico e do sistema capitalista global, este caracterizado pela economia de mercado livre que se funda no mito da soberania do consumidor, no qual os consumidores fazem suas escolhas livremente no mercado. Vige a ideia de que o mercado é o único mecanismo racional de afetação de recursos escassos a usos alternativos. Logo, são afastadas quaisquer motivações que não podem ser avaliadas mediante o padrão da medida da moeda, como a compaixão, a solidariedade ou a amizade (NUNES, 2003).

O capitalismo global surgiu (primeira onda) no século XV com as viagens oceânicas dos portugueses e depois ressurgiu (segunda onda) no século XIX com a segunda revolução industrial, promovendo a concorrência entre os capitalismos nacionais poderosos em busca de espaço vital, o que resultou nas duas guerras mundiais do século XX; e, atualmente, (terceira onda) é reinante no século XXI, mediante a quebra das barreiras entre as nações e um ritmo acelerado do crescimento econômico. É um fenômeno complexo que se traduz, essencialmente, na criação de um mercado mundial unificado, resultante do desenvolvimento da tecnologia dos meios de comunicação e de transporte. Determina-se pelo domínio do capital financeiro, o qual permite aos grandes conglomerados transnacionais investir em outros países, visando à maximização do lucro, e facilita o empréstimo de créditos financeiros, sendo fundamentais três características: a desintermediação, a descompartimentação e a desregulamentação.

É também um fenômeno cultural e ideológico, pois os países centrais, beneficiados pelo neoliberalismo, propagam no mundo uma ideologia de massificação dos padrões de consumo e de felicidade que se impõem à sociedade local, anulando-se a diversidade cultural e a identidade nacional. Conforme Arjun Appadurai (2002), no atual sistema capitalista há uma imposição da economia cultural global, a qual gera a propagação e a internalização da cultura americana em diversas nações, a japanização na Coreia, a indianização em Sri Lanka, a russianização no povo da Armênia soviética e da República Báltica etc.

Destaca-se a propagação de um discurso de desenvolvimento pautado no economicismo, no eurocentrismo e no reducionismo, em que a racionalidade ocidental é o parâmetro para medir os países nas dicotomias ideologizantes progresso/atraso e desenvolvido/subdesenvolvido. O economicismo é visualizado na centralidade do discurso da teoria econômica neoclássica, a qual identifica o desenvolvimento como crescimento econômico e propagação da economia de escala como se fosse a única alternativa viável no mercado; isto leva a um reducionismo da concepção de desenvolvimento, haja vista que o compreende como um fenômeno identificável unicamente pelas variáveis quantitativas, ignorando a desigualdade social, a diversidade cultural etc., como bem assevera Viola Recasens (2000).

Deste modo, a fenômeno neoliberal põe em risco a identidade e o simbolismo do patrimônio cultural local, regional e nacional, em face da hegemonização cultural, impondo valores de uma cultura europeia e americana, compreendida como mundial. O acatamento desses valores virtuais e globais provoca a "morte da tradição" e o desenvolvimento de segregações e frustrações sociais, pois os desejos criados pela sociedade de consumo não são satisfeitos por todos, muito pelo contrário, apenas uma minoria é capaz de manter um padrão de consumo elevado, o que gera, inevitavelmente, conflitos sociais (RAMALHO FILHO, 1999).

A globalização implica, ainda, a redução do papel do Estado, tendo em vista que se desincentiva a sua intervenção na economia e incentiva a privatização de setores públicos, no intuito de assegurar a maior liberdade do mercado e da vida econômica. Exemplo clássico é o Consenso de Washington que influenciou a privatização de serviços públicos fundamentais à sociedade nos países da América Latina, como o Brasil, a Argentina e a Bolívia. Logo, são comuns medidas de reforma do Estado, responsabilização dos gastos públicos, flexibilização de direitos trabalhistas, redução ou isenção de impostos sobre exportações e importações etc., comprometendo a soberania da nação. Deste modo, o modelo ocidental vem de encontro com a reconstrução internacional da concepção de direitos humanos, sobretudo, os de segunda e terceira dimensões, os quais demandam uma conduta positiva do Estado de realização de políticas públicas sociais para garantia de uma vida digna aos seus cidadãos.

Tais elementos caracterizam o neoliberalismo como um fenômeno hegemônico na sociedade atual que promove mudanças a nível mundial na organização estatal, na economia, na informação, na cultura, na política, no meio ambiente, no direito etc. e apenas as regiões centrais são capazes de extrair as vantagens da globalização, em detrimento das regiões periféricas. Assim, intensifica a concentração de renda, a miséria, colabora na desigualdade regional e dificulta a promoção do desenvolvimento humano equitativo mundial. Os países, cada um na sua medida, sofrem com mazelas sociais, ecológicas, ambientais etc.

Na América Latina, inclusive no Brasil, o neoliberalismo atinge os segmentos social, econômico, ambiental, cultural e político, intensificando a desigualdade regional e a miséria. Chama-se atenção à fragilidade decorrente do comprometimento de parcela considerável de recursos que se destina ao pagamento dos juros e amortização de suas dívidas externa e interna, reduzindo a sua capacidade de indução ao desenvolvimento regional. Assim, desencadeiam-se processos de exclusão social, tais como, "os sem-classe, sem terra, sem informática, sem teto, sem comida, sem trabalho etc." (DUPAS, 2005), atingindo, sobretudo, a juventude; e movimentos sociais de resistência à globalização neoliberal, promovendo novos conflitos sociais, como o Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil (SANTOS, BAUMGARTEN, 2005).

No Brasil, também se considera o desequilíbrio fiscal marcado pela centralização do poder fiscal na União e o problema da guerra fiscal entre as entidades subnacionais pela busca de investimentos de multinacionais que, em regra, proporcionam a redução da carga fiscal destes, em face dos incentivos fiscais acordados, a flexibilização de salários e diversas mazelas socioambientais e ecológicas, diante da ausência da responsabilização das grandes empresas pelo custo social provocado na localidade (CARVALHO, 2005).

Diante desse contexto, os debates nos diversos campos da ciência, sobretudo das ciências sociais, passam a se centrar na seguinte problemática: quais são as possibilidades de mudança social no contexto de um sistema capitalista global?

A crise social provocada pelo capitalismo e pela globalização neoliberal conduz o debate à busca de novos saberes e de alternativas disponíveis e possíveis a esse mundo globalizado, exigindo responsabilidade dos atores no sentido de propor alternativas às políticas neoliberais. Deste modo, passam a ser temas centrais da ciência e da filosofia: o fortalecimento das democracias a nível nacional, a solidariedade entre os países da periferia, alternativas de sustentabilidade do desenvolvimento, o etnodesenvolvimento, a consolidação dos direitos humanos, a economia solidária, o papel ativo dos movimentos sociais etc.

Recentemente, com o advento da crise mundial do capital financeiro, que atingiu, preferencialmente, os países desenvolvidos, e, indiretamente, os países periféricos, intensificando os problemas sociais e econômicos desses países, inclusive do Brasil, põe-se em cheque a legitimidade desse modelo capitalista global hegemônico e fortifica-se a investigação de um novo padrão de desenvolvimento e de alternativas de mudança social a esse sistema.

Neste sentido, é salutar a análise de experiências sociais locais que fujam da lógica da racionalidade ocidental, como vem fazendo Boaventura de Sousa Santos (2002). Isto porque, segundo ressalta o referido autor, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera e está sendo desperdiçada, pois a racionalidade ocidental hegemônica, denominada de razão indolente, esconde-as ou não as considera.

Deste modo, faz-se mister a releitura do espaço-tempo, ampliando o presente, para reconhecer diferentes práticas e saberes sociais locais, chamadas de "alternativas disponíveis", e contraindo o "futuro", para analisar as expectativas sociais e detectar as "alternativas possíveis", nos termos da epistemologia de Boaventura.

Buscam-se alternativas disponíveis ou possíveis que demonstram a possibilidade de construção de um desenvolvimento que se afaste das perspectivas do economicismo, do eurocentrismo e do reducionismo, e siga a linha de concepção do etnodesenvolvimento, assim definido por Viola Recasens (2000) como:

"el ejercicio de la capacidad social de un pueblo para construir su futuro, aprovechando para ello las enseñanzas de su experiencia histórica y los recursos reales y potenciales de su cultura, de acuerdo con un proyecto que se defina según sus propios valores y aspiraciones".

A mudança social implica a investigação de saberes e práticas sociais locais que construam um modelo de desenvolvimento que assegure a preservação da cultura, da identidade e do meio ambiente local, regional e nacional, isto é, do seu patrimônio cultural, natural e social. Cumpre esclarecer que a noção de patrimônio não está vinculada apenas à proteção de bens tangíveis, tais como, sítios históricos, obras de arte, biodiversidade etc., mas, sobretudo, de bens intangíveis, como tradições, valores, saberes locais, consciência ecológica, conhecimentos tradicionais etc. Logo, trata-se de uma "construção social, reunindo indivíduos e grupos em torno de um sentimento de identidade, de uma entidade coletiva, abstrata, mas visível pelos bens e símbolos preservados e mesmo sacralizados por aqueles que aí se reconhecem" (RAMALHO FILHO, 1999).

Seguindo essa linha de pensamento, este trabalho objetiva analisar a experiência social denominada de Orçamento Participativo, no intuito de verificar (i) quais as condições necessárias para que se considere uma alternativa disponível de mudança social no mundo capitalista neoliberal; e (ii) quais os seus limites para alcançar tais objetivos.


2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO

O Brasil, assim como outros países da América Latina, passou por quase duas décadas de autoritarismo, no período do regime militar, no qual os direitos constitucionais dos cidadãos foram desrespeitados, pondo em ineficácia a Carta Política da época.

Todavia, na década de 80 do século XX, após lutas sociais e a formação de um consenso na sociedade brasileira em prol do resgate de instituições democráticas e da dívida social, iniciou-se um processo de redemocratização, que resultou na composição de uma Assembleia Nacional Constituinte que tinha como compromissos primordiais (i) promover a descentralização política e financeira e (ii) consolidar a democracia, por meio do empoderamento das comunidades locais no processo decisório de políticas públicas (SOUZA, 2004).

Assim, surgiu a Constituição Federal brasileira de 1988, estabelecendo o Brasil como um Estado Democrático de Direito, garantindo variados instrumentos de concretização da democracia (representativa e participativa), um elevado grau de descentralização política, administrativa e fiscal, diversos direitos fundamentais civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e difusos, além de outras disposições (SOUZA, 2004; ABRUCIO, 1999; STRECK, 2004).

Neste parâmetro constitucional, o orçamento adquire aspecto instrumental e axiológico, isto porque passa a ser um instrumento dinâmico do Estado perante a sociedade, para consolidação da democracia e de direitos fundamentais sociais; sendo inconcebível a sua compreensão como um mero documento financeiro ou contábil, de caráter estático.

Os entes federativos (União, estados, distrito federal e municípios), através do orçamento, fixam os seus objetivos socioeconômicos e estipulam as suas ações governamentais preferenciais, mediante a participação do Poder Executivo e do Poder Legislativo.

A ordem jurídica vigente configura a concepção de "orçamento-programa" (SILVA, 2000), isto é, o orçamento passa a ser compreendido como um "sistema de planejamento estrutural", o qual integra a política socioeconômica e a política fiscal. A Constituição da República, nos arts. 70 a 75 e 165 a 169, estabelece verdadeiro "Estado Orçamentário" (TORRES, 2004) que envolve o planejamento, a programação e o orçamento em sentido estrito, introduzidos, respectivamente, através dos veículos introdutores Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA).

O Plano Plurianual é o projeto de ação governamental elaborado no primeiro ano de governo que deve estabelecer de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital (investimentos, inversões financeiras e transferências de capital) e outras delas decorrentes e para as relativas dos programas de duração continuada (obras, planos e ações que ultrapassam o prazo de 01 ano), obtendo vigência de 04 anos.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias, por sua vez, define a política de aplicação dos recursos públicos. Compreende as metas e prioridades da administração, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orienta a elaboração da lei orçamentária anual, dispõe sobre as alterações na legislação tributária e estabelece a política de aplicação das agências financeiras de fomento. Deve ser o elo entre o plano plurianual e a lei do orçamento anual.

Já a Lei Orçamentária anual é o veículo em que são, efetivamente, alocados os recursos orçamentários para sua realização. É mediante a Lei Orçamentária anual que o Executivo e o Legislativo definem, efetivamente, a política socioeconômica e fiscal, ao detalhar e especificar a aplicação da receita pública, elegendo os direitos sociais a serem concretizados preferencialmente.

As Leis Orçamentárias são, portanto, normas de conduta e de organização que delimitam os direitos fundamentais sociais preferenciais e as políticas sociais a serem executadas na sociedade brasileira, e, por tal motivo, constituem-se em instrumentos basilares para a concretização do Estado Democrático de Direito.

O orçamento-programa surge na Constituição Federal de 1988, no intuito de consagrar a democracia, desta forma, o PPA, a LDO e a LOA são apresentadas pelo Executivo e apreciadas pelo Legislativo e podem ter a participação direta do povo.

Tendo por base o parâmetro do Estado Democrático de Direito, o orçamento deve ser um canal democrático, já que necessita retratar os compromissos políticos e o sentimento de cidadania (SUSTEIN, 1994). É o povo, direta ou representativamente, que deve deliberar quais são os direitos fundamentais sociais e as políticas sociais a serem priorizados, segundo as necessidades públicas prementes. Esse viés democrático do orçamento fornece dimensão valorativa às prestações positivas do Estado brasileiro.

Neste sentido, as políticas públicas determinadas nas leis orçamentárias passam a ser vinculantes à Administração Pública; são elas argumentos de política convertidos em princípios (DWORKIN, 2002). Não executá-las promove violação à Constituição da República e ao Estado Democrático de Direito. [01]

A democracia brasileira hodierna, além de representativa, é participativa, de tal modo que o povo, mediante associações e demais órgãos da comunidade, pode participar na elaboração do orçamento (planejamento e orçamento participativo) e até mesmo no controle de sua execução.

A Carta Política de 1988 foi muito além de estabelecer princípios democráticos, pois regulamentou diversos institutos participativos na Administração Pública, por exemplo: (i) Art. 14, incisos I a III – estabelece o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular para apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados; (ii) Art. 29, X - prevê a cooperação das associações representativas no planejamento municipal; (iii) Art. 37, §3°. - disciplina a participação popular na administração pública direta e indireta, através de reclamações, representações e acesso a registros e informações administrativas; (iv) Art. 74, §2° - estabelece que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União; (v) Art. 187 – determina que a atividade administrativa de planejamento de política agrícola será executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais e os setores de comercialização, armazenamento e transportes; etc.

Além das disposições constitucionais, percebe-se, na atualidade, que cada vez mais cresce o número de leis infraconstitucionais brasileiras regulando espaços públicos de discurso entre a sociedade e a Administração Pública, compartilhando a tomada de decisões políticas dos entes federativos, objetivando o fortalecimento da democracia brasileira (PEREZ, 2006).

O Orçamento Participativo consiste em um desses mecanismos de participação direta dos cidadãos na decisão da escolha das políticas públicas locais. Este instrumento surgiu no Brasil por iniciativa dos governos locais, não sendo induzido por legislação federal ou organismos multilaterais. Após a redemocratização do Brasil, os municípios passaram a ter mais recursos financeiros e poder político diante da descentralização financeira e política delimitada na Carta Política de 1988, promovendo um cenário propício para experiências democráticas locais (SOUZA, 2001).

A experiência pioneira foi realizada em Lages em Santa Catarina, no final dos anos 70, e se propagou após a redemocratização brasileira nos demais municípios do Estado brasileiro: (i) 1986-1988 - 02 cidades; (ii) 1989-92 - 12 cidades; (iii) 1993-96 - 36 cidades; (iv) 2000 - 140 cidades (FNPP, 2002; SOUZA, 2004).

A difusão dessa experiência deve-se, sobretudo, à divulgação do OP executado em Porto Alegre - Rio Grande do Sul, sob a administração municipal do Partido dos Trabalhadores; considerada como uma das melhores experiências democráticas no Brasil.

As experiências existentes nos municípios brasileiros de OP são, em regra, uma iniciativa de governos locais do Partido dos Trabalhadores, pautada na ideologia de fortalecimento da democracia, buscando o aumento da eficiência da Administração, no sentido de alcançar as necessidades reais da sociedade civil. [02]

Deste modo, o OP é reflexo de uma experiência da democracia participativa e também de um ideal de democracia deliberativa, em que os atores, os grupos sociais e a coletividade, livres e iguais, discutem racionalmente as ações governamentais preferenciais (AVRITZER, 2008; GOULART, 2006).

Busca-se um "espaço público", em que há uma estrutura organizacional do agir orientado pelo entendimento, isto é, uma rede de comunicação de conteúdos, com tomadas de posições e opiniões, onde a sociedade civil e a Administração Pública decidem quais as ações governamentais que serão executadas na localidade (HABERMAS, 2003:96).

Segundo Habermas (2003:107-108), em sociedades complexas a esfera pública é uma estrutura intermediária entre o sistema político e os setores privados do mundo da vida. Deste modo, no âmbito do debate, o mundo da vida, isto é, o conjunto de tradições (sistema cultural), conteúdos compartilhados por um grupo social e processos de socialização, interação e aprendizagem, é considerado pelos atores na construção de seus argumentos, os quais, sintetizados e enfeixados em temas específicos, podem ser compreendidos como opiniões públicas e integrados pelo sistema político.

É importante a internalização do mundo da vida dos atores no debate dentro do espaço público, no intuito de alcançar os diversos interesses de uma sociedade heterogênea e multicultural, como a brasileira; sobretudo, quando se pretende, através do instrumento OP, alcançar um modelo de desenvolvimento que assegure o patrimônio cultural, social e natural de determinada sociedade.

Com base nesse ideário, o Orçamento Participativo pode ser compreendido como um espaço público de grande relevância, pois oferece a oportunidade do povo participar diretamente no debate e na tomada de decisão sobre as políticas públicas a serem executadas pela Administração Pública. O que é algo novo, pois é comum nos espaços públicos o domínio do debate pelas elites locais, as quais possuem influência de tornar os seus interesses em opiniões públicas e daí serem acolhidas pelo sistema político. Em regra, os atores com pouca influência na sociedade, tais como, movimentos sociais, entidades da sociedade civil, não conseguem participar desses espaços públicos e transformar suas demandas sociais em opiniões públicas e, por conseguinte, serem atendidas pela Administração Pública.

Diante desse panorama, entende-se que o OP, por ser um instrumento que garante no seu espaço público a participação popular, promove a ampliação da política e contraria a lógica das outras esferas públicas, em que a participação predominante é da burguesia ou elites hegemônicas, prevalecendo os seus interesses e colaborando na perpetuação de seu poder. Em outras palavras, o OP vai de encontro à racionalidade sustentada por uma sociedade capitalista global, marcada pelo individualismo, pelo clientelismo e pelo elitismo (SOUZA, 2001).

Acredita-se que a abertura do debate ao povo, através de representantes de bairros, comunidades sociais, movimentos sociais ou políticos, dando oportunidade a todo e qualquer cidadão pobre ou rico, reduz a ingerência dos atores da burguesia ou elites dominantes na deliberação e na formação das opiniões públicas, garantindo uma maior horizontalidade no agir comunicativo e no entendimento, bem como seja propício para o resgate do patrimônio cultural, social e natural de específica sociedade.

Deste modo, acredita-se que a participação popular é uma medida disponível de resistência ao sistema capitalista global nos espaços públicos de tomada de decisões políticas, na medida em que pode promover um debate mais horizontal dentro da esfera pública, bem como pode ser um instrumento para construção de um etnodesenvolvimento.

No entanto, para que o OP se torne realmente democrático e seja considerado uma medida de resistência à racionalidade ocidental hegemônica não basta apenas a garantia formal da participação popular na esfera pública, é fundamental o emprego de uma racionalidade que se oponha à racionalidade ocidental hegemônica e, por conseguinte, um conjunto de condições, tais como, a garantia de liberdade e igualdade entre os atores, o grau de representatividade dos atores, a metodologia utilizada na construção do debate, o compromisso governamental etc., essenciais para que se alcance o objetivo democrático.

Além disso, devem ser consideradas as condições socioambientais e econômicas de cada realidade em que está sendo implementada a experiência do OP, as quais podem ser tornar facilitadores ou barreiras inevitáveis à concretização da democracia participativa.

Portanto, acredita-se que o OP pode ser uma medida de resistência ao sistema capitalista global, ou melhor, uma alternativa disponível de mudança social, todavia tal hipótese demanda a análise das condições necessárias para que o orçamento participativo seja assim considerado, bem como a delimitação dos seus limites em uma sociedade brasileira.


3 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO COMO ALTERNATIVA DISPONÍVEL DE MUDANÇA SOCIAL: CONDIÇÕES NECESSÁRIAS E LIMITES

A racionalidade empregada no OP pelo ente local é fundamental na garantia da legitimidade das decisões comunitárias, a qual deve se opor à racionalidade ocidental hegemônica, para que seja considerada uma alternativa de mudança social.

Na linha da racionalidade da ação comunicativa habermasiana, vislumbra-se que o OP deve ser um espaço público de agir comunicativo entre a sociedade civil e a Administração Pública, na busca de um consenso a respeito da alocação de recursos para despesas referentes às políticas públicas a serem executadas na localidade. [03]

Deste modo, esta experiência envolve alguns elementos intrínsecos, interdependentes e autônomos, quais sejam: (i) espaço público, (ii) ação e (iii) atores (individuais e coletivos); em que o espaço público consiste em uma estrutura comunicacional do agir, consubstanciada em assembleias, reuniões, Conselhos e Fórum, nas quais as demandas sociais são apresentadas e problematizadas pelos atores e decididas, no intuito de integrarem ao sistema político; a ação é consubstanciada no agir comunicativo, livre e igualitário, entre os atores e na tomada de opiniões e decisões, no sentido de alcançar um entendimento; e os atores são todos os indivíduos ou grupos sociais, tais como, dirigentes comunitários, representantes de quaisquer segmentos sociais, lideranças das diversas entidades desenvolvidas políticas e sociais, integrantes dos Conselhos etc. que participam do debate e da tomada de decisão das políticas públicas.

Neste sentido, é salutar estabelecer algumas condições concernentes ao espaço público, à ação e aos atores, as quais são fundamentais para que o OP possua o viés democrático. Ressalta-se que o presente trabalho não tem a ousadia de identificar todas as condições necessárias ao ideal democrático, mas destacar algumas condições consideradas primordiais.

No aspecto do espaço público, destaca-se o nível de organização da própria esfera pública. A Administração Pública deve manter uma estrutura administrativa específica para a organização do OP, assim como ocorre na experiência de Porto Alegre que envolve a Coordenadoria de Relações com a Comunidade, a Coordenadoria de Planejamento Estratégico e Investimentos e a Coordenadoria de Orçamento; fazer uma relevante mobilização da sociedade civil para participar do debate; ofertar um espaço físico adequado para o debate; proporcionar condições materiais para a participação popular, garantindo locomoção, alimentação, instrução técnica etc.

Ressalta-se que a sociedade possui dificuldade em compreender as disposições orçamentárias em face do desconhecimento da linguagem técnica, da falta de clareza e informatização dos dados e da ausência de instrução técnica por parte da Administração Pública. Logo, é essencial que a Administração Pública utilize dentro do espaço público uma linguagem popular, no intuito de assegurar o agir comunicativo livre e igualitário entre os atores sociais, bem como instrumentos capazes de facilitar a compreensão das informações orçamentárias e o aspecto social destas, a título exemplificativo, cita-se a proposta de Ana Pellini (2004) de incluir indicadores sociais ao lado dos dados financeiros para melhor orientar as decisões quanto à aplicação dos recursos públicos .

A esfera pública do OP deve gozar de instrumentos que facilitem e incentivem o amplo debate das demandas sociais, no intuito de que no momento da escolha das prioridades das ações governamentais, todos os atores envolvidos tenham clareza e discernimento dos efeitos socioambientais desta preferência.

As condições socioeconômicas e demográficas, a situação financeira e a capacidade técnica e gerencial dos entes locais são essenciais para a consolidação do cunho democrático do OP. Tanto é verdade que a difusão dessa experiência na esfera governamental local se deu logo após a descentralização financeira e política do Estado brasileiro, beneficiando, sobretudo, os municípios, os quais passaram a ter mais poder político e recursos financeiros para inovar em novas formas de gestão democrática, como a experiência do OP (SOUZA, 2001).

Além disso, também é condição de eficácia do OP a ideologia do partido político que o implementa. Como dito, o orçamento participativo deve ser um instrumento que tem como objetivo colher as demandas sociais prioritárias da comunidade local a partir da participação do povo no debate e na tomada de decisão, logo, a ideologia da Administração Pública que conduz o espaço público passa a ser determinante na forma que se dará a sua implementação. Essa experiência somente pode ser considerada uma alternativa de mudança se a ideologia/racionalidade empregada contrapor à ideologia/racionalidade ocidental hegemônica. Deste modo, é essencial evitar o clientelismo e o elitismo nesse espaço público, sendo criados instrumentos que assegurem a participação, livre e igualitária, de qualquer cidadão.

Acrescenta-se, ainda, que o compromisso governamental é outra condição para que o OP realmente consolide a democracia. Compreende-se como compromisso governamental "a existência de um comprometimento efetivo de forças políticas ocupantes do governo em respeitar e atender as deliberações resultantes dos processos participativos" (MOURA, 2007). Observa-se, muitas vezes, que as demandas absorvidas pelo sistema político acabam não sendo executadas ao longo do governo, gerando dúvidas sobre a credibilidade do OP. Outro exemplo que demonstra a falta de compromisso governamental é o baixo investimento público nas demandas resultantes do OP, o que torna ineficaz todo o processo desenvolvido. [04]

Assim como acontece em outras esferas públicas, tem-se que ter cuidado com a manipulação do debate e da deliberação do orçamento participativo pela Administração Pública, no intuito de atender interesses da elite dominante. Isto porque é cediço que as deliberações resultantes de um suposto processo participativo do povo produz um peso democrático demasiado influente dentro do Poder Legislativo, o que tende a ser acolhido por este sistema político.

Logo, outra condição essencial para o procedimento do orçamento participativo consiste no método adotado para estabelecer a relação entre governo e comunidade, sendo fundamental a forma de escolha dos delegados e seu perfil socioeconômico, a organização administrativa responsável pela execução do espaço público, a forma de apresentação e escolha das demandas, o papel dos delegados etc.

Deste modo, adentra-se nos aspectos da ação (agir comunicativo) e dos atores da experiência do OP, merecendo atenção a forma que se dará a discussão e a condução do agir comunicativo em prol de um entendimento e o perfil dos atores envolvidos, para consolidação da democracia participativa.

Em relação ao agir comunicativo, este deve integrar instrumentos que assegurem a liberdade e a igualdade de participação dos atores sociais, tais como, uma linguagem adequada, a transparência e a clareza dos dados orçamentários e dos critérios do debate, a problematização das demandas sociais, ressaltando as consequências socioeconômicas e ambientais das escolhas das prioridades, como já demonstrado acima.

Enquanto no que pertine aos atores, entende-se que apenas um quórum elevado de atores nas reuniões ou assembleias do OP não é suficiente para alcançar a legitimidade das decisões comunitárias, sendo essencial o nível de representatividade social desses atores, no intuito de alcançar uma legitimidade democrática. O ideal democrático seria que todos os segmentos sociais fossem representados, mas diante da dificuldade de se alcançar esse objetivo até mesmo em países desenvolvidos, deve-se buscar no orçamento participativo a participação do maior número possível de segmentos sociais.

Tal fator está estritamente vinculado ao nível político da sociedade, visto que quanto mais politizada for a sociedade, maior a participação popular nesses tipos de espaços públicos. Logo, o sucesso do orçamento participativo, como alternativa de mudança social, depende do nível de politização da sociedade ou de emancipação social e, por consequência, depende também do nível de educação da sociedade.

A emancipação social e autonomia dos atores sociais nas esferas públicas são condições essenciais para o sucesso democrático do OP e, ao mesmo tempo, limites à concretização democrática desse instrumento, sobretudo, se o objeto em análise se situa em países periféricos, cujas condições socioeconômicas e, em especial o nível de educação, são baixos.

Segundo Olinda Malato (2006), pautada nos ensinamentos de Hobsbawm, o investimento e a socialização da educação colaboram na capacidade reflexiva da sociedade e, por conseguinte, amplia o espaço político com a presença de novos segmentos sociais, a exemplo da presença de mulheres na esfera política, cuja predominância é de homens.

Isto vislumbra a importância da análise antropológica dos atores sociais, sendo relevante a identificação da etnia, gênero e condição socioeconômica, no intuito de abarcar as mais variadas demandas dentro de uma sociedade heterogênea e multicultural, como a sociedade brasileira, alcançando os interesses dos movimentos de mulheres, dos índios que vivem na zona urbana, dos negros, dos seringueiros, dos pescadores, dos quilombolas etc.

Neste sentido, considera-se essencial a análise antropológica dos atores do espaço público, pois será determinante na qualidade e legitimidade da escolha das políticas públicas e, por conseguinte, no modelo de desenvolvimento a ser implantado.

Em contraposição ao modelo de desenvolvimento, denominado de desenvolvimentista, dominante no sistema capitalista, o qual privilegia o crescimento econômico em detrimento dos demais setores sociais, entende-se ideal que no espaço público de construção do orçamento participativo participem diversos tipos de atores, seja no aspecto de etnia, cor, gênero etc., no intuito de compor uma esfera pública heterogênea e multicultural, legitimando os anseios dos diversos segmentos sociais e garantindo a construção de um desenvolvimento que preserve o patrimônio cultural, social e natural de específica sociedade (RAMALHO FILHO, 1999).

Neste espaço público o mundo de vida dos atores deve adentrar através de suas demandas, garantindo um resultado democrático nas deliberações das políticas públicas, capaz de garantir um etnodesenvolvimento, ou seja, a construção do futuro pela manifestação dos diversos segmentos sociais, aproveitando os ensinamentos decorrentes de sua experiência histórica, os seus recursos naturais e as suas potências culturais, segundo seus próprios valores e aspirações, resgatando a sua identidade e cultura e preservando o seu meio-ambiente (RECASENS, 2000).

O OP pode ser um espaço público para conhecer os diversos interesses e necessidades de uma determinada sociedade multicultural e heterogênea, identificando até mesmo, segundo as necessidades e as demandas da população, as potencialidades de um desenvolvimento endógeno, averiguando a aptidão econômica local, de acordo com a especificidade do território, formado pelos conhecimentos tácitos, culturais e históricos próprios, gerando a melhoria da qualidade de vida da população (BARQUERO, 2002).

É essencial nesse espaço público o respeito ao conhecimento tácito dos diversos segmentos sociais, no intuito de orientar decisões por políticas públicas que respeitem os patrimônios social, cultural e natural de determinada localidade, visando o alcance de um etnodesenvolvimento. O conhecimento tácito é compreendido como uma ciência concreta, moldes da concepção defendida por Lévi-Strauss (1976), que possui a mesma legitimidade que o conhecimento científico, bem como colabora na construção de um desenvolvimento que preserva a identidade e a cultura local.

É muito comum nos espaços públicos a preferência por políticas e ações governamentais que não respeitam os interesses e a identidade cultural e natural local, em detrimento de um modelo de desenvolvimento capitalista, a exemplo, da implantação de hidroelétricas, a exploração de minerais, a criação de gados, a extração de madeira etc., muito comuns na Amazônia, os quais causam diversos problemas socioambientais, como mudanças climáticas, perda de parcela da biodiversidade, o remanejamento de populações tradicionais ou até mesmo o seu aniquilamento, em prol da lucratividade do fator produtivo (SIMONIAN, 2007).

Deste modo, o OP pode ser uma alternativa de espaço público que pode garantir o estabelecimento de políticas e ações governamentais que atendam aos interesses dos diversos segmentos locais, em contraposição à política que predomina nos espaços públicos tradicionais, pautado, em regra, na lógica desenvolvimentista.

Estas são apenas algumas condições vislumbradas como essenciais para que haja legitimidade das decisões do OP e, portanto, promova a consolidação da democracia participativa, fator precípuo para que este instrumento seja considerado uma alternativa disponível de mudança social em uma sociedade moderna globalizada.

Ademais, cumpre destacar os limites ao sucesso do orçamento participativo como uma alternativa de mudança social. Neste sentido, o padrão de desigualdades econômicas e sociais dos entes federativos pode causar algumas barreiras inevitáveis à concretização da democracia participativa. Weffort (Apud DUPAS, 2005) já afirmava na década de 90 do século XX que "a consolidação da democracia dependerá também da sua eficácia para resolver problemas econômicos e sociais".

Deste modo, o grau de concretização do viés democrático do OP e, por conseguinte, de resistência ao sistema capitalista global vai depender das condições socioeconômicas e políticas do país e da localidade, como o nível de educação, de politização e emancipação da sociedade, e de capacidade financeira para investir nessa experiência.

Assim, o OP na realidade brasileira possui limites decorrentes do fato de a sociedade ser caracterizada por uma alta concentração de renda, uma elevada desigualdade regional, uma ampla parcela da população na escala de pobreza e miséria, baixo nível de educação e de emancipação social. Apenas para se ter uma ideia, o Estado brasileiro possui um baixo índice de desenvolvimento humano, ocupando a 70ª posição em uma lista de 177 países no Índice de Desenvolvimento Humano, indicador pautado em três fatores – PIB per capita, longevidade e educação, criado pelo economista indiano Amartya Sem (RELATÓRIO PNUD, 2007).

Diante desse contexto social e considerando, ainda, que o Brasil é um país que passou recentemente por um processo de redemocratização, vislumbra-se que o desafio para eficácia do OP é bem maior no Brasil do que em relação aos países desenvolvidos.

Chama-se atenção, ainda, que o Brasil, por ser um país que possui, historicamente, elevado grau de desigualdade regional, gerando dicotomias de regiões centrais e periféricas entre Norte/Nordeste x Sul/Sudeste, a implementação da experiência do OP entre entes federativos locais, varia muito. O aspecto cultural e o político de cada município também colabora na diversidade de experiências do OP na realidade brasileira, pois há regiões que resguardam a sua identidade cultural mais do que outras, e há municípios que têm uma história forte de luta social e, por conseguinte, possuem movimentos sociais e políticos mais consolidados do que nos demais entes políticos.

Logo, cada experiência do OP deve ser analisada de acordo com as peculiaridades sociais, econômicas, culturais, políticas e ambientais de cada ente federativo (AVRITZER, 2008).

Portanto, a hipótese levantada de que o Orçamento Participativo pode ser uma medida de resistência ao sistema capitalista global, ou melhor, uma alternativa disponível de mudança social, vai depender concretamente da análise das experiências locais, de acordo com as suas circunstâncias peculiares; no entanto, acredita-se que existe a potencialidade. Tanto é verdade que o OP é o instrumento de participação popular de maior referência para o mundo. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 2008) a experiência é uma das 40 melhores práticas de gestão pública urbana no mundo. Trata-se de um canal democrático que, ainda que não consiga alcançar o ideal da democracia participativa e deliberativa, é capaz de transferir algumas demandas sociais de atores pouco influentes na sociedade para o sistema político.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho se propôs discutir a possibilidade do Orçamento Participativo ser considerado uma medida disponível de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada.

Assim, estabeleceu que existe a potencialidade desse instrumento ter um forte viés democrático e, dessa forma, se contrapor à racionalidade ocidental hegemônica que mantém o sistema capitalista global, ao garantir a participação popular nessa esfera pública, o que é incomum em outros espaços públicos tradicionais.

Todavia, foi ressaltado que a garantia do cunho democrático da experiência do OP está estritamente vinculado a algumas condições consideradas necessárias, tais como, (i) emprego de racionalidade que contrapõe a racionalidade ocidental hegemônica; (ii) utilização de método de deliberação adequado e democrático que assegure a participação livre e igualitária dos cidadãos; (iii) organização administrativa do ente político; (iv) capacidade técnica e financeira do ente federativo; (v) compromisso governamental; (vi) perfil dos atores, levando em consideração o gênero, a etnia, a condição socioeconômica etc.; (vii) grau de representatividade dos atores; (viii) quórum elevado da sociedade no espaço público; (ix) nível de emancipação social e política da comunidade local; etc.

Também se ressaltou que as circunstâncias sociais, econômicas, culturais, políticas e ambientais são essenciais para identificar o grau de eficácia da experiência do OP; e que em países periféricos, como o Brasil, por terem alto nível de desigualdade social, com baixo grau de escolarização e, pouca emancipação social e política, possuem maior dificuldade em concretizar o aspecto democrático do OP, sendo tais fatores limites para a sua implementação.

Todavia, em que pese a existência desses limites na sociedade brasileira, vislumbra-se que a experiência do OP não pode ser descartada, visto que pode trazer mudanças no espaço público, podendo ser tornar uma alternativa à política neoliberal, mediante a transferência de algumas demandas sociais de atores pouco influentes na sociedade para o sistema político, ainda que não alcance o ideário da democracia participativa e deliberativa.

Deste modo, acredita-se que o OP pode ser uma alternativa de mudança social, em contraposição à racionalidade do sistema capitalista global, todavia o grau da sua eficácia vai depender da análise específica de cada experiência local, considerando as suas peculiaridades sociais, culturais, ambientais, políticas e econômicas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRUCIO, Fernando Luiz. O Longo Caminho das Reformas nos Governos Estaduais: crise, mudanças e impasses. In MELO, M. A. (Org.) Reforma do Estado e Mudança Institucional no Brasil. Recife: Massangana, 1999, p. 161-198

APPADURAI, Arjun. Disjuncture and Difference in the Global Cultural Economy. In XAVIER, Jonathan; ROSALDO, Renato. The Anthropology of Globalization. British: Blackwell Publishers, 2002.

AVRITZER, Leonardo. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático. Opinião Publica, Campinas, v. 14, n. 1, jun. 2008.

BARQUERO, Antonio Vázquez. Desenvolvimento endógeno em tempos de globalização. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

DUPAS, Gilberto (coord.). América Latina no início do século XXI: perspectivas econômicas, sociais e políticas. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2005

GIACOMONI, James. Orçamento Público. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2007.

GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

GERMANI, Gino. Secularizacion, Modernizacion y Desarrollo Economico. In ARBAT, Teresa Carnero (Ed.). Modernización, desarrollo político y cambio social. Madrid: Alianza Editorial, 1992.

GOULART, Jefferson O. Orçamento participativo e gestão democrática no poder local. Lua Nova, São Paulo, n. 69, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol II. 2 ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

_____. Teoría de la acción comunicativa. 2 vol. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 3 ed. Madrid: Taurus Humanidades, 2001.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Trad. Almir de Oliveira Aguiar e Maria Celeste da Costa e Souza. 2 ed. São Paulo: Companhia Nacional, 1976.

MALATO, Olinda Rodrigues. Democratização e gestão pública na Amazônia: do orçamento participativo ao Congresso da cidade no município de Belém-PA (1997-2004). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.

MOURA, Reidy Rolim de. Compromisso governamental e orçamento participativo: estudo comparativo das experiências em Blumenau e Chapecó, Santa Catarina. Revista Katál. Florianópolis, v. 10, n. 2, p. 206-214, jul./dez. 2007.

NUNES, Antônio José Avelãs. Neoliberalismo e direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

OLIVEIRA, Régis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de Direito Financeiro. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. BRASIL. Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br. Acesso em: 10/01/2008.

PAIVA, Maria Arair Pinto. Poder Legislativo e função de controle da atividade financeira do governo. Disponível em http://www.puc-rio/direito/revista/online/rev11_maria.html. Acesso em 24/11/2004.

PELLINI, Ana Maria. Os sistemas de planejamento, execução e controle da gestão pública: uma nova proposta. Disponível em http://www.ufrgs.br/necon/sumario4.htm. Acesso em 24/11/2004.

PEREZ, Marcos Augusto. A participação da sociedade na formulação, decisão e execução das políticas públicas. In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

RAMALHO FILHO, Rodrigo. Patrimônio cultural e natural: dimensão da sustentabilidade. In FILHO, Jenner Barreto Bastos; AMORIM, Nádia Fernanda Maia de; LAGES, Vinicius Nobre (orgs.). Cultura e desenvolvimento: a sustentabilidade cultural em questão. Maceió: PRODEMA/UFAL, 1999

RECASENS, Andreu Viola. La crisis Del desarrollismo y El surgimiento de la antropologia del derrollo. In VIOLA, Andreu (comp.). Antropologia del desarrollo. Teorías y estúdios etnográficos em América Latina. Barcelona: Paidós, 2000.

RELATÓRIO PNUD. Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), 2007. Disponível em http://www.pnud.org.br. Acessado em 10/12/2008.

SANTOS, José Vidente; BAUMGARTEN, Maíra. Contribuições da Sociologia na América Latina à imaginação sociológica: análise, crítica e compromisso social. Revista Sociologia, Porto Alegre, ano 7, n. 14, jul/dez 2005, p. 178-243.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro, 2002, p. 237-280.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

SILVA, Sandoval Alves da. Direitos Sociais: Leis Orçamentárias como instrumento de implementação. Curitiba: Juruá, 2007.

SIMONIAN, Ligia L. T. Tendências recentes quanto à sustentabilidade no uso dos recursos naturais pelas populações tradicionais amazônidas. In ARAGÓN, Luis E. População e Meio Ambiente na Pan Amazônia. Belém: UFPa/NAEA, 2007.

SOUZA, Celina. Governos locais e gestão de políticas sociais universais. Revista São Paulo em Perspectiva, vol. 18, n. 2, p. 27-41, abr-jun 2004.

_____. Construção e consolidação de instituições democráticas: papel do orçamento participativo. São Paulo Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 4, dez. 2001.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

SUSTEIN, Cass R. The partial Constitution. Massachussetts: Harvard University Press, 1994.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.


Notas

  1. Segundo Dworkin (2002), os argumentos de política "justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo", enquanto os argumentos de princípios "justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo". Para o autor política "é aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas", já o princípio é "um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade".
  2. As experiências brasileiras, em regra, possuem a mesma estrutura e procedimento do Orçamento Participativo executado pelo município de Porto Alegre, o qual possui 4 Etapas: Primeira, a Prefeitura mobiliza os diversos segmentos comunitários, tais como, associações, centros, sociedade de amigos etc., para participar de assembleias e reuniões em que são propostas as demandas; Segunda, as demandas aprovadas ao nível de cada entidade e hierarquizadas por prioridades são postas em discussão no âmbito de região; Terceira, realiza assembleia para eleger os representantes do Conselho do Orçamento Participativo e os delegados do Fórum do Orçamento Participativo, com mandato de 1 ano; Quarta, ocorre as reuniões do Conselho do Orçamento Participativo, em que há a defesa e a escolha das demandas que integrarão o orçamento municipal; Quinta, são realizadas reuniões do Fórum do Orçamento Participativo, que tem o objetivo de envolver maiores parcelas da comunidade no acompanhamento e fiscalização da execução do orçamento (GIACOMONI, 2007).
  3. A teoria da ação comunicativa, defendida por Jürgen Habermas (2001), é uma teoria social que se contrapõe à racionalidade instrumental (teleológica) e, por consequência, à ação estratégica, regida pela lógica da dominação, na qual os atores coordenam seu agir no intuito de influenciar os demais, não buscando o assentimento ou dissentimento. No intuito de afastar o "cálculo egocêntrico", isto é, a ação estratégica, o autor propõe a comunicação livre, racional e crítica entre atores, no sentido de alcançar o consenso. O agir comunicativo se propaga no discurso entre os atores e deve resultar em um entendimento. Deste modo, é essencial a garantia de participação de todos os interessados no debate, de forma livre e igualitária. A teoria tem como fundamento o mundo da vida e a comunicatividade e tem o objetivo de superar a racionalidade instrumental e evitar a arbitrariedade e a coerção na tomada de decisões da sociedade e, assim, não dar oportunidades para que se consolidem formas de governo, tais como, o totalitarismo e o autoritarismo.
  4. Tais exemplos foram comprovados na análise feita por Reidy Moura (2007) sobre as experiências de orçamento participativo em Blumenau e Chapecó.

Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAMPLONA, Karla Marques. Orçamento participativo: alternativa disponível de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2429, 24 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14398. Acesso em: 25 abr. 2024.